Natália Faria, in Público online
Rute Agulhas, psicóloga à frente do Grupo Vita, criado para coordenar a resposta da Igreja aos abusos sexuais, lembra que é preciso ajudar agressores para evitar recidivas e proteger outras crianças.
A partir do dia 22 de Maio, as vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica em Portugal terão uma linha telefónica (91 509 0000) e um e-mail (geral@grupovita.pt) para apresentar denúncias e pedir ajuda. Além de custear o tratamento psicoterapêutico de vítimas e familiares, a Igreja poderá ajudar as famílias a encontrar emprego e casa, nos casos em que a mudança seja necessária para escapar ao estigma. Rute Agulhas, à frente do Grupo Vita, criado para coordenar a resposta da Igreja ao flagelo, conta que em três anos o grupo deixe de existir, conquanto consiga a Igreja até lá assimilar as melhores práticas de actuação e resposta a estes casos.
Como vai funcionar na prática o Grupo Vita perante denúncias quer de vítimas, quer de agressores?
A nossa ideia é, a partir do dia 22 de Maio, abrirmos os canais de entrada, que neste momento são o email (geral@grupovita.pt) e o telemóvel (91 509 0000). A curto prazo, queremos estabelecer parcerias com serviços de proximidade, como juntas de freguesia, centros de dia, equipas de apoio à família, de apoio domiciliário, Cruz Vermelha, Segurança Social e algumas IPSS que têm uma relação próxima com pessoas que estão em casa, que podem não saber ler ou escrever, e que por isso têm mais dificuldade de acesso a estes meios. O objectivo nesta primeira fase é dar a conhecer o grupo e as respostas que podemos oferecer. Os contactos via e-mail ou telefone vão ser sempre acolhidos por um dos seis elementos deste grupo executivo – vamo-nos organizando à vez – e tentaremos, com um guião de atendimento e um protocolo de avaliação do risco, perceber se estamos perante uma pessoa que tem que ser atendida no dia ou encaminhada para uma urgência, porque pode estar descompensada ou ter ideação suicida, ou se é alguém que pode esperar uns dias por uma avaliação mais detalhada. Feita esta primeira avaliação, é marcado um atendimento idealmente presencial. Se for em Lisboa, será um dos quatro elementos executivos que estão em Lisboa; se for no Porto, será um dos restantes dois colegas. Nas restantes zonas do país, ou a pessoa se desloca até nós ou vamos nós ter com a pessoa.
No Porto e em Lisboa, esse atendimento presencial será feito onde?
Estamos ainda a definir os locais. Queremos que sejam locais neutros, descaracterizados, onde as pessoas se sintam confortáveis. A pessoa pode não se sentir à vontade num local demasiado próximo da Igreja, por exemplo. Se forem pessoas de mais longe, podemos fazer um atendimento online, dependerá sempre da pessoa que está do outro lado. Idealmente, o atendimento será feito por dois elementos do grupo executivo, para podermos cruzar o olhar. Neste atendimento, o grande objectivo é avaliar quais são as necessidades da pessoa: se é apoio psicológico, se é um encaminhamento para psiquiatria, ou um apoio mais social.
O apoio social poderá abranger que dimensões?
Desde logo, as famílias das vítimas também podem precisar de ser apoiadas. Às vezes, temos uma mãe deprimidíssima porque o filho foi abusado, um irmão que nem percebe bem o que se passa e que, de repente, vê a vida toda virada do avesso, porque toda a dinâmica familiar mudou. E as respostas serão sempre em função das necessidades. Às vezes, pode ser preciso ajudar as pessoas a mudarem de zona geográfica e a encontrar casa e emprego, sobretudo se forem pessoas mais indiferenciadas. Eu já acompanhei várias famílias de aldeias muito pequenas do Alentejo que queriam mudar de terra porque havia todo aquele estigma associado ao abuso. Mudar de terra quando somos diferenciados e temos dinheiro é uma coisa; quando se não o é, pode ser muito difícil. Nestes casos, é preciso este apoio social.
Ao nível do apoio no tratamento psicoterapêutico, que respostas contam ter?
Um dos objectivos de curto prazo é começar a identificar os psiquiatras, pedopsiquiatras e psicólogos que poderão vir a integrar a bolsa de profissionais aos quais será garantida formação e supervisão para poderem trabalhar com as pessoas. Claro que a pessoa tem sempre a liberdade de escolher por quem quer ser acompanhada, mas queremos ter uma reposta mais estruturada para oferecer, também porque sabemos que os profissionais com experiência e com formação específica nesta área não são assim tantos. Agora, isto não se consegue num mês ou dois.
Não é urgente, atendendo a que o barulho mediático em torno dos abusos sexuais na Igreja pode ter agudizado o trauma de muitas destas vítimas?
