22.5.23

Um quarto para cinco por mil euros: a vida de inúmeros imigrantes em Lisboa e Porto

Camilo Soldado (Texto),Samuel Alemão (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia), in Púbico online

Dois incidentes com vítimas expuseram sobrelotação em que vivem migrantes no coração das duas principais cidades portuguesas. Entre as comunidades, multiplicam-se queixas sobre condições de habitação.

O relógio por cima da porta de acesso à principal sala da Mesquita de Baitul Marrakan marca 20h48. Os homens descalços dão-lhe um olhar apressado antes de entrarem com um esgar a denotar aflição. Lá dentro, perto de centena e meia de indivíduos ajoelham-se e debruçam-se sobre o solo alcatifado, sincronizados ao ritmo das precações do imã principal da Comunidade Islâmica do Bangladesh de Lisboa, Mohamed Abu Sayed. Não há espaço e, por isso, vão-se encaminhando através de uma escada metálica para o piso superior, para apanharem os instantes finais da mais concorrida oração do dia.

Muitos já não conseguem chegar a tempo. A dado momento, um funcionário do templo situado no Beco de São Marçal, mesmo ao lado da Calçada Agostinho de Carvalho, no coração do bairro lisboeta da Mouraria, coloca uma baia a vedar a zona da lavagem dos pés. Apesar disso, os crentes, muitos deles jovens envergando camisolas com logótipos de conhecidas marcas internacionais de roupa, mantêm um fluxo constante de chegada. “Está cheio, não dá mais”, diz o líder religioso, soltando uma pequena gargalhada, quando, após a cerimónia, o PÚBLICO o interroga sobre a capacidade de alojamento para os imigrantes asiáticos naquela área da cidade.

Ainda assim, Abu Sayed, um homem magro e com uma longa barba rala, relativiza nos qualificativos sempre que se lhe pergunta sobre as condições de habitabilidade dos apartamentos em que se acumulam os concidadãos, ao longo da frenética Rua do Benformoso, alguns metros abaixo. “O espaço é pouco para morar, é verdade, mas todos são amigos e irmãos e acabam por conseguir viver em harmonia. Além disso, todos querem ficar perto uns dos outros, aqui sentem-se bem”, diz, num português periclitante, o religioso de 40 anos, uma dúzia dos quais a viver em Lisboa. “Não temos razões de queixa de Portugal. Mas talvez o Governo pudesse ajudar nesta questão, pois toda a gente trabalha.”

A alusão do imã a um possível auxílio das entidades públicas na disponibilização de habitação a valores comportáveis para as comunidades imigrantes ecoa o que se ouve por aquelas ruas, onde a presença de mulheres é desproporcionalmente inferior à dos homens. Interpelados pelo PÚBLICO, numa tentativa de saber como vivem estes trabalhadores asiáticos que fazem girar muitas das actividades da economia nacional, quase todos encaram com surpresa e desconfiança tal intuito, pelo menos num primeiro momento.

Os que acedem a falar admitem, todavia, e sem excepção, as imensas dificuldades em encontrar um alojamento a preços comportáveis com os parcos rendimentos auferidos, quase sempre, no sector da restauração, incluindo através de populares plataformas digitais de distribuição. É caso de Rana, de 26 anos, que, ao final da manhã de uma segunda-feira, a meio da Rua do Benformoso, beberica num copo de papel uma variedade de tchai, o popular chá indiano com leite aromatizado por especiarias e usualmente consumido com muito açúcar. Originário de uma cidade situada a cerca de três dezenas de quilómetros de Daca, capital do Bangladesh, regressou a Portugal há apenas dois meses, depois de ter passado uma temporada no país de origem, que se seguiu a dois anos entre a Polónia e os Países Baixos, onde tentou prosseguir estudos em Gestão.
“Não é fácil”

No Porto, a zona que envolve a Rua do Loureiro atravessa uma nova fase de transformação. Já foi onde a cidade teve a sua secção de electrónica, mas não persistem muitas lojas do género. Nos últimos anos, tem sido onde imigrantes que chegam ao Porto buscam a familiaridade junto de quem fala a mesma língua.

“As pessoas vêm para aqui porque é onde encontram a sua comunidade. Tem mercearias, cabeleireiros, talhos e mesquita”, descreve Alam Kazol, de 52 anos, que trocou o Bangladesh por Portugal há 31 anos. É também o presidente da Associação Comunidade de Bangladesh no Porto.

