2.5.23

Mulheres que mataram companheiros dizem que foram vítimas de violência doméstica

Ana Cristina Pereira, in Público online

Investigadora entrevistou 14 das 16 mulheres nas cadeias por homicídio em contexto de intimidade. Metade aponta violência doméstica como a causa, as restantes não, mas também alegam ter sido vítimas.

Ao fazer doutoramento em Ciências Forenses na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Mafalda Ferreira propôs-se entrevistar as mulheres em prisão efectiva por terem matado o companheiro ou o ex-companheiro. Quis “perceber se havia alguma motivação associada a um historial prévio de violência doméstica”.

A criminóloga, que é vice-presidente da Associação Plano i e coordenadora executiva do Centro Gis – Centro de Respostas para as Populações LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, intersexuais), reparou que em Portugal já “muito se tinham estudado os homens que matam as companheiras ou ex-companheiras”. E que “o contrário não era verdade”.

Realidade desproporcional

É uma realidade altamente desproporcional em termos de género. No ano da investigação (2019), nas prisões portuguesas, 724 homens e 70 mulheres respondiam pelo crime de homicídio. Nas três prisões femininas, 16 expiavam penas por homicídio dos (ex-)companheiros. Catorze aceitaram falar com Mafalda Ferreira.

Nas longas entrevistas que fez, sobressaíram diversas motivações para aquele crime. Episódios de violência doméstica foram referidos como causa por metade das mulheres entrevistadas, mas a outra metade também tinha a sua narrativa de violência doméstica.

“Naquele dia, não sei o que poderia ter acontecido”, contou, por exemplo, uma mulher que o tribunal considerou ter matado também por ciúme e vingança. “Acho que ele estava possesso. Ele saiu de casa e voltou e eu era o alvo. Naquele dia, eu não lhe podia dizer nada. Ele voltou a casa três vezes e três vezes me bateu. Na última vez, deu-me com uma garrafa na cabeça e eu tive de ser assistida no hospital”, continuou, citada na tese defendida por Mafalda Ferreira em Março. “Quando voltei para casa, ele estava lá e disse: ‘Sai daqui; se não eu mato-te!’ Eu tirei o telefone do bolso e senti a navalha, e quando ele me veio bater… Tive um impulso. Não o queria matar, queria assustá-lo, fazer com que não me batesse...”

“Estávamos casados há cerca de dez anos e fui para casa da minha mãe porque não aguentava mais”, narrou outra mulher, cujo processo judicial indica como motivação o facto de o casal já estar separado, mas continuar a partilhar a casa, pelo que experienciava desacordos, conflitos. “Ele foi lá e apontou-me uma arma. ‘Só não te mato porque tens o miúdo no colo!’ No dia seguinte, fui à polícia. Tiraram-lhe a arma, mas devolveram-lha. Vinte anos depois, mais de vinte… As coisas foram piorando, piorando.”
Risco para homicídio

Não se limitou a entrevistar as 14 mulheres que se encontravam a cumprir pena em Santa Cruz do Bispo (Matosinhos), Tires (Cascais) e Odemira, e a analisar os processos judiciais que as conduziram até ali. A investigadora também procurou avaliar o prévio risco de violência doméstica e o actual risco de reincidência criminal.

Nessa análise, deparou-se com diversos factores de risco para a ocorrência de homicídio conjugal. Violência física, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas ilícitas, escalada de violência, por exemplo.

Todas reportaram ter sofrido violência física por parte dos parceiros (14) e algumas afiançaram que o mesmo ocorrera com filhos ou outros familiares (três) e animais domésticos (duas). A maior parte (oito) disse que a pessoa que mataram já a tentara estrangular, sufocar ou afogar ou a um familiar. Quase todas (12) contaram que o número de episódios de violência e a sua severidade aumentava de dia para dia nos meses que antecederam o crime. A maior parte (10) julgava estar numa situação de matar ou morrer.

“Quantas vezes tive uma pistola apontada à minha cabeça, quantas vezes”, comentou uma mulher. “Quantas vezes a minha filha viu isso! Ele deixou-me com este olho todo inchado. Ele arrancou pele do meu nariz. Ele deixou-me com a cara arruinada e eu andei anos com manchas na cara. Nem sei se ainda as tenho. Das unhas dele! Ele agarrou-me o pescoço e pôs-me negra e azul e a minha filha ouviu o barulho, levantou-se a ver se conseguia parar o pai, mas ele tem uma força que não passa pela cabeça de ninguém! Ele agarrou-a e mordeu-a. Até a mão da menina ele pôs na boca e mordeu.”
Quantas vezes tive uma pistola apontada à minha cabeça, quantas vezes. Quantas vezes, a minha filha viu isso! Reclusa entrevistada

