O Luxemburgo, o país mais rico do mundo, aprovou uma lei que proíbe a mendicidade na capital entre as 7h e as 22h. Grupos de direitos humanos acusam o grão-ducado de querer tornar a pobreza invisível.
Toda a gente parece ter vindo hoje ao centro da capital luxemburguesa, mas ninguém parece reparar em José Monteiro, que está sentado no chão da Place d’Armes, a principal praça da cidade, enrolado num cobertor e com um copo diante de si — onde de vez em quando alguém deposita umas moedas, que ele garante usar para comida. E, vá, uma cerveja ou outra. “Sou o inimigo público número um deste país”, zomba o português de 49 anos. Tem a barba esbranquiçada, um olhar doce, 18 anos de emigração no grão-ducado — os últimos dois a dormir ininterruptamente debaixo de um telhado de estrelas.
Quando chegou de Castro Daire, carregava todos os sonhos do mundo consigo. No Luxemburgo, foi pedreiro e pintor da construção civil, até a vida lhe trocar as voltas. “Aleijei-me num braço e depois disso ninguém me contratava no ínterins”, conta. Zé, é assim que pede que o tratemos, passou mais de 15 anos com contratos firmados com agências de emprego temporárias — os tais ínterins. Quando escorregou do andaime, tropeçou nas contas. Primeiro perdeu o emprego, depois a namorada e os amigos, a seguir deixou de conseguir pagar o quarto que arrendava por cima de um café na Gare, o bairro de má fama da capital.
“Fiquei muito tempo a evitar a calçada. Andava de um lado para o outro durante a noite, só para não me deitar. Se fosse num banco de jardim, conseguia descansar um bocadinho. Mas sempre tive medo de ir ao chão, tinha esta sensação de que, se dormisse na terra, nunca mais me ia conseguir levantar”, conta. Durante meses navegou invisível pelas ruas da capital. Aproveitava para descansar nos transportes públicos, uma bênção gratuita do país mais rico do mundo. “E fui deprimindo, perdi as forças para fazer o que quer que seja. É fácil um homem ir-se abaixo quando não dorme nem pode tomar um duche”, diz, encolhendo os ombros.
Agora os seus dias são isto: deixar passar as horas e tentar arranjar umas moedas para o básico. Quando as coisas correm melhor, consegue estada na Pousada da Juventude. São dias raros. São dias bons.
A maioria das pessoas não o vê realmente. “Sou capaz de passar uma manhã inteira sem ninguém olhar para mim. Depois há os que deixam umas moedas, os que falam um bocadinho e os que me insultam. De há uns tempos para cá, há mais gente a tratar-me mal. Gritam-me para sair daqui, para arranjar um trabalho, para fazer alguma coisa. Eu gostava, gostava muito, mas não consigo”, e quando se lamenta, encolhe-se mais um bocadinho. Uma vez, um grupo de rapazes rodeou-o e começou a desferir-lhe pontapés. “Gritavam que era um inútil e devia desaparecer. Teve de vir a polícia salvar-me.” Diz que gosta da polícia, porque ao menos falam com ele.
E agora está ali na Place d’Armes, com o mundo que funciona a correr-lhe à volta. Com um copo para recolher moedas diante dos pés. O inimigo público número um da cidade é um homem desgastado e frágil. Um estorvo — que ninguém quer verdadeiramente ver.
Fora-da-lei
A câmara municipal do Luxemburgo, uma coligação entre democratas-cristãos e liberais liderada pela presidente Lydie Polfer, aprovou a 27 de Março uma lei que quer impedir qualquer forma de mendicidade nas principais ruas da capital entre as 7h e as 22h. Havia já o artigo 41.º do Código Policial, que impedia desde 2015 os grupos de pedintes organizados de actuarem na capital, mas a medida foi reforçada agora com o artigo 42.º, que impede qualquer cidadão de pedir esmolas na rua. A oposição foi unânime em condenar a medida e várias organizações de direitos humanos catalogaram-na como “desumana”.
A Comissão Consultiva dos Direitos Humanos do Luxemburgo falou claramente: “Esta medida é um insulto ao Estado de direito. É uma discriminação muito, muito perigosa", disse o presidente da associação, Gilbert Pregno.