Até termos esta bolsa pronta, temos de ir à procura, caso a caso. Se aparecer alguém que vive em Aveiro, vamos tentar perceber que serviços existem naquela zona geográfica, que profissionais a nível privado poderão assegurar o acompanhamento. Imagine que há um psicólogo nessa zona geográfica que se diz disponível, mas que pede alguma ajuda ou alguma supervisão. Este grupo disponibilizará essa supervisão. Vamos tentar acelerar este processo, para termos estes profissionais identificados e formados o mais cedo possível. Isto não implica que não possamos disponibilizar toda a ajuda com os profissionais que até lá forem sendo identificados. Se a resposta for encontrada num serviço privado, porque sabemos que os serviços públicos são muito escassos, os custos são sempre suportados pela Igreja.
Existe alguma tensão com a comissão independente quanto à melhor solução para o acompanhamento psicoterapêutico, nomeadamente porque descartaram a sugestão de criação de uma “via verde” no SNS para o atendimento destas vítimas?
Não há tensão nenhuma, o que há é formas de pensar diferentes. A outra comissão, na pessoa do professor Daniel Sampaio, terá feito esse contacto com o SNS e terá recebido uma resposta positiva. Fomos informados disso, já fizemos contactos com o SNS e estamos a aguardar resposta para saber mais em detalhe qual seria este tipo de priorização. Mas, em abstracto, e salientando que ainda estamos à espera de mais informação por parte do responsável da área da saúde mental do SNS, pensamos que priorizar estas vítimas em detrimento de todos os outros milhares de pessoas que estão em lista de espera para uma consulta é uma injustiça social. Efectivamente, estas vítimas têm muito direito e muita necessidade de ajuda, tal como todas as outras pessoas que também são vítimas e que estão deprimidas, ansiosas, enfim.
Não receia que seja difícil superar a desconfiança que as vítimas possam ter relativamente a um grupo que, apesar de isento e autónomo, como sublinharam, funciona em articulação directa com as estruturas da Igreja?
Nós não temos de reportar à Igreja, teremos autonomia total em todas as decisões que tomarmos. Mas acreditamos que este deverá ser um grupo temporário, de transição, isto é, não pretendemos que o Grupo Vita exista durante 20 anos. Existem estruturas já criadas, nomeadamente as comissões diocesanas de protecção de menores, e nos próprios institutos religiosos, alguns dos quais têm já respostas muito consolidadas e muito pensadas, nomeadamente os jesuítas. Mas percebemos que neste momento as pessoas ainda olhem com alguma desconfiança para essas respostas, por serem vistas como estando muito próximas da Igreja.
E, no rescaldo do relatório da comissão independente, concluiu-se que ainda faz sentido um grupo como o nosso, independente e autónomo, que acolha e que dê respostas. Mas o objectivo é que este grupo traga respostas, capacite, crie recursos, e que depois deixe de ser necessário porque essas respostas consolidaram-se dentro da Igreja. Estamos, portanto, a falar de um período de transição, em que vamos tentar demonstrar que as pessoas podem confiar em nós, mas também podem confiar nas entidades que estamos a capacitar. E, naturalmente, isto só pode acontecer se trabalharmos de forma articulada com estas entidades. Se nos fecharmos numa bolha, não evoluímos. E penso que dois anos e meio a três anos será o tempo necessário para fazer este trabalho de formação e capacitação.
"Em momento algum senti que da parte da Igreja houvesse alguma tentativa de condicionar ou de sugestionar. Se o sentisse, não aceitaria coordenar este grupo."
Não há neste momento razão para que alguém que foi vítima de um abuso sexual dentro da Igreja desconfie da capacidade desta em actuar e reagir de forma consequente?
Eu acho que não há motivo para isso. Mas também percebo que são séculos e séculos de história que não se apagam assim de um dia para o outro. O processo de confiança é algo que demora tempo. É preciso convívio, interacção e garantir que aquilo que é dito é coerente com aquilo que se faz. Percebo isso. Mas é importante que se perceba que nos está a ser dada total autonomia. Em momento algum senti que da parte da Igreja houvesse alguma tentativa de condicionar ou de sugestionar. Se o sentisse, não aceitaria coordenar este grupo.
Não receia que esta vontade de encarar o problema que parte da Conferência Episcopal Portuguesa vá encontrando resistências, à medida que vai descendo ao nível das dioceses e das paróquias?
