30.1.08

"Se não nos sentimos família não nos tornamos solidários"

in Jornal Regional

Presidente do Conselho Económico e Social (órgão de consulta para as políticas económica e social do Estado), Alfredo Bruto da Costa tem sido uma voz crítica das políticas de combate à pobreza. Nesta entrevista mostra que as práticas sociais dos cristãos estão longe da verdadeira caridade


CORREIO DO VOUGA - Reflectiu com os padres e diá- diáconos conos da diocese de Aveiro sobre a originalidade da intervenção social cristã. Em que consiste esta originalidade?

ALFREDO BRUTO DA COSTA - A originalidade da intervenção social cristã está em que a caridade deve ser desenvolvida não só pelos cristãos individualmente, mas principalmente enquanto comunidade. É um tema que o Papa Bento XVI salienta na primeira encíclica, “Deus Caritas Est”, em que diz que o dever do serviço da caridade tanto atinge individualmente os cristãos como a Igreja enquanto comunidade. Neste encontro, a partir da encíclica, salientei alguns aspectos que não são muito correntes no modo de encararmos o papel da Igreja.

Quais são esses aspectos?

Um deles é que, em Jesus, o amor de Deus e o amor do próximo uniram- se num só. Não é conceptível amar a Deus sem amar ao próximo e vice-versa, para os crentes. Mas o dom do amor não é uma exclusividade dos crentes, uma vez que Deus o infundiu em todos os seres humanos. O segundo ponto, que não tem sido muito salientado e que o Papa refere, é que a dimensão do serviço da caridade faz parte da natureza da Igreja, tanto quanto o anúncio da Palavra de Deus e os Sacramentos. Ainda temos uma visão de cristianismo muito ligada aos sacramentos e ao anúncio da Palavra. Ora, o Papa diz que estas três dimensões são inseparáveis e essenciais na natureza da Igreja. São a identidade.

Vê a Igreja em Portugal a assumir a prioridade da caridade?

Não vejo. Vejo que há muitas iniciativas. Uma grande parte das iniciativas particulares no campo social ou são cristãs ou são de origem cristã. Mas não é aquilo a que o Papa se refere. O Papa faz algumas exigências para que esse exercício da caridade seja da Igreja enquanto comunidade. Ora, sinto que aquilo que a Igreja faz oficialmente no campo da caridade não é a expressão do envolvimento das comunidades cristãs nesse trabalho. Normalmente, é mais o dinamismo de um prior, às vezes com alguns voluntários, normalmente com gente profissional também, o que é normal, só que não é a expressão do compromisso da comunidade enquanto tal.

Temos projectos da Igreja, mas não dos cristãos ou da comunidade cristã?

Sim. Aqui começa um problema. Temos muita coisa que é feita pela Igreja. Em relação a certas instituições podemos ter dúvidas se são iniciativas oficiais da Igreja, mas os centros paroquiais, por exemplo, não há dúvida de que são actividade da paróquia, da Igreja. Nos estatutos, inclusivamente, o pároco é o presidente dos conselhos de gestão ou da direcção, etc., etc. Ora, em que medida é que esses centros são expressão da vida da comunidade? Não acho que seja. A comunidade limita-se a, por exemplo, uma vez por mês, contribuir financeiramente para esses centros, mas não tenho sinal nenhum de que a comunidade sinta que aquilo é seu.

Mas acha isso possível?

Tem que ser. O espírito de comunidade é elemento fundamental na própria noção de Igreja: comunidade de crentes. Mas reconheço que, do ponto de vista pastoral, isto acarreta algumas dificuldades. Como sabemos, sobretudo nos centros urbanos, a comunidade dominical não tem nada a ver com a comunidade de residência, pelo menos em parte. A igreja que eu frequento, por exemplo, não fica na minha paróquia geográfica. Mas o tipo de mensagem cristã que essa comunidade veicula está mais sintonizada com aquilo que eu sinto ser. E assim acontece com muita gente. Todo o elemento humano que liga as pessoas, de um bairro, por exemplo, não existe relativamente às comunidades cristãs urbanas, hoje. A primeira dificuldade é, precisamente, construir por via da fé o sentido de comunidade. Sem sentido de comunidade não existe Igreja.

