30.10.17

As Vozes do Silêncio

in Público on-line

Cerca de 80 pessoas, de escritores e fotógrafos de reconhecido mérito a pessoas que já viveram nas ruas, estão nas páginas deste livro editada pela APURO-Associação Filantrópica e Cultural com o apoio do PÚBLICO.

As Vozes do Silêncio — um grupo de sem-abrigo à conquista de cidadania, que começa esta semana a chegar às livrarias, é uma obra singular editada pela APURO — Associação Filantrópica e Cultural com o apoio do PÚBLICO. O livro reúne cerca de 80 pessoas, incluindo escritores e fotógrafos de reconhecido mérito e pessoas que já viveram nas ruas. Combina o registo documental, a reportagem e a crónica que dão conta da organização de pessoas com experiência de rua em associações, com poesia, conto, texto dramático, fotografia e ilustração. .

Transcrevemos o prólogo assinado por Paula França e Olga Rocha:
O desassossego das consciências fundamenta o testemunho que aqui queremos deixar. Este livro pretende dar conta de um caminho que levou a uma voz, o caminho percorrido nos últimos quatro anos, com um forte apoio interinstitucional, por pessoas que vivem ou viveram nas ruas do Porto.
Queremos convidar o leitor a viver esta experiência em duas dimensões, a documental e a artística, que se entrecruzam nos abrigos forjados, na distribuição de comida, no afecto, nas dificuldades de reinserção, mas também na construção do protesto, na tentativa de sair da invisibilidade, de ganhar uma voz, de praticar cidadania, de participar no processo democrático.

A componente documental contém registos feitos por pessoas sem abrigo que durante este processo se organizaram em associações (Uma Vida como a Arte e Saber Compreender). Tem também textos de profissionais que incorporam “As Vozes do Silêncio-Les Voix do Silence”, plataforma do Núcleo de Planeamento e Intervenção nos Sem-Abrigo (NPISA) do Porto. E crónicas e reportagens de jornalistas do “Público”. Os jornalistas do “Público” acompanham este processo desde antes da hora zero. Fizeram-no pelo valor informativo. O seu trabalho constituiu um olhar exterior, claro e objectivo. Ocupa, por isso, um lugar estrutural neste livro. O lado puramente artístico, que também encontrará aqui, é igualmente dado pela palavra e pela imagem. Nele convivem poemas e fotografias de pessoas que viveram ou vivem na rua com poemas, contos, textos dramáticos, fotografias da autoria de pessoas com trabalho reconhecido.
O leitor será conduzido até um porto onde As Vozes do Silêncio, as vozes das pessoas sem abrigo, passam a ter expressão social e política. Prepare-se. O percurso é não só curvo mas também acidentado. Para lhe facilitar o sentido de orientação, vamos dar-lhe já aqui o contexto.

A 14 de Março de 2009, dia da assinatura da primeira “Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo”, o Porto não foi apanhado desprevenido. Desde 2000, um grupo de assistentes sociais debatia-se com várias questões: como diminuir a reprodução desta condição na vida? Como maximizar os recursos das instituições? Como fazer com que haja convergência para acções capazes de autonomizar pessoas? Para este grupo, havia passos obrigatórios. Impunha-se criar organização interinstitucional, articular recursos, assumir responsabilidades institucionais.

O Centro Distrital de Segurança Social do Porto reconheceu a iniciativa. Em Fevereiro de 2009, um mês antes de ter sido assinada a “Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo 2009-2015”, houve um “acordo de cavalheiros”. Um total de 64 organizações e serviços formaram a Rede Interinstitucional de Apoio às Pessoas em Situação de Sem Abrigo da Cidade do Porto, mais tarde NPISA do Porto.

Uma ambição comandava a acção: a cada pessoa devolver a sua história, a sua educação, a sua cultura, a sua saúde, a sua habitação, o seu emprego, a sua relação social e o seu afecto. Foi preciso identificar o que separava profissionais e instituições relativamente à intervenção e à utilização dos recursos humanos e financeiros. Foi preciso encontrar consensos. Foram desenvolvidas acções para envolver as pessoas sem abrigo e a sociedade em geral. Os princípios da “Estratégia Nacional” surgiram como reforço da união, fomento da partilha de recursos, mas criaram expectativas de financiamento complementar que nunca se concretizaram.