Eu acho que qualquer processo de mudança se depara com algumas resistências, a todos os níveis na nossa sociedade. Antecipo isso, porque temos a noção de que a Igreja é um universo enorme, composto por diferentes sensibilidades. Vamos procurar articular-nos com todas as entidades, das dioceses aos institutos religiosos, passando pela equipa nacional de coordenação, liderada pelo doutor José Souto Moura, e pelas próprias comissões diocesanas. Algumas destas comissões diocesanas têm estado a fazer um trabalho muito interessante, outras nem tanto. Vamos tentar perceber o que é que já está feito, o que pode ser aproveitado e o que pode ser melhorado, para tentar uniformizar os procedimentos e capacitar de igual forma todos os elementos que podem ter mais ou menos experiência nesta área.
Porque é que enfatizaram tanto a necessidade de trabalhar também com os agressores sexuais?
Porque trabalhar com agressores ou possíveis agressores é prevenir reincidência, é proteger crianças e é prevenir futuras situações de abuso. Já vi centenas ou milhares de vítimas de abuso sexual ao longo da vida e há um denominador comum à maior parte das vítimas: a preocupação de aquilo acontecer a mais alguém. As vítimas têm esta capacidade empática. Portanto, quero acreditar que as vítimas que nos ouvem consigam perceber que a intervenção junto dos agressores visa evitar que mais alguém passe pelo sofrimento que elas viveram. De outro modo, como protegemos as crianças? É mesmo importante lembrarmo-nos que trabalhar com agressores sexuais é prevenir reincidência e é proteger crianças.
Até porque alguns dos agressores foram antes vítimas e, por outro lado, não basta aplicar a alguém que cometeu um abuso sexual uma pena para impedir a reincidência.
Pois não. E atenção que isto não é uma desculpabilização do comportamento. As pessoas têm de ser responsabilizadas, quer do ponto de vista canónico, quer do ponto de vista penal. Este acompanhamento é paralelo e visa prevenir a recidiva. Nós sabemos que a taxa de reincidência é elevada neste tipo de crime. E sabemos também que quem ainda não cometeu, mas não tem ajuda de lado algum, vem a cometer. Lembro-me de um agressor que acompanhei há uns anos e que pensava nisso desde os seus 12, 13, 14 anos. Essa pessoa nunca teve coragem de falar com ninguém, nem sequer sabia onde, quando e como podia pedir ajuda, e foi aguentando até que, aos 19 anos de idade, passou ao acto e abusou de não sei quantas crianças. Nós temos de pensar nisto, nomeadamente porque o prognóstico de mudança é muito melhor nos jovens, nos quais este comportamento não está ainda cristalizado.
E a sociedade não tem respostas para isto?
Não tem e não podemos esquecer que esta é uma área muito estigmatizada. Uma coisa é um jovem dizer que às vezes lhe passa pela cabeça fumar um charro e outra é dizer que lhe passa pela cabeça ter relações sexuais com uma criança. Portanto, o problema não é assumido dessa forma. Há um estigma, uma vergonha, um tabu. E, quando isto é vivido em silêncio, a passagem ao acto é mais fácil.
Quais antevê como as maiores dificuldades no trabalho que se propõe coordenar?
Acho que a maior dificuldade pode estar precisamente relacionada com o trabalho com os agressores ou potenciais agressores, porque isso é abrir uma caixa de Pandora; é entrarmos num caminho onde de uma forma tão explícita ainda não se entrou em Portugal.
Mas antevê dificuldades na reabilitação dos agressores ou na eventual pouca receptividade em submeterem-se a um tratamento?
Para haver um processo terapêutico, a pessoa tem de reconhecer o comportamento, ou pelo menos as fantasias e os pensamentos que tem a esse nível. E, sendo um tema ainda tão tabu – assim como a sexualidade em geral é ainda um tema tabu em Portugal –, torna-se muito difícil falar sobre isso na perspectiva de quem perpetrou ou pode vir a perpetrar o comportamento. Acho por isso que a maior dificuldade será conquistarmos a confiança destas pessoas, fazendo-as acreditar que podem vir ter connosco e que estamos aqui para as ajudar, independentemente do que possa acontecer no processo judicial ou canónico.
O que vai constar do manual de prevenção que vão difundir junto das instituições da Igreja?
O manual de prevenção está pensado no âmbito daquele conjunto de materiais de apoio (em texto, em áudio, em língua gestual, em vídeo…), por via dos quais queremos aumentar a literacia das pessoas sobre este tema, relativamente ao qual há muitas falsas crenças e muitas ideias erradas que é preciso desconstruir, e que serão agregados no site www.grupovita.pt. O manual vai sistematizar esta problemática dos abusos, explicando o que é, quais são os factores de risco e os protectores, e apresentar estratégias práticas para minimizar o risco e aumentar a protecção, em contextos de grupo ou mais individualizados. Imagine um grupo de escuteiros que vai acampar: vamos pensar quais poderão ser os cuidados da parte dos adultos, do ponto de vista até da estruturação do ambiente. Isto é algo que começamos a ver, por exemplo, no contexto do desporto, para onde foi feito um manual de prevenção da violência, por mim e pela minha colega Joana Alexandre, onde existe a figura dos “guardiões”.
