16.8.17

Sobreviver à Guerra da Coreia para criar família no Caramulo

in Diário de Notícias

Sul-coreano Won Chong-song vive em Portugal desde 1972. Chegou para trabalhar como sexador num aviário, hoje tem uma empresa de compotas de frutas. Casado com uma portuguesa, continua a viver no Caramulo, onde criou três filhos.

Nascido em 1949, Won Chong-song tinha um ano quando começou a Guerra da Coreia. Desses três anos terríveis diz não ter memória, sabendo apenas aquilo que a mãe lhe contou: a fuga da sua Chung Buk natal num comboio para sul assim que se soube da aproximação das tropas norte-coreanas, a paragem súbita da locomotiva porque afinal os invasores comunistas já iam à frente, o leite que secou no peito da mãe e as papas de arroz para alimento, o pai como auxiliar do Exército sul-coreano, que com o apoio dos Estados Unidos conseguiria repor a fronteira mais ou menos no Paralelo 38 como antes da guerra. "Recordo-me da destruição, da pobreza e da festa no dia em que a Cruz Vermelha vinha à escola dar leite. Lembro-me também de brincar num tanque destruído", conta Won, hoje com 68 anos, produtor de compotas de fruta no Caramulo, a terra portuguesa onde se instalou ainda jovem, contratado como sexador.

A conversa decorre no restaurante Montanha, com Won a apreciar um cabrito no forno e a confessar que no início tinha-lhe custado acostumar-se à comida portuguesa. Peço então que me explique o que é um sexador. "É o técnico que faz a separação dos pintos machos dos pintos fêmeas", diz, meio a rir-se, num português em que se percebe tudo apesar de manter um certo sotaque.

Um grande empresário do Caramulo, cuja família estivera ligada aos sanatórios, tinha investido num aviário e descobrira que para potenciar a produção era essencial identificar as galinhas poedeiras o mais cedo possível. Sexadores só havia os japoneses, que tinham criado a técnica, e os coreanos, que tinham aprendido com os japoneses quando estes ocuparam a sua península entre 1910 e 1945. Para o Caramulo acabaram por vir dois sul-coreanos, um deles Won, que chegou em 1972.

O outro sul-coreano um dia foi-se embora, mas Won ficou. E integrou-se bem. Conheceu poucos anos depois Hortense, que era enfermeira em Lisboa e tinha vindo ao Caramulo visitar uma amiga, e hoje têm duas filhas e um filho, além de quatro netas. Conta-me Won, agora já sentados na varanda da sua casa a 840 metros de altitude, que os pais de Hortense estavam emigrados em França e que foi primeiro a um irmão que ela o apresentou. "Ela disse ao irmão que eu era coreano, mas ele pensou na Cúria e que eu era curiano", conta a rir-se. "Depois, ele vê-me e diz "mas ele é chinês" totalmente surpreendido."

De vez em quando vai à Coreia do Sul, dentro de dias receberá a visita de um irmão e uma irmã, e diz-se preocupado sempre com todas estas notícias de tensão entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos, por causa das armas nucleares. Orgulha-se da forma como a Coreia do Sul, tão pobre na sua infância, se tornou rica, mas lamenta "a perda de um certo sentido de comunidade". Também é crítico da obsessão das famílias sul-coreanas pela educação, "sempre a pagarem explicações, sempre a quererem escolas privadas caras". E diz que os seus filhos andaram na escola pública em Portugal, primeiro no Caramulo, depois em Tondela e na Universidade de Coimbra, "sempre bons alunos". Filipa, de 40 anos, fez Economia, Sónia, de 38, Matemática de Computação, e Miguel, de 35, estudou Física e é doutorado, explica Won, com evidente orgulho. E se os filhos não falam coreano, uma tradição pelo menos mantiveram, garante Won: "foram criados a comer kimchi", a popular couve branca fermentada.

Quando Won percebeu que a manipulação genética ameaçaria o emprego dos sexadores, criou uma empresa de compotas. "Foi no início dos anos 1980, e comecei com a geleia de milho, baseada numa receita coreana." Hoje, as compotas Won vendem-se em lojas biológicas. "São um produto 100% português", sublinha. E só o Won escrito no frasco de vidro dá uma pista de que por trás daquele doce de framboesa ou ameixa feito no Caramulo está um homem que nasceu a dez mil quilómetros, "entre montanhas parecidas".