“Grande parte das reclusas [85,7%] estava num risco elevado no contexto da violência doméstica até mesmo para a ocorrência de homicídio, ou seja, para elas próprias serem assassinadas às mãos dos seus companheiros”, sublinha a criminóloga. No seu entender, daqui se deve depreender “que há uma maior necessidade de se considerar o crime de violência doméstica como um factor de risco não só para a ocorrência do homicídio da vítima, mas também da pessoa agressora”.
Narrativas díspares

As suas narrativas nem sempre coincidem com o que consta da sentença. Analisados os processos, Mafalda Ferreira verificou que na maior parte dos casos os tribunais ou não aludem à existência de violência doméstica (quatro) ou não consideram que tenha ficado provada (seis). Em apenas três situações, a violência doméstica foi comprovada. E aí a pena foi atenuada 17%.

“Naquele dia, o meu ex viu um carro estranho, que era do meu namorado”, relatou uma das três mulheres que o tribunal reconheceu como sendo vítimas de violência doméstica. “Ele esperou pela manhã para que acordássemos. Eu acordei com imensas chamadas no telemóvel. Chamei a polícia às 6h30, mas a polícia não apareceu a tempo. Só apareceu às 8h. Ele disse que não saía porque me ia matar, ia matar o meu filho e o meu namorado.”

Os tribunais alegaram quase sempre razões de outra natureza para a ocorrência do homicídio. Em duas situações, por exemplo, consideram motivos financeiros – uma terá querido livrar-se do marido que dependia financeiramente dela e lhe gastava o dinheiro todo; outra terá querido ficar com os bens do marido e o dinheiro do seguro e manter o elevado nível de vida a que estava habituada.

A criminóloga não ficou surpreendida por haver discrepância entre o que consta do processo e o que é dito pelas mulheres nas entrevistas longas, sem pressão. “É difícil fazer prova [de que havia violência doméstica no contexto em que ocorreu o homicídio] até porque a maioria delas nunca chegou a realizar uma denúncia.”

Parece-lhe “importante reflectir sobre as elevadas cifras negras” deste tipo de crime. “Tenho conhecimento de várias situações de violência doméstica que não são reportadas por múltiplos factores. Sabemos que a própria denúncia é um factor de risco. Caberia a estes e estas profissionais [nos tribunais] pensar que elas podem efectivamente ter sido vítimas de violência doméstica e não terem reportado com receio das consequências desta denúncia.”

Também há a dificuldade de conseguir fazer prova. A violência doméstica tende a ocorrer em privado, apenas na presença dos envolvidos, num quadro de grande ambivalência. E há a hipótese de tais alegações serem desvalorizadas, na crença de que as arguidas estavam a tentar desculpar-se para obter uma atenuação de pena.

O facto é que, quando falaram com Mafalda Ferreira, todas já tinham sido condenadas. Nada do que lhe dissessem, sob anonimato, no decurso daquelas entrevistas, poderia prejudicá-las ou beneficiá-las em termos de tratamento penitenciário. “E o que elas contaram nas entrevistas foram episódios de extrema violência. Todas elas os referiram, independentemente de ter ficado provado em tribunal ou não.” E isso parece-lhe motivo de reflexão.

Mafalda Ferreira, coordenadora executiva do projecto (IN)MATES – Intimidade(s) e emoções – sensibilização e intervenção para a prevenção da violência de género, promoção da igualdade de género e diversidade social em contexto prisional, tratou ainda de avaliar atitudes e crenças de magistrados (37) e de técnicos de apoio à vítima (44). Fê-lo através de um inquérito digital divulgado pelo Conselho Superior de Magistratura e pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

“A maioria dos profissionais de ambos os grupos discorda que as mulheres provoquem os seus agressores ou que mintam sobre a sua condição de vítimas de violência doméstica”, enfatiza. “A maioria concorda que há maior necessidade de segurança e prevenção.”

Concluiu que falta, nos tribunais, uma abordagem sensível ao género. “Eu diria que é essencial, não necessariamente no contexto de homicídios, mas no contexto de violência doméstica. Nós temos visto vários acórdãos que se vão tornando públicos, como o da juíza que sugere que a vítima vá jantar fora com companheiro.”

Parece-lhe evidente que “há uma grande necessidade não só de capacitar mais profissionais no sentido da formação, mas também no de uma maior sensibilização para as questões de género e para a forma como este crime deve ser analisado”. “Naturalmente que não podemos dizer que todas estas mulheres mataram porque foram vítimas de violência doméstica. Agora, tendo sido e podendo provar que o foram, isso deve ser considerado.”