No contexto da Igreja, que sugestões práticas poderão dar, nomeadamente quanto aos confessionários ou aos seminários?
Em contexto de seminário ou de acampamento, é possível apontar as situações que devem ser evitadas, bem como determinado tipo de toques ou de contacto físico. O contacto físico também não deve ser diabolizado, porque as crianças e os jovens e os adultos precisam disso. Na ginástica ou na patinagem, por exemplo, o contacto físico entre o treinador e o atleta tem necessariamente de acontecer para corrigir movimentos. Mas, no contexto da Igreja, podemos pensar na questão dos abraços, de pegar a criança ao colo, na questão dos beijos e em que circunstâncias é que isso pode ser encarado de uma forma ou de outra. Não vamos determinar a proibição de tocar em crianças, porque estas precisam do calor humano, do toque e do conforto, mas vamos tentar definir alguns limites e explicar o que são factores de risco.
E quanto ao programa de prevenção primária?
Nós sabemos que, além de todas as acções que os adultos possam pôr em marcha, é importante trabalhar directamente com as crianças, transmitindo-lhes alguns conhecimentos e algumas competências. Em Portugal, já desenvolvemos dois programas para serem aplicados em contexto educativo para crianças em idade pré-escolar e em idade escolar. E há temas e estratégias e metodologias que são transversais a qualquer contexto. Mas, em função do contexto, também há especificidades. Na Igreja, o que propomos é desenvolver um conjunto de materiais e de metodologias que vão ser trabalhadas com as crianças. A ideia não é que sejamos nós a trabalhar com as crianças: vamos é formar os adultos (os professores nos colégios, os catequistas, pessoas dos grupos de jovens…) para que estes possam depois trabalhar com as crianças. Isto porque o que a literatura nos diz de forma clara é que estes programas são mais eficazes quando são dinamizados por um adulto significativo da criança. Eu não sou significativa para um grupo de crianças da catequese, mas o catequista é.
E estamos sempre a falar de coisas como ensinar à criança a capacidade de denunciar ou reportar aquilo que sente desconfortável?
Estamos a falar de temas como o corpo, os toques, os segredos, as emoções, o dizer não e o dizer sim, o pedir ajuda. O grande objectivo é que a criança consiga perceber esta realidade (e sempre com materiais adequados às idades, sem linguagem sexual explícita, o que, às vezes, é o receio dos adultos), aprendendo o que é o abuso, o que é adequado ou não, e ensinando-a a pedir ajuda. Não é pôr a tónica da prevenção da criança, mas empoderá-la e dar-lhe ferramentas, competências e conhecimentos. Aqui temos de ter presente que ter conhecimentos não significa ter competências. Por exemplo: toda a gente sabe que sem preservativo se engravida ou se apanham doenças sexualmente transmissíveis. E continuamos a ter uma taxa enorme de miúdos que têm relações sexuais desprotegidas. Há falta de conhecimento? Não, não há. Os miúdos sabem isto de trás para a frente. Mas, depois, isto não se traduz em comportamento. Alguma coisa está a falhar. Portanto, não basta dizer aos miúdos o que é o abuso e que tenham cuidado. Nós temos de trabalhar competências para que estes conhecimentos se traduzam em comportamentos.
O Governo já se predispôs a promover um estudo semelhante ao feito pela comissão independente a pedido da Igreja, mas alargado à sociedade, mais concretamente aos espaços de socialização das crianças. Poderá haver alguma articulação com o vosso trabalho?
Eu acho muito pertinente este estudo porque as informações que temos sobre o abuso sexual de crianças em Portugal são muito escassas. Temos apenas os dados do RASI [Relatório Anual de Segurança Interna], que são muito vagos. E, para além da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, será muito importante envolver também a Polícia Judiciária nesse estudo. Naturalmente que, se houver alguma possibilidade de articulação e isso for uma mais-valia, estamos totalmente disponíveis. Mas acho que é um passo muito importante a ser dado em Portugal, porque os dados do RASI não nos dizem quase nada. Sabemos as idades, o sexo, o tipo de relação, e mesmo assim as categorias que aparecem são vagas. Por exemplo, sabemos da literatura que, dos oito anos de idade para a frente, o risco tende a aumentar para as meninas e a diminuir para os rapazes, mas não sabemos se é isso que acontece também em Portugal, porque isso implica uma análise estatística dos dados que não é feita no RASI. E, hoje em dia, sobretudo depois da pandemia, temos também um acréscimo bastante significativo dos abusos via online. Toda esta realidade dos chats online e dos jogos também exige ser estudada de uma forma mais aprofundada.