2.8.19

Maria Elisa Domingues: "Continuo a não conseguir ver televisão como uma pessoa normal"

Por Rita Silva Avelar, in Máxima

Estudou para ser atriz e frequentou o curso de Medicina, mas foi o facto de prestar atenção aos últimos minutos de um telejornal da RTP que lhe mudou a vida. Maria Elisa Domingues nasceu em Lisboa, em 1950. Foi a primeira mulher a fazer as primeiras eleições e as primeiras grandes entrevistas a políticos, na televisão portuguesa.

Dotada de uma telegenia e de uma capacidade de comunicação incomuns, Maria Elisa Domingues alcançaria o renome como jornalista, sendo considerada, por muitos, a melhor profissional do seu segmento, até hoje. Estávamos em 1971 quando Maria Elisa se iniciou na RTP ao integrar a nova vaga de locutores de continuidade, a par de profissionais como Ana Zanatti, Eládio Clímaco, Maria Margarida, Fernando Balsinha e Raul Durão. De locutora a jornalista de primeiro plano foi o salto dado com ambição e talento. Maria Elisa foi pioneira no formato de entrevista de cariz político na televisão portuguesa. Mais tarde, no verão de 1980, foi convidada por Daniel Proença de Carvalho [na época era o presidente do Conselho de Administração da RTP] para assumir o cargo de diretora de programas do canal público, cargo a que regressou em março de 1998.

Em 1988, foi a primeira diretora da edição portuguesa da Marie Claire, revista que dirigiu até 1992. Antes disso, a 22 de abril de 1989, foi nomeada Comendadora da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Mário Soares. Maria Elisa também desempenhou papéis na esfera política, primeiro como assessora de imprensa da primeira-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo (entre 1979 e 1980) e, mais tarde, como deputada independente integrada nas listas do PSD (a convite de Durão Barroso, nas eleições de 2002). Entre os seus muitos talentos, há um que sobressai e que contribuiu para a afirmação do seu nome como profissional do Jornalismo: o de entrevistadora. Prova disso, também, é a entrevista que fez a José Mourinho e que foi publicada na Máxima, em outubro de 2006, numa altura em que nenhum outro meio de comunicação social conseguiu chegar até ao treinador português. A entrevista também contribuiu para que essa edição tivesse sido a mais vendida de sempre da Máxima.

Leonor Xavier. “Sou uma devoradora da vida”
Antes de se ter tornado jornalista considerou ser médica e, até, atriz...
Podia ter sido [médica], sim… Eu tenho trabalhado sempre muito sobre saúde, sobretudo em pesquisa, e, neste momento, estou a escrever um livro sobre os 40 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). É uma área com a qual me sinto sempre muito ligada porque aquele que se considera [ser] o pai do SNS, António Arnaut, que faleceu em maio passado, anunciou o projeto num programa meu. É uma área que me agrada. Eu gosto de investigar e de falar com médicos e com cientistas. O que me desagradou no curso de medicina é que os primeiros anos são muito de decorar sem compreender. Claro que depois teria gostado da outra parte, a da prática. Na minha família ainda há um gozo [para comigo] porque eu faço muitas vezes diagnósticos e acerto.

Como é que descobriu o seu primeiro emprego como jornalista?
Descobri o meu primeiro emprego a ouvir o [locutor] Henrique Mendes a ler as notícias do telejornal. Foi no final de um desses telejornais que ele anunciou que estava aberto um concurso para novos locutores. Concorremos 500 pessoas para que, num processo de eliminação que durou um ano, fôssemos escolhidos apenas dez. Isso mudou a minha vida e foi uma das razões para abandonar os estudos de Medicina e o Conservatório. Eu ainda estive um ano ou dois no grupo Cénico de Direito, porque em Medicina não havia Teatro. Entretanto, eu casei.
Foi uma das jornalistas na cobertura televisiva do 1.º de maio, um mês depois de ter sido mãe. Depois, tudo aconteceu muito rápido, tendo assumido o cargo de diretora de Informação. Como recorda esses momentos?
Eu ainda estava de licença de parto quando me telefonaram a dizer que tinha de ir [trabalhar]. Estávamos todos muito empolgados com a Revolução e com o novo país a construir e eu não tive coragem de [lhes] dizer que não. Esses primeiros acontecimentos de liberdade foram momentos muito empolgantes. E foi a minha primeira saída de casa após ter um filho que tinha apenas um mês. Foi uma alegria imensa associar as duas coisas.