Por seu lado, Bernard Thill, presidente dos Médicos do Mundo, duvida de que a lei possa ser aplicada. “Ela viola claramente a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da qual o Luxemburgo é signatário.” O médico, eleito Luxemburguês do Ano em 2022, diz-se profundamente chocado com esta iniciativa do município. “O que a câmara está a fazer é tentar esconder a realidade, tornando ainda mais invisíveis os que já o são. Em vez de criar medidas de apoio às pessoas que querem sair das ruas, julgam-nas e criminalizam-nas. É um gesto de uma desumanidade inaceitável.” Em Junho, note-se, há eleições locais.
No início desta semana, o P2 enviou uma série de perguntas sobre esta polémica lei à câmara do Luxemburgo. Sem responder a qualquer questão, o gabinete de imprensa da autarquia sugeriu uma conversa pessoal com Lydie Polfer numa data a determinar.
Municípios como Diekirch e Ettelbruck, no Norte do país, tinham já aprovado medidas semelhantes, mas estas nunca foram postas em prática por violarem as leis básicas. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já no ano passado revogou legislação que tentava castigar a mendicidade numa cidade suíça. “Claro que há um problema galopante, mas esta não é seguramente a forma de o tratar”, diz Bernard Thill. “A pandemia, a crise imobiliária e a inflação estão a atirar muita gente para situações de pobreza. Os últimos números do Statec dizem que 19% das pessoas que residem no país mais rico do mundo vivem abaixo da linha de pobreza. E nós, que trabalhamos no terreno, sabemos bem que as coisas estão a piorar.”
Thill acredita que esta ideia serve um único propósito: esconder a pobreza da vista de todos, em vez de a enfrentar. “Sou médico, toda a vida aprendi que, quando há um problema de saúde pública, não o resolvemos fingindo que não existe. Temos de fazer medicina preventiva, ajudar as pessoas e dar-lhes oportunidades de se reintegrarem na sociedade”, diz. Puxa dos números para dar substância ao argumento. “A maioria de nós é rápida a julgar. Mas não temos consciência de que um terço dos cidadãos que vivem sem tecto trabalham e pagam impostos — pura e simplesmente caíram em situações de precariedade extrema e têm dificuldades em sair dela.”
Sou capaz de passar uma manhã inteira sem ninguém olhar para mim. Depois há os que deixam umas moedas, os que falam um bocadinho e os que me insultam José Monteiro
Um dos grandes problemas da capital luxemburguesa, diz o médico, é a falta de abrigo para quem não o tem. Em Abril fechou portas o Wanteraktioun, ou Acção de Inverno, o maior refúgio que o país tem para os que vivem na rua. As 250 camas preparadas para acolher a população sem abrigo só estão livres nos meses de frio — depois disso os ocupantes retornam às ruas. “É dramático que isto aconteça. Por terem uma cama e um banho, muitas pessoas começam a reerguer-se, encontram trabalho, ganham uma estrutura. E depois são despejadas e tudo cai por terra”, afirma Thill.
Virginie Giarmana, directora adjunta do Inter-Actions, uma das mais activas organizações do país no apoio à população sem abrigo, prefere não comentar a nova lei que o município da capital aprovou, mas é rigorosa nos números. “Quando o Wanteraktioun termina, há 30 camas disponíveis na cidade para acolher a população que não tem abrigo. Há 10 camas na Cruz Vermelha, dez na Cáritas e outras tantas no Abrigo Feminino. Depois disso, há o Abrigado, que tem 45 camas disponíveis, sim, mas apenas para a população toxicodependente”, diz ela. No ano passado, 1236 pessoas passaram pelo albergue de Inverno da capital luxemburguesa.
A crise saiu à rua
Dennis Delcroix caiu e levantou-se. Filho de pais belgas, cresceu toda a vida no Luxemburgo. Estudou hotelaria porque sempre sonhou ser cozinheiro. Trabalhou para uma infinitude de gente e foi quando abriu o próprio negócio que as coisas começaram a correr mal. “Juntei-me a um sócio e conseguimos a exploração de uma brasserie na Abadia de Neimuenster, no Grund. Mas ele não foi claro com as contas e fomos acumulando dívidas sem que eu me apercebesse. Um dia, ele desapareceu do mapa e eu percebi que tinha um grande problema entre mãos. Trinta mil euros de dívida à Segurança Social e nenhum fundo de caixa”, conta.