Pode não ser assim por muito mais tempo. O quarteirão encaixado entre traseiras da Estação de São Bento, da Sé e do Teatro Nacional S. João, é atravessado por um corrupio de carrinhas e homens da construção civil. As obras ecoam pelas ruas e começam a surgir prédios com nova cara, tal como acontecerá ao edifício onde está instalada a loja de souvenirs de Kazol, que vai passar a hotel. Um pouco acima, uma imobiliária pede 2 mil euros mensais de renda por 50 metros quadrados.

A conversa com o PÚBLICO encaminha-se rapidamente para o preço das rendas da habitação e para a dificuldade que quem chega tem de encontrar um sítio com condições. Poucos metros ao lado, Bijoy Shil, de 28 anos, trabalha numa barbearia enquanto decorre o seu processo de legalização. Chegou primeiro a Lisboa, onde diz ser ainda mais complicado encontrar casa. Ainda assim, no Porto, divide o apartamento T3 de apenas uma casa de banho com mais sete pessoas. Cada um paga 120 euros.

Tanvir Ahmed, de 31 anos, começou por encontrar emprego na agricultura, na zona do Montijo, mas o contrato era temporário e, quando acabou, mudou-se para o Porto, onde trabalha numa mercearia. “É muito difícil encontrar casa”, suspira. Divide alojamento para aliviar despesas, mas assegura que não está demasiado cheia, embora não refira um número exacto. Ainda assim, são “mais de 200 euros por pessoa”.

“Não é fácil. As pessoas não podem pagar muito mais”, contextualiza Alam Kazol. Além de um magro salário que, muitas vezes, não chega aos 800 euros, ainda enviam remessas para a família.

Em Lisboa, os primos Halim, de 25 anos, e Himal, de 26, partilham um quarto na zona da Graça, com outros três concidadãos. Ambos vieram de Sylhet, cidade capital da província com o mesmo nome situada no extremo Nordeste do Bangladesh, junto à fronteira com a Birmânia. Cada um paga 180 euros por mês. Chegaram há dois meses da cidade inglesa de Birmingham e estão a trabalhar num restaurante junto à Estação do Oriente, no Parque das Nações, onde recebem o ordenado mínimo.

“Adoramos Portugal, é um país hospitaleiro, as pessoas são simpáticas e o Governo oferece-nos benefícios. Obter o cartão de residente e o número de segurança social é fácil. Mas a habitação é um grande problema”, diz Halim, que deixou a meio os estudos em Botânica, para arriscar a aventura europeia. Para trás ficaram três anos no Reino Unido, pautados por alguma tensão racial. “Os portugueses são mais simpáticos.”

Tal simpatia de pouco lhes serve, porém, na hora de lidarem com as realidades laborais e, sobretudo, do mercado de arrendamento nacionais. “Gostava de viver com melhores condições. Mas como é que podemos pagar uma renda de 700 euros com um ordenado de 750? Como é possível? É um problema muito complicado. O Governo português devia fazer qualquer coisa. Se trabalhamos aqui e pagamos impostos, devia haver uma solução”, profere Himal, que também deixou incompletos os estudos iniciados na terra natal.

Quando o PÚBLICO lhe diz que esse é, afinal, um problema de que se queixa a generalidade dos portugueses, desabafa: “Não nos interpretem mal. Portugal dá-nos tudo. Por que razão haveríamos de criticar o vosso país? Apenas acho que se devia fazer qualquer coisa sobre a habitação.”
Se a ASAE entrar nesses prédios e fechar aquilo tudo, essas pessoas vão dormir na rua. Isto é um problema muito delicado e resultado dos baixos salários e más condições em que elas vivemMiguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior
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Himal e Halim mostram uma sincera gratidão pela forma como têm sido recebidos. A dada altura da conversa, convidam o PÚBLICO para tomar tchai num das dezenas de estabelecimentos de restauração bengalesas do Benformoso. É à mesa que confessam a admiração pelo que consideram ser a grande abertura da sociedade portuguesa à imigração. Qualidade que, comentam, levará a que, haja abusadores. A estada de Himal em terras britânicas foi intercalada por um período em Paris, onde diz ter conhecido “muita gente que tem nacionalidade ou certificados de residência portugueses”.
Os desalojados da 31 de Janeiro

Em Abril, um prédio desabou parcialmente na Rua de 31 de Janeiro, ferindo uma pessoa e pondo a nu uma situação de sobrelotação no centro histórico do Porto, à semelhança do que havia acontecido em Lisboa, com o incêndio de Fevereiro, na Mouraria, que provocou dois mortos.