Sentiu a Censura?
Foi por pouco tempo. Mas todos a sentimos, sim. A minha entrada para a Televisão, no sentido administrativo, deu-se a 1 de janeiro de 1973, mas eu já fazia reportagem há vários meses. Nesses primeiros tempos, eu frequentei o Conservatório e fiz parte da primeira formação do Grupo de Teatro A Comuna, ou seja, eu vinha do meio artístico… Talvez isso me tenha preservado de grandes contactos com a Censura. Nesse tempo havia muitos programas de cariz cultural na RTP, como magazines de artes plásticas, de cinema… E eu trabalhava sobretudo nesses programas. Mas, de algum modo, a Censura existia na nossa cabeça.

Foi uma das mulheres a abrir caminho no jornalismo televisivo e a primeira a fazer entrevistas de cariz político. Como recorda essa era?
Não me comparavam com ninguém. Não havia sequer mulheres a fazer essas coisas… Ao ser a primeira mulher a fazer esse trabalho não sofri a comparação. É claro que senti que me faltavam ferramentas. Foi por isso que deixei Portugal e que fui para Paris estudar Jornalismo.

Em que altura é que tomou essa decisão?
Fui [para Paris], pela primeira vez, no final de 1974 para frequentar um curso organizado por uma escola francesa especificamente [vocacionada] para jovens portugueses que queriam ser jornalistas, a pedido do [então] Ministério da Comunicação Social. Mais tarde fui fazer um curso mais longo com uma bolsa de estudo que me foi dada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros francês. Foi em 1976 e o meu filho tinha dois anos…

Sentiu a pressão de escolher entre a profissão e a maternidade?
Claro que sim! E eu tive a sorte de ter os meus pais disponíveis a todo o momento. Havia o pai, mas ele era médico e trabalhava imenso. De qualquer maneira, até morrermos ficamos sempre a pensar se fizemos bem ou mal. Eu tinha 30 anos [em 1981] quando eu tive, primeira vez, uma direção a meu cargo.
Chefiava homens mais velhos…

E muitos! Um cargo de chefia, ter 30 anos, ser mulher e dirigir 600 pessoas… Eu sentia muito esse peso e estava sempre a ser julgada. Naquele tempo eu já falava de Feminismo. Sempre li sobre o tema e já me considerava feminista. Mas não havia o mesmo respeito pelo trabalho das mulheres, de maneira alguma. Como tentava controlar o medo e tinha medo de falhar, (a solução) era trabalhar, trabalhar, trabalhar… Tinha no máximo oito dias de férias por ano e não tinha fins de semana.

Benazir Bhutto e Margareth Thatcher são algumas das personalidades mais importantes que entrevistou. Qual foi a entrevista que mais a marcou?
A pessoa que mais me impressionou na vida foi o Jorge Luis Borges. Fui entrevistá-lo a Buenos Aires e passei uma semana com ele. Se alguma vez eu conheci alguém com uma aura, era ele. Era praticamente cego, via sombras… Tinha uma presença e uma espiritualidade absolutamente extraordinárias. A Senhora Thatcher também me impressionou pela determinação muito refinada e por ser tão feminina. Entrevistei a Benazir Bhutto na cozinha da irmã dela, em Londres. Foi uma mulher que marcou e que teve um papel precursor no Paquistão.

Ao longo da sua carreira existiram momentos específicos em que tenha sentido as discrepâncias na igualdade de género? Sentiu-se discriminada? Assediada?
Há um tema sobre o qual eu ainda não falei, mas sobre o qual tenciono escrever, um dia. Sobre todas as pessoas ligadas ao assédio sexual. É claro que o senti e muito… Eu era uma miúda quando entrei para a Televisão. Da parte dos homens mais velhos havia uma grande prepotência e passei por situações muito complicadas de gerir porque se tratava de pessoas com quem tive de continuar a trabalhar. A partir do momento em que passei a ter poder passou a acontecer-me muito menos. Não se falava dessas coisas, acontecia tudo em surdina, como continua a acontecer hoje. Agora há, a nível mundial, espaço para as pessoas se sentirem apoiadas. Não se é ostracizada.

Como é a Maria Elisa espetadora, nos dias de hoje?
Eu continuo a não conseguir ver televisão, nem a ir ao teatro como uma pessoa normal. Estou sempre a pensar como é que eu teria feito, como é que se poderia fazer melhor.