A história de Dennis foi o fio condutor do documentário Croque-Monsieur, exibido há semanas na cadeia de televisão RTL. Os realizadores são dois sul-africanos, Louis Grobbelaar e Pieter Seyffert, que passaram dois anos e meio a acompanhar a população sem abrigo da capital. “Se há coisa de que me apercebi é de como a linha é ténue para uma pessoa cair na rua”, diz Grobbelaar. “É muito mais fácil do que alguém possa pensar, e pode acontecer a cada um de nós. Esta lei não resolve os problemas, tenta escondê-los. Não sei sequer como ela passou.” Para o documentarista, é com o apoio à população sem abrigo que se recupera a dignidade e a humanidade, não com a sua condenação.
Dennis é um exemplo disso. Foi parar às ruas, mas o que ele queria era trabalhar. Conseguiu abrigo no Wanteraktioun, e depois foi instalado numa casa de recuperação e preparação para a vida activa em Michelau. Hoje, é chef do Bistro Beim Renert, um café histórico da Place Guillaume II que tem fama de servir um dos melhores croque-monsieurs (tosta mista) da capital. “Se não tivesse tido ajuda, não me tinha conseguido levantar. E esta coisa de esconder aqueles que não queremos ver só ajuda a que gente como eu não consiga recuperar nunca. É muito cruel, esta coisa que a câmara do Luxemburgo está a fazer”, revolta-se o cozinheiro.
Nem toda a gente pensa assim. Perto de Hamilius, também no centro, Claude Clemes desespera. Tem um escritório de advogados numa galeria comercial que está constantemente ocupada por sem-abrigo. “Alguns vivem aqui há anos e não querem sair desta vida. Sempre que tenho clientes a vir ao meu escritório, eles têm de se confrontar com esta imagem de gente a dormir no chão e com o mau cheiro constante. É assim há muito tempo e alguém tem de fazer alguma coisa.”
Lazlo Szabu, cujo nome de rua é Pufi, ouve-o atentamente e balbucia: “Desculpe lá, doutor.” Húngaro, tem 36 anos de vida e seis de rua. São ele e mais meia dúzia de companheiros os ocupantes da galeria. “O problema é que não conseguimos casa. Arranjamos uns trabalhitos de vez em quando, mas nunca dá para pagar um quarto. Eu já me habituei a viver aqui, porque nos fomos tornando uma família, tomamos conta uns dos outros. Se alguém vai pedir dinheiro na rua, partilha com toda a gente. Se alguém vai para as obras fazer um trabalho, divide o que ganha connosco. Gastamos tudo em comida. E em bebida, pronto.”
Clemes, o advogado, também percebe o ponto. Diz que o que fazia falta era mesmo soluções para a crise da habitação, e programas de reinserção social. “Não estou a dizer que esta nova lei seja solução para coisa nenhuma. Mas, como comerciante da cidade, sinto-me aliviado por ouvir finalmente uma proposta que confronte o problema. Talvez varrer o lixo para debaixo do tapete não funcione, OK. Mas já era tempo de fazer alguma coisa. E se calhar agora vamos mesmo ter de olhar para a população sem abrigo. Continuar como está é que não dá”, diz, e puxa o botão do elevador para regressar ao escritório.
Encosta-te a mim
Todas as manhãs, entre as 10h e as 12h, os Médicos do Mundo dão consultas gratuitas à população que não tem acesso a cuidados de saúde. Em 2021 atenderam 1391 pacientes. Em 2020, tinham prestado apoio a 771 pessoas — metade, o que é um sinal do crescimento da precariedade no país mais rico do mundo. Os pacientes são na maioria pessoas sem documentos, ou que trabalham sem contratos. Do total, 97,5% vivem em situação de pobreza. A maioria, na rua. Muitos pedem dinheiro a quem passa para sobreviver.
Mario Danelutti tem 55 anos, é luxemburguês. Trabalhou no Citi Bank até o seu departamento ser fechado e a partir daí os únicos trabalhos que encontrou foram sem contrato, na restauração. “Às vezes, não me pagavam e eu vingava-me levando umas garrafas para casa, foi assim que me meti no álcool. Foi isso que me estragou a vida, também. Não ganhava para pagar a casa, e como não tinha morada deixei de ter trabalho. Então bebia para esquecer.”
