Rui Correia, opinião, in SIC
Carreira, salários, tempo de serviço, subvenções, saúde, aposentação, refeições, irs e descontos. Se tivéssemos de escolher aquele que é o maior problema da educação em Portugal dir-se-ia... o conformismo.
Como uma peste bubónica, as escolas deste país estão a ser varridas, uma a uma, por uma pandemia de cedência à conformidade de tudo. Públicas ou privadas, vivem uma compulsão pela padronização de critérios, de práticas, de métodos, de recursos, de estratégias, de didácticas, de doutrinas, de projectos, de teorias, que destrói toda a essência que faz de um professor alguém em cuja carreira vale a pena apostar. Ninguém ousa negar que cada criança é única, mas entre isso e tudo fazer para acelerar a sua excepcionalidade vai uma diferença abissal. O mesmo acontece com os professores. A singularidade de um professor não é coisa que se recomende. Bem pelo contrário. Tudo é feito no sentido de que uns e outros se inscrevam numa matriz normativa que trave toda a peculiaridade. A escola está bastante mais preparada para subordinar comportamentos e práticas do que para acompanhar a imprevisibilidade e a liberdade de ensinar e aprender, que é a mais importante coisa para que serve, nos dias de hoje.
A hipnose da rotina
Disciplina e consistência são elementos decisivos para o acto de aprender, sem dúvida. Mas não são únicos, nem são os melhores. De resto nenhum acto criativo se consegue sem contingência ou vicissitude. E fazer aprender é um acto de criação e não de duplicação acrítica. Fazer "como se fez no ano passado" é a prisão perpétua de toda a originalidade.
No final da pandemia, quando se perguntou aos miúdos qual era a pior coisa que eles encontravam no ensino a distância, todos respondiam o mesmo: a rotina. Saber exactamente tudo quanto ia acontecer durante as próximas horas foi aquilo que mais os amordaçou. A rotina é a coisa que mais agride e ofende o acto limpo de aprender. Aprender vive do inesperado e da preferência. Tudo coisas intransmissíveis ainda que contagiosas. Uma aula não pode ser um fac-simile da anterior e da seguinte. Isso ceifa e trucida a fibra de qualquer aluno ou professor ao fim de uns poucos meses. É talvez por isso que o músico Sting uma vez confessava numa entrevista que nunca conseguiria continuar a ser professor porque sabia antecipar no que se iria transformar daí a alguns anos.
É doloroso perceber como o comprazimento pelo conformismo invadiu os dias de cada jovem e de cada professor. Ver cada um deles acabrunhado por perceber que não existe qualquer vantagem em explorar o que têm, um e outro, de particular e inconfundível é uma hipnose insuportável. É tão óbvio que fazer como os outros fazem não tem piada nenhuma. Impor receitas alheias não serve para quase nada. Sugerir, aconselhar, recomendar, partilhar, claro que sim; isso é aprender. Prescrever, coagir e impor, é apenas confinar a deliberação íntima que constitui o ingrediente elementar de toda a decisão de querer saber.
A inovação como censura
Empresas privadas e projectos ministeriais de sucesso enchem cada vez mais a paisagem das nossas escolas com propostas vindas desse exoplaneta das "boas práticas" e da "excelência". Ninguém parece descansar enquanto não transformar aquilo que é uma estupenda ideia num desastre impreterível. Tudo quanto funciona é sustentável apenas pela criação única, pela emoção de construir autonomamente soluções personalizadas para cada contexto educativo. Impor a inovação é uma forma de censura que a ninguém seduz. Quase sempre redunda em instintiva – e até injusta - aversão. Assiste-se hoje a uma reacção visceral a tudo o que é inovador dentro das escolas portuguesas. Um professor ou um aluno "inovador" é hoje visto como uma raridade biológica, uma bizarria num freakshow. E é-o por uma razão simples: não compensa. O que compensa mesmo é o conformismo. Fazer como todos fazem e nunca deixar de fazer o que todos fazem. E quando o exemplo vem de cima, fica pior a emenda do que o soneto. É a praça da letargia.
Cem meias para coser
Tudo convida ao cinismo e ao cálculo derrotista. E, contudo, quem se passeia pelas escolas públicas e privadas deste país percebe que, por todo o lado, explodem ideias e trabalhos muito bons que estão a transformar vidas inteiras. Alunos, professores e direcções escolares que apostam num sentido vivo de comunidade, de criatividade, celebração e solidariedade, de rigor e de exigência, de bem-estar e de bem ser. Há escolas que vivem em constante época de incêndios, deflagrados por gestos e iniciativas que inspiram uns e outros a fazer mais e melhor. Há alunos e professores que passam horas em clubes onde se aprende livremente, que pedem para estar na escola aos fins de semana e além do horário escolar para poderem terminar este ou aquele projecto. Há mães e pais e funcionários a dar uma mãozinha. Isso está a acontecer hoje. Não vem nas notícias, mas é isso que acontece. Há milhares de professores a dedicar dezenas e dezenas de horas a mais do que aquelas que lhes pagam para fazer jornais escolares, preparar candidaturas ao Erasmus ou a financiamentos extraordinários. Não são recursos humanos. São pessoas incríveis. Merecem a nossa companhia e mais um abraço. E tudo isso acontece porque ninguém os condenou a coisíssima nenhuma. Fazem-no porque sabem a importância do que querem fazer. E não falta quem os recrimine por isso e quem lhes dificulte os gestos e as palavras. E que diga que não têm mais vida, nem meias para coser em casa. Mas esta gente odeia a acomodação, despreza a rotina e foge a sete pés de todo o aborrecimento. Investem na sua felicidade. Erram continuamente e aprendem até que comecem a errar cada vez menos. Repugna-lhes o conformismo.
A bactéria conformista
A escola não pode ser uma "Maria vai com as outras". Resignada a repetir o que outros fazem ou como os outros fazem. Deve saber escutar e aprender com os demais, mas para criar algo que seja distintamente sólido e único. Que não vem de longe, mas sim de dentro. Uma escola deve ser um ginásio da curiosidade. Uma máquina de musculação intelectual. O quartel-general de toda a esperança.
Cada aula tem de representar um laboratório de premeditada experimentação contínua. O "estilo" de um professor pode converter-se numa penalidade. Não se faça aos outros aquilo que não desejamos que nos façam a nós. Repetir os mesmos procedimentos, o mesmo "estilo" em cada momento de aprendizagem é meio caminho andado para o tédio e a desolação. Dos outros e, principalmente, da nossa. Ninguém aguenta esta pasteurização do ensino. O conformismo é um organismo unicelular que decompõe matéria orgânica. Não tem lugar numa escola que se queira limpa e surpreendente.