Fernanda Câncio, in Diário de Notícias
2007 foi o ano europeu da igualdade. Em várias cerimónias, o Governo defendeu com denodo e paixão a igualdade plena para todos e o fim das discriminações. Coisa que, diga-se de passagem, a Constituição já estabelece no seu artigo 13.º, ao fazer o rol das "grandes" discriminações interditas, incluindo a discriminação em função da orientação sexual. Esta, adicionada na revisão constitucional de 2004 ao rol do artigo 13.º, é a única das "grandes" que o ordenamento jurídico continua a promover - em virtude de normas anteriores a 2004. É o caso do impedimento do casamento civil de pessoas do mesmo sexo e da adopção por unidos de facto do mesmo sexo. Aliás, a adequação de uma dessas normas, a do casamento, à lei fundamental está a ser apreciada no Tribunal Constitucional, que já levou à eliminação do crime de "actos homossexuais com adolescentes".
Mas ainda o 2007 da igualdade não arrefecera e um membro do Governo garantia, tranquilamente, a discriminação em função da orientação sexual no novo regime das famílias de acolhimento de crianças em risco, publicado a 8 de Janeiro. Para a secretária de Estado Idália Moniz, "é incontroverso" que os unidos de facto do mesmo sexo não se podem candidatar. Nada havendo no decreto que mencione essa exclusão (fala em pessoas singulares, "casais" e parentes em economia comum), Moniz remete para as leis de protecção de menores (de 1999) e das uniões de facto (de 2001). Sucede que a primeira fala de "casados e de unidos de facto há mais de dois anos" e a segunda tem apenas uma reserva, a de excluir da adopção os unidos de facto do mesmo sexo, não referindo o acolhimento. Não sendo adopção e acolhimento a mesma coisa (aliás, quem acolhe não pode adoptar), difícil perceber outro sentido para esta "leitura" governamental que não o objectivo deliberado de discriminar, aderindo ao mais básico preconceito. Nem de propósito, é mais ou menos assim que em acórdão desta semana o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos classifica o comportamento da França, condenada, com o voto do juiz português, por discriminar uma homossexual na candidatura à adopção. "Os Estados que não queiram amanhã ser condenados têm de olhar de muito perto para esta decisão", disse ao DN - e aos bons entendedores - o juiz Cabral Barreto. Ao Governo português bastaria no entanto olhar de perto para os empolgados discursos que fez em 2007. Ou praticar o sentido das palavras do jurista Rui Pereira, agora ministro da Administração Interna, que em 2006, ao defender as alterações ao Código Penal que incluem expressamente os casais do mesmo sexo na tipificação do crime de violência doméstica, disse numa frase tudo o que há a dizer: "As causas da igualdade são de nós todos." Há quem ainda não tenha percebido.