Nunca se esquecerá da primeira noite que dormiu na rua, em 2016. “A noite pode ser muito longa, pode não terminar nunca. Andas às voltas e não queres ir para o chão, até te faltarem forças e teres de te render. Mas, quando perdes essa batalha, é a guerra inteira que estás a perder. A tua vida não volta a ser a mesma. A rua fica-te entranhada nos ossos.” Diz que nunca quis piedade, apenas um tecto e uma oportunidade de trabalho. Pediu nas ruas, sim, porque se fartou de vasculhar caixotes de lixo à procura de pão. “A maioria das pessoas não sabe que há uma grande solidariedade na malta sem abrigo. Que uns pedem para os outros e todos se ajudam de alguma forma. É isso uma rede de tráfico humano? Não, é uma rede de suporte. Porque a cidade não nos dá nenhuma”, atira.
Do consultório médico saiu Gabriel Avadanei, com a mesmíssima idade. Romeno, veio há dez anos trabalhar para a construção civil. Um dia teve um ataque cardíaco que lhe imobilizou o lado direito do corpo. “E depois começa a cair tudo como um castelo de cartas. Não arranjas emprego, perdes o tecto, vais para a rua. Assim, de um momento para o outro.” Garante nunca se ter metido em álcool ou drogas, e os médicos confirmam com um aceno de cabeça. “Há dez meses, fui atropelado e isso acabou por ser a minha sorte. Porque comecei a ter assistência aqui, e depois arranjaram-me um quartito para dormir e agora já tenho alguma dignidade. A sério”, repete, “ainda bem que fui atropelado.”
Agora começa a cair o fim da tarde e isso significa que é hora de a equipa do Premier Appel avançar cidade dentro. Nelson dos Reis e Nuno Sousa estão hoje a cumprir o programa de emergência de rua da associação Inter-Actions. Todos os dias, entre as 17h e as 22h, correm as ruas da capital para avaliar a população sem-abrigo. Distribuem sopa, chá e café e tentam perceber quem está numa situação aflitiva.
Está sempre a aparecer gente nova, dizem. “Quando o Wanteraktioun fecha, o telefone não pára de tocar. Ou é a polícia, ou é alguém que tem um sem-abrigo à porta de casa, ou simplesmente queixas anónimas”, conta Reis, enquanto atravessa a Grand-Rue. Vai parando para cumprimentar a gente que está sentada no chão. Café, todos aceitam. Sopa, só alguns.
Na Rue des Bains, junto aos cafés e bares invariavelmente cheios, está um homem francês enrolado nos cobertores. “Aqui está um caso recuperável”, apostam os dois quando acabam de lhe servir uma bebida quente. “Há uns assim, que tiveram azar e vieram parar à rua. Muitos não querem ir para o Abrigo de Inverno, sabes porquê? Porque não suportam o cheiro. E depois há casos daqueles que saem da prisão e cometem um furto ou um pequeno crime para voltarem a ser institucionalizados. Preferem estar presos do que ficar na rua”, contam os assistentes sociais. “E quem é que os pode levar a mal?”
A marcha continua em direcção à Gëlle Fra, estátua dourada que é símbolo de um país inteiro. Nelson e Nuno descem para o jardim, onde, invisível a todos os olhares, nasceu uma cidade de cartão e plástico. “Há exercícios de arquitectura e engenharia extraordinários”, ri-se Sousa antes de se dirigir às pessoas que ali habitam. Quando o faz, agacha-se sempre e mantém o olhar ao mesmo nível. “É uma questão de dignidade”, explica. “Falar com as pessoas à altura em que elas estão. Estes são seres humanos vulneráveis, normalmente com pouquíssima auto-estima. Tratá-los com decência é o mínimo que podemos fazer por eles.”
Depois da ronda, os homens avaliam quem estava em condições piores. “Temos três camas de emergência para quem está doente ou a passar mesmo mal. Não chega para nada”, lamentam-se. Há noites em que precisavam de 20 poisos, mas o Luxemburgo não os tem para quem está na rua.
No país mais rico do planeta, parecem concordar todas as associações, faltam políticas que tirem a gente das ruas. E, como diz Bernard Thill, presidente dos Médicos do Mundo, “não é a tentar varrer os mendigos daqui para fora que eles vão desaparecer. Quanto mais invisíveis os quisermos tornar, mais eles vão crescer. Ignorar o problema, tentar escondê-lo, é fechar a porta a tudo o que nos torna humanos.”
