9.12.07

Crianças portuguesas de sete anos "abandonadas a si próprias" no Luxemburgo

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Relatório anual do Comité do Provedor para os Direitos das Crianças do Luxemburgo
alerta também para a migração a meio do ano lectivo


Tem sete anos e uma chave para entrar em casa quando as aulas terminam e a mãe ainda labuta. Não se acanha, prepara o lanche, come, vê televisão ou joga PlayStation, entretém-se até a mãe, "uma divorciada na casa dos trinta que sustenta sozinha o agregado familiar", chegar. A mãe não consegue suportar uma baby-sitter.

A história deste latchkey kid (criança com chave) é relatada na última edição do Contacto, um semanário dirigido à comunidade portuguesa residente no Luxemburgo. Não por acaso. A advertência para a existência de crianças com pouca ou nenhuma supervisão consta do relatório anual do Comité do Provedor para os Direitos das Crianças do Luxemburgo (http://www.ork.lu).

Os casos de negligência têm aumentado no Grão-ducado: de 46 para 54 em Diekirch, entre 2006 e 2007 (não são referidos dados da capital). "Os juízes inquietam-se com a sorte das crianças abandonadas a si próprias enquanto os pais trabalham", escreve a presidente do Comité do Provedor para os Direitos das Crianças, Marie Anne Rodesch-Hengesch. Embora não lhe tenham fornecido números, quatro magistrados dos tribunais de menores - três da capital e um de Diekirch - asseguraram-lhe que "a situação é particularmente frequente no seio das famílias lusófonas de imigração recente". Tal percepção é partilhada pelos professores de Português com quem Marie Anne Rodesch-Hengesch conversou.

A provedora não transmite, de forma alguma, a ideia de desamor ou desapego. "Estes novos pais da imigração trabalham muitas vezes à noite e ao fim-de-semana" por estarem "determinados as melhorar a condições materiais da sua família", esclarece. Ultrapassa-os "as exigências escolares, as barreiras linguísticas, a falta de tempo". Desacompanhadas, as crianças experimentam maiores dificuldades de integração escolar e social. Correm maior risco de faltar às aulas, de assumir comportamentos tipificados como crime. Quando têm de comparecer perante um juiz ou juíza, escreve a provedora, os pais sentem que "o seu mundo se desmoronou".

José Coimbra de Matos, presidente da Confederação da Comunidade Portuguesa, julga que se está a exagerar. Depois de ler o relatório, fez diligências para compreender melhor esta realidade e concluiu que situações como a que abre este texto são "esporádicas". Embora, "como em todo o lado, haja pais que entregam a educação dos filhos à televisão e ao computador".

O salário mínimo, no Luxemburgo, é 1500 euros, só que o custo de vida é elevado. "As creches e os centros de dia têm preços exorbitantes, o que obriga as pessoas a recorrer a particulares ou a coordenar horários", diz Coimbra de Matos. Uma creche, por exemplo, custa, em média, 500 a 600 euros. O Governo criou há pouco a figura da casa de apoio, uma espécie de Actividade de Tempos Livres. Este serviço, financiado pelas autarquias, "serve de interface entre a escola e a família". Todavia, refere Coimbra de Matos, ainda não cobre o pequeno território.

Há mais uma referência. A provedora adverte para a dificuldade em integrar alunos que chegam a meio do ano lectivo ao Luxemburgo. Durante o ano passado, entraram no ensino público 462 alunos com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos. "A maior parte são portugueses."

O problema não é novo. Nota-se mais agora, por o Luxemburgo estar a receber uma nova vaga de portugueses, interpreta Coimbra de Matos. O dirigente associativo recomenda a quem quer avançar para o estrangeiro para "não hipotecar o futuro dos filhos". Os miúdos que chegam com mais de 15 anos, denuncia, têm sido "empurrados" para fora do sistema: "Dizem-lhes que a escolaridade, nessa idade, já não é obrigatória". "Há pais que vão para países limítrofes e que colocam os miúdos até como internos", diz.

Fenómeno está por caracterizar em Portugal

Não há dados sobre miúdos com chave em Portugal. Armando Leandro, presidente do Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), admite que, no corre-corre quotidiano, possam ser cada vez mais. Maia Neto, representante da Procuradoria-Geral da Republica naquela estrutura, acha que quadro já foi mais grave.
O fenómeno tem sido documentado, sobretudo, nos Estados Unidos e em Inglaterra. Segundo o The New York Times, estudos recentes indicam que só nos Estados Unidos os pais deixam três milhões de crianças com menos de 13 anos tomar conta de si próprias, pelo menos, umas horas por semana.

Este aspecto "não tem sido referido" no relatório anual da CNPCJR. "É um fenómeno que, tanto quanto é do meu conhecimento, não está caracterizado em Portugal", refere, num curto contacto telefónico, Armando Leandro. Não obstante a ausência de estatística, o sistema qualifica "o abandono dentro de casa como uma situação de perigo", salienta o procurador Maia Neto. Em tudo relacionado com "a necessidade de políticas reais de apoio à família e à criança". Para os pais terem mais tempo para os filhos, para os filhos ficarem enquadrados enquanto os pais trabalham.

Maia Neto lembra-se de, há anos, trabalhar no Tribunal de Família e Menores e de "ir buscar crianças que estavam de manhã à noite fechadas dentro de casa - sozinhas com um papo-seco". Este tipo de cenário, de severo abandono, parece-lhe hoje difícil de escapar à vigilância da vizinhança. "Conheço um caso de um casal que foi às compras e deixou os filhos em casa e houve logo uma denúncia", exemplifica. Apesar de tudo, as pessoas estão mais atentas, há mais creches, mais infantários, mais actividades de tempos livres.