7.8.19

Ansiedade A epidemia silenciosa

Texto Nelson Marques Ilustrações Alex Gozblau, in Expresso</i>

Durante a adolescência, Sara Pereira, hoje com 32 anos, sempre foi muito exigente com ela própria. Era aluna de 18 valores, soube desde cedo que queria seguir o mundo da comunicação, tinha objetivos e sonhos bem definidos. “Na minha cabeça, desenhei uma linha do tempo para a minha carreira e para a minha vida pessoal. Aos 25 anos teria casa própria, aos 30 um relacionamento sério, aos 35 iria para fora trabalhar numa multinacional como diretora ou chefe de equipa.” Tirando a asma, nunca tivera grandes problemas de saúde. Lembra-se apenas de ficar nervosa antes dos testes e dos exames nacionais. Mas ‘ficar nervosa’ “não é sofrer de ansiedade”. Isso só veio mais tarde.

Chegou sem aviso, como uma explosão inesperada. Foi no início do verão após o primeiro ano na Universidade do Porto. Sara foi com dois amigos a um festival de música em Lisboa, era a primeira vez longe de casa sem os pais. “À noite, e depois de um dia mal alimentada, acordei e pensei que ia morrer. O meu melhor amigo estava ao meu lado e segurou-me a mão enquanto perguntava o que é que eu tinha. Vomitei, quase desmaiei. Tinha a cabeça à roda e chorei durante o que me pareceram horas.” Ela ainda não o sabia, mas tinha acabado de ter o seu primeiro ataque de pânico. “A partir desse dia a minha vida mudou. E eu ainda não imaginava quanto.”
Quando regressou ao Porto, marcou uma consulta num psiquiatra, que lhe diagnosticou um esgotamento e um início de depressão, e lhe receitou um antidepressivo e um ansiolítico. Por causa dos medicamentos, passou as duas semanas seguintes “sem conseguir sair de casa ou ver a luz do dia”. Ficava exausta, parecia “um zombie”.

Ao longo dos últimos 13 anos, sentiu todo o tipo de sintomas físicos. A lista parece interminável: “Taquicardia, tonturas, tremores, formigueiros nos membros superiores e inferiores, sensação de falta de ar, de sufoco, de desmaio, de estar a perder o controlo ou até de ‘desrealização’, visão turva e em túnel, secura da boca, náuseas e dores abdominais, perda de força nas pernas, transpiração excessiva, medo de vomitar e, claro, medo de morrer.” Sara sabe bem que um ataque de ansiedade ou de pânico não a vai matar, mas nem sempre consegue convencer-se disso. Não é fácil explicar a quem a rodeia que não existe um botão para desligar a ansiedade. “Muita gente diz-me o clássico ‘tens de ter calma, não stresses’. Há muito estigma em relação às doenças mentais e os ataques de pânico ainda são vistos muito como ‘ataquezinhos de gente mimalha que quer tudo e está frustrada’.”
Portugal está entre os países da UE onde o problema mais se faz sentir: cerca de 16,5% da população sofre de perturbação de ansiedade, sendo a doença mental mais prevalente
O pior, garante, são os evitamentos, o deixar de fazer as suas rotinas com medo de ter uma nova crise. O medo de ter medo. É um círculo vicioso que a leva a alterar as suas rotinas. “Por exemplo, tive um ataque de pânico no comboio, então evitei durante anos andar de comboio. Se tinha um numa determinada rua, evitava passar por lá. Nada disto faz sentido nem para quem tem ansiedade, mas é quase uma obrigação respeitar o medo.”
Sara não tem medo das palavras: viver com ansiedade “é uma prisão”. Aos poucos, foi perdendo autonomia e isolando-se cada vez mais. Não por vergonha, mas por receio de estragar o dia ou a noite aos outros. Sai quase sempre sozinha, para, se se sentir mal, voltar para casa quando quiser, sem ter de dar grandes explicações. “Quando dei por mim, tinha deixado de conduzir, de sair à noite, na pior fase até de sair de dia para tomar um café, de trabalhar fora da minha cidade, de ir ao ginásio, de ir ao cinema, ao teatro, a concertos ou a reuniões, de viajar, de ter liberdade e autonomia, de deixar de ser eu própria e de acreditar nos meus sonhos.” Em espaços fechados fica sempre perto das saídas, nos espetáculos escolhe uma cadeira colada ao corredor, evita andar de transportes públicos. Nunca sai sem a medicação. Por causa da doença, perdeu muitos empregos. “Quando me perguntam se há problema em ter muitas viagens, respondo sempre que não. Depois, quando me ligam a dizer que fui escolhida, desisto. Já tentei ser honesta. Não passei para a fase seguinte.”
Quando olha para fotografias antigas, tem saudades da miúda que era antes da ansiedade se ter instalado na sua vida. “Essa miúda ainda está dentro de mim, mas, muitas vezes, está coberta por um manto de medo que a isola e paralisa.”