Texto publicado originalmente no Contacto, jornal luxemburguês em língua portuguesa
Toda a gente parece ter vindo hoje ao centro da capital luxemburguesa, mas ninguém parece reparar em José Monteiro, que está sentado no chão da Place d’Armes, a principal praça da cidade, enrolado num cobertor e com um copo diante de si — onde de vez em quando alguém deposita umas moedas, que ele garante usar para comida. E, vá, uma cerveja ou outra. “Sou o inimigo público número um deste país”, zomba o português de 49 anos. Tem a barba esbranquiçada, um olhar doce, 18 anos de emigração no grão-ducado — os últimos dois a dormir ininterruptamente debaixo de um telhado de estrelas.
Quando chegou de Castro Daire, carregava todos os sonhos do mundo consigo. No Luxemburgo, foi pedreiro e pintor da construção civil, até a vida lhe trocar as voltas. “Aleijei-me num braço e depois disso ninguém me contratava no ínterins”, conta. Zé, é assim que pede que o tratemos, passou mais de 15 anos com contratos firmados com agências de emprego temporárias — os tais ínterins. Quando escorregou do andaime, tropeçou nas contas. Primeiro perdeu o emprego, depois a namorada e os amigos, a seguir deixou de conseguir pagar o quarto que arrendava por cima de um café na Gare, o bairro de má fama da capital.
“Fiquei muito tempo a evitar a calçada. Andava de um lado para o outro durante a noite, só para não me deitar. Se fosse num banco de jardim, conseguia descansar um bocadinho. Mas sempre tive medo de ir ao chão, tinha esta sensação de que, se dormisse na terra, nunca mais me ia conseguir levantar”, conta. Durante meses navegou invisível pelas ruas da capital. Aproveitava para descansar nos transportes públicos, uma bênção gratuita do país mais rico do mundo. “E fui deprimindo, perdi as forças para fazer o que quer que seja. É fácil um homem ir-se abaixo quando não dorme nem pode tomar um duche”, diz, encolhendo os ombros.
Agora os seus dias são isto: deixar passar as horas e tentar arranjar umas moedas para o básico. Quando as coisas correm melhor, consegue estada na Pousada da Juventude. São dias raros. São dias bons.
A maioria das pessoas não o vê realmente. “Sou capaz de passar uma manhã inteira sem ninguém olhar para mim. Depois há os que deixam umas moedas, os que falam um bocadinho e os que me insultam. De há uns tempos para cá, há mais gente a tratar-me mal. Gritam-me para sair daqui, para arranjar um trabalho, para fazer alguma coisa. Eu gostava, gostava muito, mas não consigo”, e quando se lamenta, encolhe-se mais um bocadinho. Uma vez, um grupo de rapazes rodeou-o e começou a desferir-lhe pontapés. “Gritavam que era um inútil e devia desaparecer. Teve de vir a polícia salvar-me.” Diz que gosta da polícia, porque ao menos falam com ele.
E agora está ali na Place d’Armes, com o mundo que funciona a correr-lhe à volta. Com um copo para recolher moedas diante dos pés. O inimigo público número um da cidade é um homem desgastado e frágil. Um estorvo — que ninguém quer verdadeiramente ver.
Fora-da-lei
A câmara municipal do Luxemburgo, uma coligação entre democratas-cristãos e liberais liderada pela presidente Lydie Polfer, aprovou a 27 de Março uma lei que quer impedir qualquer forma de mendicidade nas principais ruas da capital entre as 7h e as 22h. Havia já o artigo 41.º do Código Policial, que impedia desde 2015 os grupos de pedintes organizados de actuarem na capital, mas a medida foi reforçada agora com o artigo 42.º, que impede qualquer cidadão de pedir esmolas na rua. A oposição foi unânime em condenar a medida e várias organizações de direitos humanos catalogaram-na como “desumana”.
A Comissão Consultiva dos Direitos Humanos do Luxemburgo falou claramente: “Esta medida é um insulto ao Estado de direito. É uma discriminação muito, muito perigosa", disse o presidente da associação, Gilbert Pregno.