Julgo que queria salientar mais algum aspecto da encíclica de Bento XVI...

O Papa recorda um aspecto que não faz parte das preocupações da intervenção social da Igreja portuguesa, hoje: o estilo de vida da primeira comunidade cristã de Jerusalém. Diz Bento XVI que “punham tudo em comum”, “ninguém tinha nada seu”, e “não havia entre eles ninguém necessitado”.

Resta saber se essa passagem dos Actos dos Apóstolos se refere a factos ou a modelos...

Sim, mas o Papa diz o seguinte: com a dimensão que a Igreja tem hoje, esse estilo de vida já não é possível, mas há um ponto que continua a ser válido. Esse ponto é precisamente que entre os cristãos não deve haver pobres.

E como é que isso se concretiza?

Estou a dizer aquilo que das primeiras comunidades o Papa considera ser válido. Bento XVI diz que a Igreja não pode limitar-se à preocupação com os pobres da sua comunidade. E cita a parábola do bom samaritano, que é clara quanto ao universalismo do amor ao próximo. Mas o que o Papa diz, é que, ressalvada essa universalidade do amor, entre os cristãos não haja pobres.

Como é possível conjugar esse ideal com a prática económica que temos?

O“como”jáéumproblemapastoral.

Não é também um problema político e económico?

Pode ser e pode não ser. E eu já digo porquê. O Papa também salienta que isto é válido a todos os níveis, a nível da igreja universal, das dioceses e das paróquias.

Ou seja, preconiza também uma partilha entre países, dioceses...

Trata-se de uma perspectiva que tem de estar presente na intervenção social da Igreja. Quanto ao como, quando penso num país como a Índia, onde numa localidade qualquer a comunidade cristã é sempre uma minoria, não vejo dificuldade em pôr isto em prática. Mas já vejo dificuldade num país como Portugal, porque a grande maioria dos portugueses declaram-se cristãos.

Mesmo não o sendo.

Declaram-se cristãos. Subjectivamente declaram-se cristãos, ainda que não sejam praticantes. O facto de terem uma cultura de valores cristãos é-lhes suficiente para dizerem que são cristãos, talvez por oposição a outras religiões. Como a grande maioria dos portugueses se declaram cristãos, a fronteira entre pobre da comunidade cristã e pobre que não é da comunidade cristã é praticamente impossível de distinguir. Por outro lado, num meio como o português, penso que é contraproducente haver uma atenção especial perante os cristãos. Iria parecer uma discriminação e revelar um conceito de capelinha, quase sectário, da comunidade cristã. Agora, devo dizer que, na prática, isso não é necessariamente assim. Se a Igreja der sinais claros de que o seu amor atinge dimensões universais, nessa altura não há problema em dedicar-se mais aos seus. E devo dizer que conheço uma comunidade religiosa não cristã, em Lisboa, que declarou não ter pobres, quando fiz um inquérito às minorias. Portanto, isso é praticável. Mas há um outro ponto, quanto ao “não havia entre eles ninguém necessitado”. Qual é o fundamento para o Papa sugerir uma atenção aos pobres da comunidade cristã? O fundamento é este: a Igreja é a família de Deus. Ora, receio que os cristãos não se sintam família, se...

...não se importam com os outros elementos...

Exactamente. Todos acham natural que eu esteja preocupado com o bem estar material da minha mulher e dos meus filhos. Sou responsável por esse primeiro ciclo. Agora, se não sentimos que a comunidade cristã é família, não nos tornamos solidários. Este é outro problema, mais eclesiológico do que social.

No fundo, a má caridade – a caridade mal feita ou a ausência dela – resulta, então, de uma falta de fé, de uma fé deficiente.

Eu diria antes que se trata de um conceito de fé que não valoriza a dimensão comunitária.

Enquanto presidente do Conselho Económico e Social, como vê a questão da pobreza em Portugal?

