Teresa de Sousa, in Jornal Público
Para a Europa é uma "nova fronteira". Para África poderá ser uma oportunidade
1. Para se perceber a importância da cimeira UE-África é preciso perceber também duas coisas. Que a União não é apenas a soma das suas partes. Que a Europa, se quer ser um actor global, precisa de manter a sua influência estratégica, política e económica num continente a que a unem quase cinco séculos de história e que reemerge hoje na cena internacional como um novo actor capaz de jogar também os seus trunfos.
Escreveu-se muito e é absolutamente verdade que uma das principais motivações para que a União resolvesse empenhar-se a sério na iniciativa da presidência portuguesa se chama China. É uma forma simplista de dizer que a globalização está a mudar aceleradamente os equilíbrios de poder mundiais, que o Ocidente passa a ter de contar com as novas potências emergentes e que a Europa está perante o desafio de transformar o seu poder económico e a sua visão do mundo numa capacidade de acção externa eficaz.
A África é uma peça essencial desse desafio. Depois de anos de fracasso político em que predominaram ainda as diferentes visões das antigas potências coloniais que se ocupavam das respectivas zonas de influência (muitas vezes anulando-se mutuamente), deixando à Comissão o papel de uma gigantesca ONG, os europeus acabaram por entender o que estava em causa. Darfur não é apenas um terrível problema humanitário. É um problema de segurança. Como a Somália. A África não se conjuga apenas com a miséria que interpela a boa consciência europeia (aliás de muito longe o principal doador de ajuda humanitária e ao desenvolvimento). É um problema de Estados falhados e de proliferação nuclear, de fundamentalismo islâmico, de fluxos migratórios incontroláveis e de tráfico ilegal. E está, como lembrou Sarkozy, à distância de 14 quilómetros da Europa. Podia ter acrescentado que por eles passa a fronteira mais desigual da humanidade - entre o bloco de países mais ricos do mundo e o continente onde se situam muitos dos mais pobres. Ajudar África a democratizar-se e a desenvolver-se é uma necessidade de segurança europeia.
2. Esta cimeira não foi, pois, apenas um grande acontecimento mediático para que tudo ficasse exactamente na mesma. Nem o poderia ter sido, se a presidência portuguesa conseguiu trazer a Lisboa a esmagadora maioria dos líderes africanos e se mobilizou o empenho político não apenas dos seus parceiros europeus que partilham as mesmas ligações históricas com África, mas da Europa, no seu conjunto, e da Alemanha em particular.
Angela Merkel foi uma peça fundamental. José Luís Rodriguez Zapatero classificou-a como "uma das cimeiras mais importantes que a UE realizou na sua história" e explicou como o seu Governo inflectiu a política africana - de um interesse meramente mediterrânico para uma aposta na África subsariana.
O que a Europa desta vez conseguiu fazer de diferente foi oferecer a África a mesma "agenda comum" que considera indispensável para moldar a globalização e que oferece aos seus grandes parceiros mundiais. É isto que significa a mudança de paradigma de que falaram os europeus.
3. Mudar de paradigma significa, em primeiro lugar, uma abordagem "global" - que vai da segurança à democracia e ao bom governo, passando pelas alterações climáticas, o desenvolvimento e as migrações.
Por isso, era crucial que a questão dos direitos humanos estivesse no centro da nova proposta europeia. Não como uma questão de retórica mas como uma questão estruturante.
Foi uma negociação dura e prolongada com a parte africana, que decorreu nos últimos meses, para conseguir "impor" as prioridades europeias. Implicava uma mudança de atitude radical, que deixasse para trás a retórica da "expiação" europeia pelos crimes do passado que ainda marcou fortemente a cimeira do Cairo, em 2000. Pôde contar também, da parte africana, com uma nova arquitectura institucional, ainda embrionária, mas que está a ser criada seguindo o exemplo europeu.
4. A Europa virou a página. Adaptou a sua política para África às novas condições mundiais, aos seus interesses e às suas novas ambições. Propôs aos africanos aquilo que é específico da sua política externa: uma abordagem multilateral, uma condicionalidade política e uma partilha de interesses e de valores. Terá agora o teste da prática. E certamente a pressão das suas opiniões públicas, sensíveis aos dramas africanos. Tem de haver um caminho entre os objectivos ambiciosos desta cimeira, que ninguém hesitou em chamar de "histórica", e as realidades urgentes que interpelam os europeus. No Darfur ou no Chade.
Mas as cimeiras, como a deste fim-de-semana, não podem ser avaliadas pelos seus resultados "concretos". Funcionam como sinais de mudança. Em Lisboa houve mudança de agenda, mudança de discurso e mudança de empenho político. Não é tudo mas é bastante.