Khalied bin Solaiman é um dos 15 desalojados do prédio de 31 de Janeiro. Só no seu apartamento, conta, residiam dez pessoas, com acesso a duas casas de banho, mas sem cozinha. O homem de 38 anos foi dos que mais deram a cara pelo grupo de desalojados. Expuseram-se, falaram com a comunicação social e chegaram a ir a uma assembleia municipal. Explica agora que quem vive em casas sobrelotadas mantém o silêncio porque tem receio de perder o pouco que tem. “As famílias dependem deles, que enviam dinheiro. A minha não depende de mim, por isso não estava muito preocupado.”

Entre o grupo de desalojados do prédio que continua encerrado, há situações muito diferentes: há quem tenha encontrado trabalho noutras cidades do país e se tenha mudado, mas também há ainda os que aguardam uma solução mais permanente do que as respostas sociais. No caso de Khalied, o alojamento que lhe foi providenciado pela Santa Casa da Misericórdia até lhe permite ter mais privacidade. Mas foi despedido da loja de souvenirs onde trabalhava, não muito longe da Estação de São Bento.

Agora, enquanto procura emprego, quer aprender Português, para abrir o leque de opções. “Caso contrário, só vou encontrar trabalho numa loja de souvenires, 12 horas por dia, com apenas duas folgas por mês. Não quero voltar para essa vida”, diz Khalied, que estudou contabilidade no Bangladesh e na África do Sul, onde esteve antes de se mudar para Portugal, em Dezembro de 2020.

O novo caso de sobrelotação no Porto veio relembrar a ausência de capacidade do Estado para lidar com este problema. O Governo chegou a introduzir uma proposta no projecto no programa Mais Habitação, que responsabilizava os senhorios pelo realojamento. A medida acabou por cair na sequência da consulta pública, sem que se conheça outra proposta que permita lidar com o problema.
“Sistema de cama quente”

Em 2022, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, emitiu cerca de 2500 atestados de residência. Este ano, e até há duas semanas, o número de certificados deste género passados pela autarquia, num território que abarca bairros tão emblemáticos como Mouraria, Alfama, Castelo, Baixa e Chiado, era de 616.

Dados que, salienta ao PÚBLICO fonte dos serviços da junta, incluem solicitações de renovação, não reflectindo necessariamente novos pedidos de declaração de morada. Utilizá-los como barómetro da tendência do número de estrangeiros a residir na freguesia é falível, não apenas por isso, mas sobretudo porque estes documentos podem ser solicitados por qualquer pessoa, incluindo cidadãos nacionais.

“Um atestado de residência não permite aferir correctamente sobre o número de pessoas a viver num apartamento, até porque há uma grande rotatividade de indivíduos por apartamento. Quando se diz que um prédio tem 100 habitantes, poder ser que sim, pode ser que não”, afirma Miguel Coelho (PS), presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior.

O autarca salienta que tal se deve, frequentemente, ao uso pelos imigrantes do ilegal “sistema de cama quente”, em que várias pessoas usam a mesma cama em diferentes turnos, poupando nos custos de alojamento. “Além disso, as juntas são obrigadas a passar os atestados, segundo a lei”, sublinha.

Miguel Coelho lamenta que, por causa dessa incumbência legal, as juntas de freguesia tenham vindo a ser alvo de censura pública. Algo que aconteceu sobretudo a partir do momento em que, no ano passado, surgiram notícias de investigações judiciais visando números elevados de atestados de residência. “Na altura, fizemos uma revisão de tudo o que tínhamos passado e houve alguns casos que nos chamaram a atenção. Mas isso não prova nada. A partir daqui, não se tiram conclusões, mas sim indícios”, diz. Ainda assim, admite, “há muito alojamento sobrelotado na Mouraria e agora também em algumas partes de Alfama”.
Amontoados em casas e lojas

Os números dos atestados de residência não mostram o retrato completo, mas são mais um pedaço do cenário: em 2017, a Junta de Freguesia do Bonfim, no centro do Porto, tinha emitido 1687 destes documentos, sendo que perto de 300 seriam de cidadãos portugueses. Com a excepção de uma quebra do ano de pandemia, em 2020, no Bonfim, o número foi sempre subindo. Em 2022, a autarquia emitiu 3897 atestados, sendo que apenas perto de 550, aponta a junta, foram pedidos por portugueses.
Lá dentro, à contraluz, vêem-se silhuetas a deixar intuir um número mais alargado de pessoas. Quantas vivem ali? Oito, informa. Todas indianas. É possível entrar, para ver e falar um pouco? “Vá ali falar com o gerente”

O presidente da Junta do Bonfim, João Aguiar, tem notado o crescimento das comunidades estrangeiras na sua freguesia, não só de pessoas provenientes da Ásia, mas também do Norte de África, que, muitas vezes, chegam sem rede e ali procuram apoio.