Por seu lado, Bernard Thill, presidente dos Médicos do Mundo, duvida de que a lei possa ser aplicada. “Ela viola claramente a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da qual o Luxemburgo é signatário.” O médico, eleito Luxemburguês do Ano em 2022, diz-se profundamente chocado com esta iniciativa do município. “O que a câmara está a fazer é tentar esconder a realidade, tornando ainda mais invisíveis os que já o são. Em vez de criar medidas de apoio às pessoas que querem sair das ruas, julgam-nas e criminalizam-nas. É um gesto de uma desumanidade inaceitável.” Em Junho, note-se, há eleições locais.
No início desta semana, o P2 enviou uma série de perguntas sobre esta polémica lei à câmara do Luxemburgo. Sem responder a qualquer questão, o gabinete de imprensa da autarquia sugeriu uma conversa pessoal com Lydie Polfer numa data a determinar.
Municípios como Diekirch e Ettelbruck, no Norte do país, tinham já aprovado medidas semelhantes, mas estas nunca foram postas em prática por violarem as leis básicas. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já no ano passado revogou legislação que tentava castigar a mendicidade numa cidade suíça. “Claro que há um problema galopante, mas esta não é seguramente a forma de o tratar”, diz Bernard Thill. “A pandemia, a crise imobiliária e a inflação estão a atirar muita gente para situações de pobreza. Os últimos números do Statec dizem que 19% das pessoas que residem no país mais rico do mundo vivem abaixo da linha de pobreza. E nós, que trabalhamos no terreno, sabemos bem que as coisas estão a piorar.”
Thill acredita que esta ideia serve um único propósito: esconder a pobreza da vista de todos, em vez de a enfrentar. “Sou médico, toda a vida aprendi que, quando há um problema de saúde pública, não o resolvemos fingindo que não existe. Temos de fazer medicina preventiva, ajudar as pessoas e dar-lhes oportunidades de se reintegrarem na sociedade”, diz. Puxa dos números para dar substância ao argumento. “A maioria de nós é rápida a julgar. Mas não temos consciência de que um terço dos cidadãos que vivem sem tecto trabalham e pagam impostos — pura e simplesmente caíram em situações de precariedade extrema e têm dificuldades em sair dela.”
Sou capaz de passar uma manhã inteira sem ninguém olhar para mim. Depois há os que deixam umas moedas, os que falam um bocadinho e os que me insultam José Monteiro
Um dos grandes problemas da capital luxemburguesa, diz o médico, é a falta de abrigo para quem não o tem. Em Abril fechou portas o Wanteraktioun, ou Acção de Inverno, o maior refúgio que o país tem para os que vivem na rua. As 250 camas preparadas para acolher a população sem abrigo só estão livres nos meses de frio — depois disso os ocupantes retornam às ruas. “É dramático que isto aconteça. Por terem uma cama e um banho, muitas pessoas começam a reerguer-se, encontram trabalho, ganham uma estrutura. E depois são despejadas e tudo cai por terra”, afirma Thill.
Virginie Giarmana, directora adjunta do Inter-Actions, uma das mais activas organizações do país no apoio à população sem abrigo, prefere não comentar a nova lei que o município da capital aprovou, mas é rigorosa nos números. “Quando o Wanteraktioun termina, há 30 camas disponíveis na cidade para acolher a população que não tem abrigo. Há 10 camas na Cruz Vermelha, dez na Cáritas e outras tantas no Abrigo Feminino. Depois disso, há o Abrigado, que tem 45 camas disponíveis, sim, mas apenas para a população toxicodependente”, diz ela. No ano passado, 1236 pessoas passaram pelo albergue de Inverno da capital luxemburguesa.
A crise saiu à rua
Dennis Delcroix caiu e levantou-se. Filho de pais belgas, cresceu toda a vida no Luxemburgo. Estudou hotelaria porque sempre sonhou ser cozinheiro. Trabalhou para uma infinitude de gente e foi quando abriu o próprio negócio que as coisas começaram a correr mal. “Juntei-me a um sócio e conseguimos a exploração de uma brasserie na Abadia de Neimuenster, no Grund. Mas ele não foi claro com as contas e fomos acumulando dívidas sem que eu me apercebesse. Um dia, ele desapareceu do mapa e eu percebi que tinha um grande problema entre mãos. Trinta mil euros de dívida à Segurança Social e nenhum fundo de caixa”, conta.
