19.2.19

A vida aos saltos

Paula Cosme Pinto, in Expresso

“Matei-a por tédio”, confessou ele

A frase faz parte da justificação dada por um jovem que matou a namorada. Durante muito tempo, estas palavras agoniaram o fotógrafo João Francisco Vilhena, que começou uma pesquisa sobre a violência doméstica em Portugal. O resultado desse trabalho é “O amor Mata”, uma exposição que não serve apenas de incentivo à reflexão sobre a dimensão e banalização deste crime, como é também uma homenagem às dezenas de mulheres que continuam a morrer em Portugal todos os anos às mãos de quem as dizia amar.

A primeira vez que “O amor Mata” foi apresentado ao público foi em 2015, na Galeria das Salgadeiras, com curadoria de Ana Matos. Um tema arriscado numa altura em que a violência de género e na intimidade encontrava, inclusive, alguma resistência por parte da imprensa. É difícil dizer-vos quantas vezes ao longo dos meus dez anos em redações ouvi a frase “isso já não é notícia”. No que diz respeito a esta exposição, o silêncio era a maior reação entre os que a visitavam na altura. Um silêncio de respeito, de mágoa, de indignação, de dor, de pesar, de impotência, de desconforto. Agora, numa altura em que a violência de género está na ordem do dia, a exposição está de volta, desta vez no Centro Cultural de Lagos, e numa versão alargada.

Quem entra é recebido por dípticos a preto e branco identificados com o nome de mulheres: “Alice foi queimada, Leonor brutalmente agredida e abandonada numa poça de sangue, Rosa envenenada, Teresa suicidou-se depois de anos de agressão física e psicológica, Fátima, depois de uma forte pancada, o seu crânio quebrou-se, Ana, as mãos que amam são as mãos que matam, Margarida, um tiro levou a sua vida, Maria, a sua carne foi esfaqueada”. Todos eles casos reais, ocorridos em Portugal. Há depois uma sala negra, um espaço de silêncio para percorrer depois do inicial soco no estômago. Já numa parede branca, suspensos sobre um fundo vermelho, a cor do amor e do sangue, há uma série de objetos iluminados como pedras preciosas numa loja de jóias. Um martelo, uma pedra, uma faca, todos eles objetos comuns, mas que foram utilizados para matar. Na última moldura do corredor, um espelho onde cada visitante se pode ver refletido. Desafia João Francisco Vilhena: “Como nos vemos no fim deste percurso? Um assassino tem rosto? Uma vítima escondida? Qual é a dimensão da fronteira que separa o amor do ódio? Do tédio? Da falta de humanidade? De respeito pelo outro?”.

A cada hora que passa 6 mulheres são mortas em contexto de intimidade
Porque é que é tão essencial que surjam trabalhos como este? Talvez os números nos ajudem a perceber: das 87 mil mulheres assassinadas em 2017, cerca de 60% foram mortas por parceiros amorosos ou familiares, revelava a ONU em novembro passado num relatório sobre a violência de género no mundo. Foram mais de 50 mil as vítimas mortais de casos de violência doméstica. Isto significa que todos os dias, leiam isto bem, todos os dias 137 mulheres são assassinadas por alguém com quem têm uma relação de intimidade, maioritariamente namorados e maridos. Pessoas da sua confiança que se revelam carrascos. Pessoas que, mais do que ninguém, as deveriam respeitar, amar, proteger. Importa também relembrar que a maioria destes crimes acontece dentro de casa, ou seja, o próprio lar continua a ser o sítio mais inseguro para as meninas e mulheres.

Em Portugal os números são alarmantes. Só em 2017 foram registadas mais de 25 mil ocorrências de violência doméstica. E de acordo com o Observatório das Mulheres Assassinadas registaram-se 25 femicídios e 16 tentativas. Seguindo a tendência mundial, o grupo que surge com maior expressividade é o das mulheres que mantêm ou mantiveram uma relação de intimidade com os femicidas, correspondendo a 70%. De salientar que estes assassinatos e atentados à vida destas mulheres ocorreram, na sua esmagadora maioria, em contextos de violência doméstica prévia e contínua, em alguns casos situações já reportadas às autoridades, e em grande parte de conhecimento geral (vizinhos/as, amigos/as, familiares), sem que isso tenha sido potenciador ou suficiente para evitar os crimes contra elas praticados.

João Francisco Vilhena
Tal como já escrevi por aqui várias vezes, a naturalização da violência contras as mulheres é uma realidade em Portugal e é urgente que se entenda que estes são crimes que resultam de violência de género, de um exercício macabro de poder.

Precisamos de uma justiça e de forças de segurança que lidem com ela de forma diferenciada e devidamente enquadrada, dadas as suas especificidades concretas. É necessária uma justiça penal eficaz que tenha como prioridade a segurança das vítimas. Tal como é urgente a educação como forma de prevenção, implicando os rapazes e os homens neste caminho de mudança de mentalidades.

A arte é um veículo poderosíssimo de comunicação, com o condão eficaz de nos levar a um confronto individual através de diferentes estímulos. De nos convidar a parar para pensar nisto e percebermos que todos nós fazemos não só parte do problema, mas também da solução. É por isso que vos convido a espreitarem esta exposição (patente até 13 de abril), cujo título é por si só uma provocação perfeita para a reflexão. Será o amor que mata? Ou será o ódio, o desrespeito, o sentimento de posse, o exercício do poder, a desumanidade e o desprezo pelo próximo enquanto ser único e individual?