O últimos números, publicados há dias, referem-se a 2005. O que se vê em 2005 é que a taxa de pobreza baixou 2 pontos. Era de 20 por cento; em 2005, situou-se nos 18 por cento. Também baixou um pouco o grau de desigualdade entre os ricos e os pobres. Mas baixou menos do que a taxa de pobreza. Agora, o que acontece é que um terço dos pobres são pensionistas, pelo que creio que a medida do complemento de pensão para idosos, introduzida pelo governo e que já começou para os idosos mais velhos e progressivamente vai baixando até atingir os 65 anos, não sei em que ano, é acertada. Esse complemento pode ter uma influência importante para baixar a taxa de pobreza.

Há vários anos que vem dizendo que um quinto (20 por cento) dos portugueses são pobres, como, aliás, as estatísticas oficiais recentes têm confirmado. No entanto, a percepção do homem da rua, que vê os voos de férias esgotados, o consumo desregrado no Natal, um número maior de telemóveis do que portugueses, parece desmentir um tão grande número de pobres...

Isso em parte é porque as pessoas confundem pobreza com miséria. A pobreza nem sempre é visível para um qualquer transeunte. A miséria é. É logo identificada. A pobreza é definida como uma situação em que a pessoa, por falta de recursos, não consegue satisfazer todas as suas necessidades básicas, necessidades que a sociedade em que a pessoa vive considera básicas. Sendo assim, há muitas pessoas que, não estando na miséria, são pobres, porque não conseguem satisfazer todas as necessidades básicas. Isso nem sempre é um problema imediatamente visível. Por outro lado, a própria cultura das sociedades coloca subjectivamente a fasquia entre pobreza e classe média a um nível muito baixo. Considera que para os outros é suficiente muito menos do que o que é necessário.

O que deve fazer Portugal para acabar com o “paradoxo da persistência da pobreza”, utilizando uma expressão sua, que resume a ineficácia do investimento em políticas sociais?

Portugal despende muitos recursos e muita boa vontade, e tudo quanto faz é necessário. Tenho que sublinhar isto. Mas não é suficiente para reduzir a pobreza. A pobreza requer mudanças sociais. A causa da pobreza está no modo como a sociedade está organizada e funciona, na repartição dos rendimentos, na economia. Tudo quanto fazemos na chamada luta contra a pobreza mantém a sociedade como está. Não mexe na sociedade. Ora, se as causas estão na sociedade, como poderei combatê-la ou reduzi-la substancialmente, sem tocar na sociedade? O que se faz é bom e importante, porque reduz o sofrimento dos pobres, mas não pode resolver o problema, porque para isso são necessárias mudanças sociais. Quando eu tenho um projecto que permite que a sociedade se mantenha como está, devo ter suspeitas imediatas sobre se esse projecto reduz a pobreza, ainda que tenha muito valor por atenuar o sofrimento dos pobres. Por exemplo, o Banco Alimentar (BA). Mais de 200 mil pessoas recorrem ao BA. Evidentemente que é importantíssimo. Porém, o BA, enquanto fornecedor de alimentos, não resolve a pobreza. Para não haver pobreza, as pessoas têm de ser auto-suficientes. Têm de já não precisar do BA, porque podem comprar os alimentos como qualquer cidadão faz.

Nesse sentido, onde devem ocorrer as mudanças? No ensino? Na saúde?

Reconhecer isto já provoca mudanças. Do próprio BA disseramme que, quando entregam os alimentos às instituições para serem distribuídos, impõem a condição de as instituições terem um trabalho adicional no sentido de conduzir os pobres à autonomia. Se isto é feito, não conheço.

Mas volto à sociedade no seu todo. O que tem de mudar?

Tem de mudar: o ensino, com mais e melhor formação; o mercado de trabalho, com um sistema de salários mais justo, melhores qualificações, mais emprego; e na Segurança Social, porque, como disse, tem um papel de reforço dos rendimentos dos pensionistas. São estes os três sistemas fundamentais para reduzir a pobreza.