Elisabete Miranda, in Expresso
Os complementos salariais, como os vales infância e educação, seguros de vida e planos poupança reforma (PPR), carro, subsídios e reembolsos de despesas, são verdadeiros benefícios sociais ou formas disfarçadas de pagamento de salários, que acabam por escapar à Segurança Social, às estatísticas sobre remunerações, e reduzir a proteção social dos trabalhadores? O tema é antigo, já sofreu algumas (poucas) evoluções e volta a estar na lista de trabalhos da comissão de peritos a quem o Governo encomendou o “Livro Verde sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”.
A preocupação em aproximar a base de incidência da Taxa Social Única (TSU) das regras fiscais foi analisada com algum detalhe em 2006, na última reforma alargada do sistema de Segurança Social. Na altura, o acordo de princípios assinado entre Governo, UGT e patrões falava no “aumento do peso das formas atípicas de remuneração” que desviavam descontos da Segurança Social, tinham “impacto ao nível da proteção social dos trabalhadores” e incentivavam “práticas desleais das empresas que recorrem diferenciadamente a estes mecanismos”.
Mais de 15 anos depois, o mercado de trabalho diversificou-se, as “formas atípicas de remuneração” estão a ganhar novo fôlego e, com a necessidade de reforçar o financiamento e a adequação da proteção social, o tema volta a ser analisado. Além de novos produtos e tendências (ver texto à esquerda), há também complementos salariais que o Código Contributivo sujeita a TSU mas que aguardam há anos pela regulamentação (ver tabela). Há também casos clássicos, como o dos carros das empresas que são usados para fins pessoais. Em teoria pagam IRS e Segurança Social, mas, na prática, na maior parte das vezes, não pagam nenhum, porque é suposto haver um acordo escrito entre trabalhador e empresa.
Formas atípicas de remuneração estiveram em análise há 15 anos, mas parte ficou por regulamentar
Para Clara Murteira, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, este é um trabalho imprescindível e urgente. “Quando se discutem reformas da Segurança Social, discute-se muito a contenção de despesa mas não se fala de políticas que comprometem a receita.” Os complementos salariais são “mais um exemplo”. “Há componentes remuneratórias que estão isentas, e acha-se normal.” Para a economista, é preciso definir exatamente o que são “benefícios sociais”, para que mereçam efetivamente estar fora da TSU, daquilo que são meras formas de substituir salário. Porque se “no curto prazo ganham tanto trabalhador como empresa e perde o orçamento da Segurança Social, devido aos efeitos imediatos na receita, a longo prazo todos perdem — só o empregador ganha”. “O próprio trabalhador, se pensar a longo prazo, vê os inconvenientes. Quando se reformar não entra para o cômputo a considerar para a remuneração de referência”, isto é, para o salário que serve de base ao cálculo da pensão.
Paulo Pedroso, antigo ministro do Trabalho e da Segurança Social, não se mostra, para já, alarmado. “A procura destes complementos tem uma dimensão de planeamento fiscal” e é uma matéria à qual “temos de estar atentos, [porque] se houver uma generalização do seu uso, passa a jogar seriamente contra as pensões futuras”. Mas “não creio que, por agora, haja um prejuízo sério”. Fundamental para o professor do ISCTE é que elas só sejam atribuídas se estiverem vertidas em acordos ou contratos coletivos de trabalho. As medidas “são contraditórias com o Estado social-democrata, vão mudando a natureza política do país, mas são legítimas”. Mas “se o Estado quiser continuar a abdicar de receita e a contribuir para que as necessidades sejam providas no mercado”, deve “limitá-las à negociação coletiva”, para garantir que as regras são aplicadas a todos por igual. “A universalidade só se alcança através da contratação coletiva.” “Caso contrário há indivíduos ou grupos profissionais que acabam por beneficiar desproporcionalmente deles”, considera.
O grupo de peritos a quem o Governo encomendou o “Livro Verde” apresentará as propostas nos finais do junho, cabendo a partir daí ao Governo decidir o que aproveita e o que deixa cair em função das prioridades, da capacidade de execução e da vontade política. Para já, uma das encomendas que Ana Mendes Godinho, ministra da Segurança Social, lhes fez há meses — a revisão da fórmula de atualização anual das pensões — foi engavetada, ainda antes de ser apresentada.
PENSÕES
“No curto prazo ganham trabalhador e empresa e perde o orçamento da Segurança Social. A longo prazo, contudo, só o empregador ganha”
Clara Murteira
Professora da Universidade de Coimbra
“Instrumentos devem estar limitados à negociação coletiva. Caso contrário há indivíduos ou grupos profissionais a beneficiar desproporcional-mente deles”
Paulo Pedroso
Professor do ISCTE