“Se o pedido [de atestado de residência] obedecer aos critérios legais”, a junta de freguesia não tem outra hipótese que não passar o atestado de residência, nota o eleito pelo movimento Aqui Há Porto, de Rui Moreira. Isto acontece mesmo quando as pessoas que ali trabalham nos serviços suspeitam de casos de sobrelotação. Tal como muitos dos que andam no terreno, com quem o PÚBLICO falou, conhece casos em que as pessoas vivem amontoadas em casas ou mesmo lojas com poucas condições.

Refere que as freguesias não têm o papel de fiscalizar, mas que, quando se deparam com situações suspeitas, procura confirmar a credibilidade da informação antes de a encaminhar para outras entidades, como a Segurança Social ou a Polícia Municipal.

A Junta do Bonfim tem informação sobre registos tratada desde 2017, mas os números não são remetidos a qualquer outra entidade do Estado, explica o presidente, a não ser que sejam pedidos.
Sem escolhas

A constatação da “facilidade” com que se obtém o certificado de residência nacional anda a par da dificuldade que todos têm encontrar uma casa a preços relativamente em conta.

“As pessoas vêm para aqui porque têm vistos, mas depois chegam cá e precisam de encontrar um trabalho e um sítio para viver. Não querem viver com outras, mas tem de ser, não têm outra opção”, afirma Sahad Ahmed Tamjid, funcionário de uma agência de transferência de dinheiro, localizada no troço final da Rua do Terreirinho, em Lisboa, a rua onde, na noite 4 de Fevereiro, um incêndio num alojamento ilegal de imigrantes causou dois mortos e 14 feridos, num espaço onde viveriam mais de duas dezenas.

O acidente veio despertar muita gente para a realidade das precárias condições de acomodação dos migrantes. Sahad, que tem 21 anos e aqui chegou em 2020, diz-se um afortunado, pois está a pagar 300 euros por mês num quarto na Rua dos Sapateiros, na Baixa.

O incêndio também aumentou o escrutínio do papel das autarquias no controlo das situações de sobrelotação. “Dado o alarme social por causa do incêndio da Mouraria, tomámos a iniciativa de, após determinado número de repetições, não emitir mais atestados para a mesma morada, denunciando a situação ao Ministério Público e comunicando à PJ e ao SEF”, informou Ana Sofia Dias (PS), presidente da Junta de Freguesia da Penha de França, em Lisboa, numa assembleia de freguesia, em 14 de Abril.

As declarações foram feitas dois dias após a vereadora da Habitação, Filipa Roseta (PSD), ter alertado para a importância das juntas na denúncia destas situações. “É um problema muito grave que a nossa cidade tem. E a lei não permite que se entre numa habitação privada sem uma denúncia muito específica. Temos que trabalhar com evidências, como são os muitos atestados passados num edifício”, disse, numa reunião descentralizada de executivo. Na ocasião, Roseta sublinhou ainda a disponibilidade da Câmara de Lisboa para cooperar com o SEF e a Autoridade Tributária na fiscalização.

Afirmações que, ao PÚBLICO, Miguel Coelho qualifica como “tentativa de sacudir a água do capote, pois a câmara é que tem de fiscalizar”. O presidente da junta alarga ainda a responsabilidade de tal tarefa à ASAE, mas deixa um aviso: “Se a ASAE entrar nesses prédios e fechar aquilo tudo, essas pessoas vão dormir na rua. Isto é um problema muito delicado e resultado dos baixos salários e más condições em que elas vivem.”

Andando pela Mouraria, e sobretudo na Rua do Benformoso, a cada interpelação do PÚBLICO, repetem-se os relatos de quartos partilhados, por três a cinco pessoas, com valores mensais individuais a variarem entre os 150 e os 200 euros mensais. Apesar da insistência, durante dois dias, porém, ninguém reconhece situações de maiores lotações por alojamento, como é comum ouvir-se dizer. Na verdade, quando interrogados sobre as condições em que vivem, muitos declaram apenas ali estar de passagem, alegando residir noutros bairros ou na periferia de Lisboa.
Os mais sobrelotados

A sobrelotação na habitação está longe de ser um problema das grandes cidades ou sequer das comunidades migrantes. Os números do Instituto Nacional de Estatística mostram isso mesmo. De acordos com os Censos de 2021, o topo da tabela da sobrelotação é ocupado por municípios que têm uma percentagem residual de moradores imigrantes: Câmara de Lobos, na Madeira, tem 30,1% das casas sobrelotadas e apenas 1,4% de moradores estrangeiros; Ribeira Grande, nos Açores, que tem apenas 0,8% da população estrangeira, tem 25,8% das suas habitações com pessoas a mais.