A história de Dennis foi o fio condutor do documentário Croque-Monsieur, exibido há semanas na cadeia de televisão RTL. Os realizadores são dois sul-africanos, Louis Grobbelaar e Pieter Seyffert, que passaram dois anos e meio a acompanhar a população sem abrigo da capital. “Se há coisa de que me apercebi é de como a linha é ténue para uma pessoa cair na rua”, diz Grobbelaar. “É muito mais fácil do que alguém possa pensar, e pode acontecer a cada um de nós. Esta lei não resolve os problemas, tenta escondê-los. Não sei sequer como ela passou.” Para o documentarista, é com o apoio à população sem abrigo que se recupera a dignidade e a humanidade, não com a sua condenação.
Dennis é um exemplo disso. Foi parar às ruas, mas o que ele queria era trabalhar. Conseguiu abrigo no Wanteraktioun, e depois foi instalado numa casa de recuperação e preparação para a vida activa em Michelau. Hoje, é chef do Bistro Beim Renert, um café histórico da Place Guillaume II que tem fama de servir um dos melhores croque-monsieurs (tosta mista) da capital. “Se não tivesse tido ajuda, não me tinha conseguido levantar. E esta coisa de esconder aqueles que não queremos ver só ajuda a que gente como eu não consiga recuperar nunca. É muito cruel, esta coisa que a câmara do Luxemburgo está a fazer”, revolta-se o cozinheiro.
Nem toda a gente pensa assim. Perto de Hamilius, também no centro, Claude Clemes desespera. Tem um escritório de advogados numa galeria comercial que está constantemente ocupada por sem-abrigo. “Alguns vivem aqui há anos e não querem sair desta vida. Sempre que tenho clientes a vir ao meu escritório, eles têm de se confrontar com esta imagem de gente a dormir no chão e com o mau cheiro constante. É assim há muito tempo e alguém tem de fazer alguma coisa.”
Lazlo Szabu, cujo nome de rua é Pufi, ouve-o atentamente e balbucia: “Desculpe lá, doutor.” Húngaro, tem 36 anos de vida e seis de rua. São ele e mais meia dúzia de companheiros os ocupantes da galeria. “O problema é que não conseguimos casa. Arranjamos uns trabalhitos de vez em quando, mas nunca dá para pagar um quarto. Eu já me habituei a viver aqui, porque nos fomos tornando uma família, tomamos conta uns dos outros. Se alguém vai pedir dinheiro na rua, partilha com toda a gente. Se alguém vai para as obras fazer um trabalho, divide o que ganha connosco. Gastamos tudo em comida. E em bebida, pronto.”
Clemes, o advogado, também percebe o ponto. Diz que o que fazia falta era mesmo soluções para a crise da habitação, e programas de reinserção social. “Não estou a dizer que esta nova lei seja solução para coisa nenhuma. Mas, como comerciante da cidade, sinto-me aliviado por ouvir finalmente uma proposta que confronte o problema. Talvez varrer o lixo para debaixo do tapete não funcione, OK. Mas já era tempo de fazer alguma coisa. E se calhar agora vamos mesmo ter de olhar para a população sem abrigo. Continuar como está é que não dá”, diz, e puxa o botão do elevador para regressar ao escritório.
Encosta-te a mim
Todas as manhãs, entre as 10h e as 12h, os Médicos do Mundo dão consultas gratuitas à população que não tem acesso a cuidados de saúde. Em 2021 atenderam 1391 pacientes. Em 2020, tinham prestado apoio a 771 pessoas — metade, o que é um sinal do crescimento da precariedade no país mais rico do mundo. Os pacientes são na maioria pessoas sem documentos, ou que trabalham sem contratos. Do total, 97,5% vivem em situação de pobreza. A maioria, na rua. Muitos pedem dinheiro a quem passa para sobreviver.
Mario Danelutti tem 55 anos, é luxemburguês. Trabalhou no Citi Bank até o seu departamento ser fechado e a partir daí os únicos trabalhos que encontrou foram sem contrato, na restauração. “Às vezes, não me pagavam e eu vingava-me levando umas garrafas para casa, foi assim que me meti no álcool. Foi isso que me estragou a vida, também. Não ganhava para pagar a casa, e como não tinha morada deixei de ter trabalho. Então bebia para esquecer.”