No país, formaram-se 17 NPISA (Almada, Amadora, Aveiro, Braga, Cascais, Coimbra, Espinho, Évora, Figueira da Foz, Faro, Lisboa, Loures, Oeiras, Porto, Santarém, Seixal, Setúbal). Cada um desses núcleos tem a sua forma de se organizar. O NPISA do Porto assenta em quatro plataformas.

Sem apoio extraordinário, graças ao esforço dos profissionais dos diferentes serviços e organizações, desta vez com a anuência das diferentes direcções, foram organizados debates e implementados instrumentos cuja formatação última foi a da criação das quatro plataformas que vieram a definir o plano e o circuito de apoio às pessoas que estavam na rua e que entravam paulatinamente no processo de acolhimento e acompanhamento social. Tratava-se de conjugar acções para retirar da rua, fazer acompanhamento social individual e diferido no tempo.

A primeira plataforma, “Triagem e Acompanhamento Social”, foi criada em Abril de 2009 com a missão de abrir espaços de apoio imediato (triagem) às pessoas que estavam na rua e de produzir planos para o desenvolvimento de projectos de vida (acompanhamento social). A segunda plataforma, “Organizações Voluntárias”, foi lançada em Maio de 2010 com a incumbência de juntar as organizações de voluntários, planear a acção de rua, conceber espaços para a aferição/convergência de objectivos e discursos para ajudar a sair da rua. A terceira plataforma, “Plataforma+Emprego”, nasceu em Outubro de 2011 com o objectivo de produzir sinergias entre o mundo empresarial e os cidadãos em situação de sem abrigo do Porto com perfil de empregabilidade. A quarta plataforma, “As Vozes do Silêncio-Les Voix du Silence”, deu os seus primeiros passos em Abril de 2013, decidida a promover a participação das pessoas sem abrigo.

“As Vozes do Silêncio-Les Voix du Silence” junta a associação filantrópica APURO, o Instituto da Segurança Social, a Santa Casa da Misericórdia do Porto, a cooperativa WelcomeHome, a Universidade Católica do Porto, a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, a PhénixPartenaires, a associação solidária Uma Vida como a Arte, a associação Saber Compreender, diversos artistas e pessoas sem abrigo em nome individual. Empenhada em apoiar a conquista do espaço da palavra da pessoa sem abrigo, promove espaços de debate e expressão artística com a convicção de que é preciso inverter as habituais tradições onde os “importantes” falam e decidem em nome dos mais “frágeis”. Apela às pessoas que têm alguma visibilidade pública que concebam espaços nos quais os invisíveis possam falar.

Com a forte implicação de artistas, cientistas, políticos, técnicos realizaram-se cinco encontros temáticos e um concerto solidário (no seguimento destas páginas o leitor encontra os cartazes). Nestes eventos, pessoas em situação de sem abrigo assumiram uma voz activa. Em parceria com uma produtora francesa, fez-se também um filme, no qual, sob orientação de um realizador, um conjunto de pessoas sem abrigo assumiu papéis de argumentistas e de actores.

A riqueza de todo este processo reside na interacção entre o “nós” e os “outros”. O resultado mais evidente, singular no panorama nacional, é o nascimento de duas organizações formadas por pessoas com experiência de rua, que já tiveram uma palavra a dizer na construção da nova estratégia nacional.
Queremos agradecer a todos os membros da plataforma, em particular às pessoas sem abrigo, que provam que, apesar de todas as dificuldades, sabem ajudar a criar oportunidades e conseguem organizar-se para terem uma voz numa cidade que se quer mais humana, mais solidária, mais justa na relação entre instituições e cidadãos e entre cidadãos. Queremos também agradecer a todos os que, não sendo membros da plataforma, se aliaram a este projecto — aos artistas, mas também à comunicação social, sem a qual esta experiência não teria saído dos bastidores da intervenção técnica, não teria alcançado a visibilidade pública que alcançou.

Está aí a “Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo 2017-2023”. É verdade que o problema das pessoas na condição de sem abrigo ganhou alguma visibilidade, mas está longe de resolvido. É necessário mantê-lo na agenda política. Há que saber dizer não a um destino que se proclama como injusto e absurdo.