Sara Dias Oliveira, in Jornal Público
Estudo revela que o sistema de reabilitação está desadequado e orientado para as deficiências congénitas, esquecendo as incapacidades adquiridas ao longo da vida
Uma população com deficiências e incapacidades predominantemente feminina, adulta e idosa, com níveis de qualificação escolar muito baixos, globalmente excluída do mundo do trabalho e com rendimentos familiares próximos do salário mínimo nacional. A taxa de incidência da deficiência em Portugal é de 8,2 por cento. Estes são alguns dos resultados do relatório Mais qualidade de vida para as pessoas com deficiências e incapacidades: Uma estratégia para Portugal, realizado no âmbito do estudo Modelização das políticas e das práticas de inclusão social das pessoas com deficiências em Portugal, promovido pelo Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) com a participação do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).
Os indicadores traçam um cenário de discriminação, quando grande parte dos inquiridos afirma não se sentir excluído. Os dados demonstram ainda que o sistema de reabilitação está fragmentado por especialidades, desadequado tendo em conta o perfil da deficiência e que continua muito direccionado para as deficiências congénitas, esquecendo-se das deficiências e incapacidades adquiridas ao longo da vida. O documento, que acaba de ser publicado, está disponível no site www.crpg.pt.
O estudo centrou-se na realização de um inquérito nacional aplicado em duas fases durante 2007. A primeira consistiu na aplicação de um questionário a 15.005 cidadãos residentes no continente, com idades entre os 18 e os 70 anos, com o objectivo de caracterizar o fenómeno da deficiência em Portugal. Na segunda fase, aplicou-se outro inquérito a 1235 pessoas com deficiência para analisar a correlação entre o sistema de reabilitação e os percursos de vida dessa população.
Há várias surpresas nos resultados. "Quando falamos de deficiência pensamos em pessoas jovens e em deficiência mental e o estudo demonstra que a população com deficiência é maioritariamente adulta e idosa, tem mais de 50 anos. As políticas de reabilitação estão muito orientadas para a infância e juventude, quando temos uma realidade diferente", afirma o director do CRPG e coordenador do estudo, Jerónimo de Sousa. O grupo de pessoas com deficiências e incapacidades apresenta uma taxa de feminização - 68 por cento são mulheres, 32 por cento são homens - superior à da população equivalente no continente. A percentagem cresce dos mais jovens para os mais velhos, atingindo o máximo no escalão dos que têm entre 65 e 70 anos - 41 por cento. A população é claramente mais idosa, com uma média de 58 anos de idade, do que a população do continente, 44 anos.
Conformismo e resignação
"É uma população adulta e idosa que tem níveis de escolarização muito baixos, que vive com parcos recursos económicos, com uma participação na vida profissional e económica baixa - o desemprego é duas vezes e meio superior à média nacional", destaca o responsável. "É uma população pobre, é quase uma situação de discriminação humilhante, e o que é surpreendente é que estas pessoas não têm noção disso", apesar dos "indicadores objectivos de discriminação". "Estas pessoas que vivem uma situação de clara discriminação têm uma percepção um pouco alienada da vida porque não se sentem discriminadas e acreditam que é possível mudar de vida", sublinha Jerónimo de Sousa. A resignação e a falta de informação também ajudam a explicar este quadro.
Os dados evidenciam que a maioria, 55 por cento, concorda que tem as mesmas oportunidades para participar na vida cívica e política do que a população em geral. No entanto, a discordância com a igualdade de oportunidades políticas tem um peso significativo, envolvendo 20 por cento dos entrevistados. "Contra todos os indicadores empíricos, as pessoas com deficiências e incapacidades acham que não são discriminadas na sociedade portuguesa, o que pode ser entendido como um traço de conformismo esperável numa população que vive maioritariamente na fronteira da exclusão social", explica-se no relatório. "É um grupo social discriminado e que não tem noção da sua situação de discriminação. É preciso saber se estamos a fazer o que é necessário ou se temos de dar uma volta ao modelo político", realça Jerónimo de Sousa. "Não é uma questão deste ou daquele governo, é uma questão da sociedade", acrescenta.