Nesta escala, Porto e Lisboa ficam muito mais abaixo, com 15,7% e 14,8% de habitação sobrelotada, respectivamente. Mas estes números têm que ser analisados com algum recuo, tanto que os imigrantes que não têm documentos não contam para o Censos. “Se eles não estão regularizados, vão responder a um inquérito administrativo?”, comenta o sociólogo e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Pedro Góis, que refere que uma forma de ter mais informação seria, precisamente, através do poder local.

“Se conseguíssemos que as juntas de freguesia que passam” os certificados de residência, os registassem, "eles rapidamente perceberiam que ali no número 33 da Rua X não vivem as pessoas que deviam viver num T1, mas vivem muito mais”, exemplifica o investigador que faz das migrações objecto de estudo.

No recluso Beco da Barbadela, a poucos metros da Praça do Martim Moniz, após alguma insistência, o PÚBLICO espreita para o interior de um edifício. À porta, um homem que diz ser indiano esboça um largo sorriso, quando se lhe explica o que nos traz ali. Lá dentro, à contraluz, vêem-se silhuetas a deixar intuir um número mais alargado de pessoas. Quantas vivem ali? Oito, informa. Todas indianas. É possível entrar, para ver e falar um pouco? “Vá ali falar com o gerente”, diz. Sobe-se umas escadas na porta ao lado, ao cimo das quais há uma secretária e novo lanço de escadas. Entre este e a peça de mobiliário, cabe um colchão com uma almofada.

Observando para a direita, desvela-se um quarto por onde se espalham outros colchões, sem muito espaço entre eles. Um homem sentado na borda do seu leito chama pelo gerente. Ao chegar, e quando se lhe explica o motivo da visita, os olhos denunciam um genuíno terror, como se aquela fosse a última das razões para ali se chegar numa tarde de calor intenso. “Eu levo-te ao meu chefe. Vem!”, convida. O percurso a passo acelerado leva-nos até a uma mercearia do bairro onde, na véspera, o responsável atrás do balcão dizia ao PÚBLICO nada saber sobre o assunto. A resposta repete-se. Com André Borges Vieira

Mesquita será feita quando possível

“Os portugueses são muito simpáticos, só lhes podemos agradecer a hospitalidade”, afirma Mohammed Abu Sayed, o íman principal da Comunidade Islâmica do Bangladesh, repetindo aquilo que o PÚBLICO foi ouvindo dos compatriotas pelas ruas da Mouraria. E, tal como os outros, o religioso di-lo quase como se fosse uma forma de atenuar o que se possa assemelhar a críticas à actuação das autoridades nacionais.

Abu Sayed queixa-se, sobretudo, do que considera ser o clima de insegurança pressentido pela comunidade em redor da Rua do Benformoso. “Há muitos drogados, muita gente a consumir substâncias na rua. E, com isso, há também muito crime associado. As pessoas têm medo, sentem que se está a criar um clima perigoso”, considera o clérigo, dando conta de diversos casos de agressões, assaltos e roubos.

Recentemente, e numa só noite, naquela zona, conta, terão sido assaltadas sete viaturas. Por isso, pede mais vigilância, incluindo o recurso a videovigilância. “Os drogados perderam o medo e ameaçam-nos. Se dizes que vais chamar a polícia, eles dizem ‘então, chama!’”, conta, garantindo que os seus conterrâneos “são boas pessoas, cumpridoras das leis”.

Essa crescente comunidade, que o íman não consegue quantificar, é justificação suficiente para que se construa a nova mesquita entre as ruas do Benformoso e da Palma, considera. Prometido há uma década, quando a Câmara de Lisboa era liderada por António Costa, tem visto a sua edificação ser sucessivamente adiada devido à contestação do processo de expropriação, por parte do senhorio de dois imóveis cuja demolição é necessária para o projecto avançar.

Ante a informação de que o templo poderia, afinal, não avançar, Abu Sayed mostra-se paciente. “Não temos mais espaço aqui. Precisamos mesmo da nova mesquita. A câmara vai fazê-la quando for possível”, diz.