Nunca se esquecerá da primeira noite que dormiu na rua, em 2016. “A noite pode ser muito longa, pode não terminar nunca. Andas às voltas e não queres ir para o chão, até te faltarem forças e teres de te render. Mas, quando perdes essa batalha, é a guerra inteira que estás a perder. A tua vida não volta a ser a mesma. A rua fica-te entranhada nos ossos.” Diz que nunca quis piedade, apenas um tecto e uma oportunidade de trabalho. Pediu nas ruas, sim, porque se fartou de vasculhar caixotes de lixo à procura de pão. “A maioria das pessoas não sabe que há uma grande solidariedade na malta sem abrigo. Que uns pedem para os outros e todos se ajudam de alguma forma. É isso uma rede de tráfico humano? Não, é uma rede de suporte. Porque a cidade não nos dá nenhuma”, atira.
Do consultório médico saiu Gabriel Avadanei, com a mesmíssima idade. Romeno, veio há dez anos trabalhar para a construção civil. Um dia teve um ataque cardíaco que lhe imobilizou o lado direito do corpo. “E depois começa a cair tudo como um castelo de cartas. Não arranjas emprego, perdes o tecto, vais para a rua. Assim, de um momento para o outro.” Garante nunca se ter metido em álcool ou drogas, e os médicos confirmam com um aceno de cabeça. “Há dez meses, fui atropelado e isso acabou por ser a minha sorte. Porque comecei a ter assistência aqui, e depois arranjaram-me um quartito para dormir e agora já tenho alguma dignidade. A sério”, repete, “ainda bem que fui atropelado.”
Agora começa a cair o fim da tarde e isso significa que é hora de a equipa do Premier Appel avançar cidade dentro. Nelson dos Reis e Nuno Sousa estão hoje a cumprir o programa de emergência de rua da associação Inter-Actions. Todos os dias, entre as 17h e as 22h, correm as ruas da capital para avaliar a população sem-abrigo. Distribuem sopa, chá e café e tentam perceber quem está numa situação aflitiva.
Está sempre a aparecer gente nova, dizem. “Quando o Wanteraktioun fecha, o telefone não pára de tocar. Ou é a polícia, ou é alguém que tem um sem-abrigo à porta de casa, ou simplesmente queixas anónimas”, conta Reis, enquanto atravessa a Grand-Rue. Vai parando para cumprimentar a gente que está sentada no chão. Café, todos aceitam. Sopa, só alguns.
Na Rue des Bains, junto aos cafés e bares invariavelmente cheios, está um homem francês enrolado nos cobertores. “Aqui está um caso recuperável”, apostam os dois quando acabam de lhe servir uma bebida quente. “Há uns assim, que tiveram azar e vieram parar à rua. Muitos não querem ir para o Abrigo de Inverno, sabes porquê? Porque não suportam o cheiro. E depois há casos daqueles que saem da prisão e cometem um furto ou um pequeno crime para voltarem a ser institucionalizados. Preferem estar presos do que ficar na rua”, contam os assistentes sociais. “E quem é que os pode levar a mal?”
A marcha continua em direcção à Gëlle Fra, estátua dourada que é símbolo de um país inteiro. Nelson e Nuno descem para o jardim, onde, invisível a todos os olhares, nasceu uma cidade de cartão e plástico. “Há exercícios de arquitectura e engenharia extraordinários”, ri-se Sousa antes de se dirigir às pessoas que ali habitam. Quando o faz, agacha-se sempre e mantém o olhar ao mesmo nível. “É uma questão de dignidade”, explica. “Falar com as pessoas à altura em que elas estão. Estes são seres humanos vulneráveis, normalmente com pouquíssima auto-estima. Tratá-los com decência é o mínimo que podemos fazer por eles.”
Depois da ronda, os homens avaliam quem estava em condições piores. “Temos três camas de emergência para quem está doente ou a passar mesmo mal. Não chega para nada”, lamentam-se. Há noites em que precisavam de 20 poisos, mas o Luxemburgo não os tem para quem está na rua.
No país mais rico do planeta, parecem concordar todas as associações, faltam políticas que tirem a gente das ruas. E, como diz Bernard Thill, presidente dos Médicos do Mundo, “não é a tentar varrer os mendigos daqui para fora que eles vão desaparecer. Quanto mais invisíveis os quisermos tornar, mais eles vão crescer. Ignorar o problema, tentar escondê-lo, é fechar a porta a tudo o que nos torna humanos.”
Texto publicado originalmente no Contacto, jornal luxemburguês em língua portuguesa