Na segunda fase do estudo, conclui-se que mais de 30 por cento das pessoas com deficiências e incapacidades necessitam de receber apoios e serviços do sistema de reabilitação. É um universo predominantemente jovem, masculino, com alterações de natureza congénita nas funções, com especial relevância nas funções mentais e nas multifunções sensoriais e da fala, físicas e mentais, que os utiliza. Constata-se ainda que que as ajudas técnicas e a reabilitação médico-funcional são os serviços e apoios mais utilizados. "Comprova-se que o sistema é necessário, que produz efeitos, que tem de ser melhorado de modo a assegurar uma cobertura universal e, por outro lado, que é necessário aumentar o seu nível de eficácia", aponta o responsável.
De qualquer forma, os que recebem estes apoios têm mais consciência de que pertencem ao grupo de pessoas com deficiência, são mais optimistas em relação à igualdade de oportunidades, são mais participativos na vida pública e evidenciam uma maior grau de satisfação física e emocional.
O estudo definiu pessoas com deficiências e incapacidades as que têm limitações significativas ao nível da actividade e da participação, resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, aprendizagem, mobilidade, autonomia, relacionamento interpessoal e participação social.
Quanto à situação profissional, 46 por cento dos deficientes são ou foram operários ou assalariados agrícolas, seguindo--se os empregados executantes, com 36 por cento. O estudo revela, por outro lado, que a taxa de analfabetismo dos inquiridos com deficiências e incapacidades é nove vezes maior do que a da população do continente. Cerca de 21 por cento não completou o 1.º ciclo e só dois por cento é que detêm um diploma de ensino médio ou superior. Cerca de 28 por cento dos agregados dispõem, no máximo, de 403 euros e 49 por cento recebem até 600 euros mensais para as suas despesas.
"Como a média do número de indivíduos por agregado é de 2,4 nesta população, o grau de precariedade económica é ainda mais expressivo", lê-se no relatório.
A O estudo caracteriza o fenómeno da deficiência em Portugal continental e finaliza com a apresentação de 72 orientações estratégicas de acção, que podem ser estudadas pelo Governo, pelas instituições que trabalham na área, pelos interessados no assunto. "O estudo não tem um carácter de denúncia", garante Jerónimo de Sousa. "Estudámos a questão, produzimos conhecimento e agora colocamo-lo ao dispor da sociedade". "Trata-se de um estudo de grande fôlego: é a primeira vez que se faz um exercício tão completo do que se tem feito e como esta área tem evoluído", indica.
As sugestões foram delineadas para um espaço temporal de uma geração, ou seja, para que "em 2025 as pessoas com deficiência tenham acesso à cidadania plena, à igualdade de condições e tenham mais qualidade de vida do que têm hoje", explica o coordenador do estudo. E assim são elencadas propostas de acção que apontam caminhos e que abarcam todos os domínios da qualidade de vida, como a educação e formação, o trabalho e emprego, o rendimento e prestações sociais e os direitos.
Garantir um percurso de educação e formação até ao 12.º ano e a escolaridade até aos 18 anos, porventura lançando uma nova vertente da iniciativa Novas Oportunidades, é uma das ideias apresentadas. Criar planos individuais de transição da escola para o mercado de trabalho, desenvolver formação básica em língua gestual para profissionais que atendam pessoas com deficiência estão também no relatório.
No sector profissional, defende-se a adaptação dos postos e contextos de trabalho às necessidades específicas dos trabalhadores com deficiência, bem como a criação de um sistema de certificação de qualidade social de empresas que visem a integração de pessoas com deficiências ou incapacidades. Estudar os mecanismos legais para proteger os funcionários vítimas de doenças crónicas também é recomendado.
A questão da habitação não é esquecida. Daí o alerta para a construção adaptada às necessidades e a custos suportáveis, o que pode implicar novas iniciativas de habitação a custos controlados e promover a bonificação de rendas. O estudo alerta ainda para a importância de centros locais de apoio, para a distinção dos municípios sem barreiras - sensibilizando e comprometendo as câmaras para a questão da deficiência -, e para a promoção de um design inclusivo de serviços e produtos.
Realizar campanhas públicas regularmente, focando os direitos das pessoas com deficiência, e publicar um relatório anual, a submeter ao Conselho de Ministros e colocado à discussão pública, são igualmente iniciativas evidenciadas no relatório.