António Marujo, in Jornal Público
Era uma tertúlia descontraída no Casino da Figueira. Até que o patriarca disse que o diálogo com o islão é "difícil" e sugeriu às católicas que pensem bem antes de casar com muçulmanos. O dia acabou em polémica.
O que era para ser uma tertúlia descontraída, transformou-se num monte de polémicas sobre as declarações do patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Anteontem à noite, numa iniciativa que comemora os 125 anos do Casino da Figueira da Foz, o cardeal afirmou que o diálogo com os muçulmanos é "difícil" e aconselhou as jovens portuguesas a pensar bem antes de casar com muçulmanos.
As reacções surgiram, durante o dia, em catadupa. A Comunidade Islâmica de Lisboa manifestou-se "de alguma forma" magoada com as declarações do patriarca. A secção portuguesa da Amnistia Internacional recomendou ao cardeal que se "retracte publicamente". A alta comissária para o Diálogo Inter-Cultural ressalvou que conhece relações mistas que são exemplo de "sucesso e amor" e que as declarações "não irão gerar focos de tensão" entre católicos e muçulmanos.
O sociólogo Moisés Espírito Santo concordou com o patriarca, enquanto vários responsáveis católicos e da Conferência Episcopal reafirmaram a vontade e o empenhamento no diá-logo inter-religioso.
Foi numa tertúlia com Fátima Campos Ferreira, da RTP, em resposta a uma pergunta sobre a relação com o islão, que o patriarca deu "um conselho" às jovens portuguesas: "Cautela com os amores, pensem duas vezes em casar com um muçulmano, pensem; pensem muito seriamente. É meter-se num monte de sarilhos, nem Alá sabe onde é que acabam."
Antes, o cardeal falara da necessidade de conhecer os muçulmanos e o Alcorão. "Somos muito ignorantes. Queremos dialogar com muçulmanos, e não gastámos uma hora da nossa vida a perceber o que é que eles são. Quem é que em Portugal já leu o Alcorão?", perguntou.
Na maior parte das reportagens das rádios e televisões, esta frase não passou. Tal como a seguinte: "Se queremos dialogar com muçulmanos, temos que saber o bê-á-bá da sua compreensão da vida, da sua fé. A primeira coisa é conhecer melhor."
Mas, logo a seguir, o patriarca referiu a dificuldade do diálogo com os muçulmanos: "Só é possível dialogar com quem quer dialogar e com os nossos irmãos muçulmanos o diálogo é muito difícil".
Perante as primeiras reacções, o responsável pelo diálogo ecuménico e inter-religioso do patriarcado, padre Peter Stilwell, emitiu um comunicado ao final da manhã: o que o patriarca quis destacar foi que as relações com os muçulmanos têm sido "de grande simpatia - poderá mesmo dizer-se, exemplares".
No modo de dialogar com os muçulmanos, o patriarca quis, diz ainda o comunicado, afirmar que se devem ter em conta três critérios: "o respeito pelas diferenças", que implica o "conhecimento mútuo" e a "prudência nos gestos de aproximação". Estes podem ter consequências inesperadas, esclarece o texto, como "a cedência de espaços de culto ou o casamento entre pessoas de tradições religiosas e culturais diferentes".
Na conversa - de pé, mão no bolso e descontraído -, o patriarca referiu o exemplo do que aconteceu em Colónia (Alemanha), há poucos anos, quando um grupo de muçulmanos pediu a um catedral para celebrar o Ramadão. Acabaram por ficar e só saí-
ram com a intervenção da polícia.
Compreensão e escândalo
A reacção da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) fez-se também em comunicado. O seu presidente, Abdool Vakil, diz que contactou os responsáveis pelo diálogo inter-religioso do patriarcado e entendeu o conteúdo das declarações do patriarca, embora tenha ficado surpreendido.
As palavras do patriarca podem ser interpretadas como "uma chamada de atenção para o necessário respeito pelas diferenças, o que implica um conhecimento mútuo - incluindo o conhecimento da religião de cada um - e, muito em especial, da tradição do outro", diz o texto de Vakil.
Este não é o caso "quando estão em causa cidadãos do mesmo país que, embora professando religiões diferentes, partilham da mesma cultura e interagem na mesma sociedade".
Vakil sublinha que Jesus é um profeta para o islão. Mas acrescenta que existe "uma grande ignorância" sobre o islão, em questões "simples" como a palavra Alá - "Deus", em árabe - a que, "com total desconhecimento da realidade, se atribui o significado de 'Deus dos muçulmanos'." Se assim fosse, os cristãos árabes não usariam Alá para referir Deus.
Quem não gostou de todo das declarações do patriarca foi Catarina Morais, portuguesa, casada com um muçulmano. "Estou escandalizada", disse ao PÚBLICO. As palavras do patriarca deixaram-na "tão furiosa" que está a ponderar apresentar uma queixa-crime. "O que o cardeal-patriarca disse ofendeu-me ainda mais a mim do que ao meu marido. Mas, sobretudo, ofendeu muito as minhas filhas, que são fruto desta relação não aconselhada". Catarina não compreende como é que o cardeal pode dizer que o diálogo com o islão é difícil "depois de todas as visitas à mesquita, de todos os encontros", desabafa. com Alexandra Prado Coelho