9.1.09

O frio também chegou ao Algarve e a rua deixou de ser "hotel" para os sem-abrigo

Idálio Revez, in Jornal Público

A queda das temperaturas para o invulgar patamar entre os três e cinco graus pôs também o Algarve em busca de abrigos para quem faz da rua o "hotel" de todo o ano, indiferente aos altos e baixos dos fluxos turísticos. "Tá-se bem..., tá-se ...", solta o indivíduo a quem era suposto oferecer ajuda, mas que assomou à porta do casebre para anunciar que dispensa a solidariedade. O jovem, na casa dos 20 anos, de barba crescida, ocupa uma habitação sem água, nem luz eléctrica, no Vale das Rãs, nos arredores de Loulé. Quando os técnicos de Divisão de Acção Social municipal lhe perguntam se precisa de comida ou agasalhos, levanta o polegar, proclamando: "Tá-se..." E de imediato recolheu ao interior da habitação, como se o frio lhe passasse ao lado.

A meteorologia prevê que os ventos glaciares vão continuar nos próximos dias, e um pouco por todo o país as atenções viram-se para os mais desfavorecidos. Mal a noite cai, as ruas ficam quase desertas e as zonas turísticas, com milhares de apartamentos vazios, parecem cidades-fantasma. Em Quarteira, o terminal rodoviário é um dos locais procurados para pernoitar - há bancos de madeira, no exterior, e o calor das lâmpadas engana o frio. Os técnicos de acção social e uma equipa da Protecção Civil municipal saíram à rua para ajudar e avaliar até onde pode chegar a solidariedade. "De facto, não se vê os sem-abrigo", admite o vereador Possolo Viegas. Atalha a conversa: "Pudera! Com este frio, encontraram qualquer buraco onde se meter."

O psicólogo Rui Lopes lembra que os "toxicodependentes têm uma maneira muito própria de ver as coisas". A explicação ajusta-se ao indivíduo que no Vale das Rãs recusara a ajuda que lhe era oferecida. Possolo Viegas, residente em Quarteira, mostra conhecer o meio. "Chega aqui gente vinda de todo o país", diz, em jeito apresentação para o quadro que tem na sua frente, no terminal rodoviário. Aproxima-se um homem na casa dos 50 anos de idade. Pelos passos miudinhos e desencontrados não é difícil perceber que o álcool fez-lhe companhia, a matar a solidão. Ao vereador, sem que ninguém lhe pedisse, começa a mostrar os documentos pessoais. De um saco de plástico puxa a caderneta militar. "Vale mais do que o bilhete de identidade", diz, mostrando o documento. "Ah!... foi primeiro-cabo na Guiné", observa o vereador. O homem sorri, e numa expressão de regresso ao passado, recorda: "Até chegar à Guiné, nunca tinha visto um preto." O vereador informa-o que no quartel dos bombeiros ia ter cama para pernoitar, comida, bebidas quentes e um sítio para fazer a barba e tomar banho: "E o que faço às minhas coisas?", aponta para um monte de mantas e roupas sujas. "Pode levar na carrinha, que já está aí a chegar." Um homem na casa dos 30 anos, arrumador de automóveis, faz-lhe companhia até aos bombeiros.

A socióloga Cristina Teixeira, no mesmo local, ouve um homem numa cadeira de rodas, a quem recentemente amputaram uma perna. O seu maior protesto vai para a falta de acessibilidades, mas também para as dificuldades em ultrapassar barreiras burocráticas na assistência social. "Este foi um dos casos que caiu na rua, entre muitos", sublinha. A chefe de Divisão de Acção Social, Fátima Martins, acrescenta: "A Segurança Social cada vez empurra mais casos para as câmaras resolverem." O vereador, por seu lado, dá um exemplo: "Ao deitarmos abaixo nove barracas, no bairro da lata de Quarteira, logo a seguir - com a garantia de que haveria direito a realojamento para os antigos moradores - triplicou o número de famílias a reclamar casa."

É quase meia-noite, junto ao mar o termómetro marca cinco graus. A equipa de assistência social regressa a casa, confirmado um diagnóstico já conhecido: O Algarve não atrai só turistas no Verão; no Inverno a região atrai também gente em busca de uma oportunidade, raramente conseguida. E Quarteira é uma das cidades mais procuradas por pessoas que mergulharam nas margens na sociedade. Sinal dos tempos que correm, o Banco Solidário, em Loulé, servia há três anos uma média de 600 refeições diárias a famílias carenciadas. Actualmente, esse número já ultrapassa as duas mil.

4,5.ºCelsius foi a temperatura mínima mais alta ontem registada, em Faro. As temperaturas mais baixas em Portugal rondaram os -8 graus, sobretudo na região transmontana, segundo informação meteorológica. Em Bragança registaram-se menos -8,5 graus, Montalegre chegou aos -8,4 graus e Miranda do Douro teve -7,1 graus. Penhas Douradas desceu aos -8,5 graus. Em Lisboa, as estações de meteorologia registaram 1,5 e 1,9 graus. O Porto desceu a -1,1 graus e Coimbra a -0,2 graus.