25 MILHÕES DE ANSIOSOS NA EUROPA
Sara não está só. A sua história podia ser a de milhões de outras pessoas que sofrem de perturbação de ansiedade em todo o mundo. Só na Europa, de acordo o relatório “Health at Glance 2018” da OCDE, estima-se que a doença afete 25 milhões de pessoas. Portugal está entre os países da UE onde o problema mais se faz sentir: cerca de 16,5% da população sofre dele, sendo a doença mental mais prevalente, de acordo com o último estudo epidemiológico realizado no país. Perto de um terço das pessoas irá sofrer uma perturbação de ansiedade num dado momento das suas vidas.

A doença faz-se sentir sobretudo nas gerações mais jovens, em particular os millennials (pessoas que têm hoje entre 20 e 37 anos, aproximadamente), o que não é uma surpresa, uma vez que ela prospera num mundo de incertezas e o de hoje está cheio de ameaças potenciais para os jovens adultos: desemprego, baixos salários, dificuldade em comprar casa própria, dívidas… Os estudos demonstram também que a ansiedade parece ser mais frequente nas cidades do que nos meios rurais, e é quase o dobro nas mulheres. É algo para o qual são apontadas várias razões, desde fatores biológicos, nomeadamente hormonais, a “uma maior exposição a fatores indutores de stresse nas mulheres, relacionados com o trabalho, o ambiente familiar, pressões sociais, etc.”, explica o médico psiquiatra Diogo Telles Correia, autor do livro “A Ansiedade nos Nossos Dias”, editado no ano passado.

Mariana Anjos, 26 anos, consultora de recursos humanos e caça-talentos, é outro nome que engrossa as estatísticas. Teve o primeiro ataque de pânico, “o mais assustador” até hoje, aos 13 anos. Estava a fazer um teste de História e era a única que ainda não tinha entregado a prova. De repente, o ruído na sala começou a incomodá-la imenso. “Só me lembro de chorar muito e começar a arranhar-me toda. Tentaram tudo para me acalmar, mas era impossível. Um professor chegou a dar-me um estalo, mas eu não parava. Fui para o hospital e sedaram-me para dormir, mas nem assim consegui.”
Até aos 22 anos foi “sempre a piorar”. Os ataques passaram a ser diários, especialmente quando estava a dormir. “A dor que sentia no peito era horrível.” Aos 18 anos, por causa da ansiedade, perdeu “grande parte do cabelo”. O resultado: mais ansiedade. Como uma bola de neve. “Estava constantemente medicada, tomava demasiados comprimidos, mas não sentia que surtissem efeito.”
Na hora de ir para a universidade, decidiu tirar Psicologia. Antes de cada exame ou apresentação, tinha um ataque. Foi então que percebeu que a sua ansiedade tinha origem sobretudo em situações em que estava a ser avaliada. O medo de falhar estava sempre presente. “A pressão que coloco em mim é demasiada. Os meus pais também não ajudavam, diziam-me que ia chumbar ou falhar. Dei por mim a viver numa agonia constante, não conseguia aproveitar nada.”

Há quatro anos, cansada da medicação, e apesar de “muito cética”, deixou-se convencer por uma amiga a fazer terapia num centro de ioga especializado em ataques de pânico e de ansiedade. “Fiz duas sessões que me custaram muito. É uma autoanálise dolorosa, porque desconstruímos as coisas e vamos à sua origem, mas depois sente-se um alívio enorme.” Nos três anos seguintes não voltou a ter ataques. “Comecei a aproveitar muito mais a vida, a ser mais focada no trabalho e a conseguir desvalorizar muito mais facilmente os problemas.”

UMA COMPANHEIRA DE VIAGEM DA DEPRESSÃO
Apesar do impacto profundo que pode ter na vida das pessoas, nem toda a ansiedade é má. Ela é, aliás, uma emoção fundamental para ajudar a identificar situações de perigo e permitir que nos preparemos melhor para as enfrentar. Nas doses adequadas, pode até ter efeitos positivos. “Alguns autores chamam a atenção para o facto de, em baixos níveis, ela poder favorecer o desempenho profissional”, sublinha Telles Correia, psicoterapeuta que é também professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. É a chamada Lei Yerbes-Dodson, segundo a qual até determinados níveis de ansiedade há “um aumento da atenção e do interesse”. Mesmo níveis “moderados altos” podem ter um efeito positivo, nota a psicóloga Isabel Lourinho, do Instituto CUF Porto. “Na minha tese de doutoramento concluí que os estudantes mais ansiosos tinham melhores resultados académicos do que os não ansiosos.”

Onde se traça então a fronteira entre o que é uma ansiedade “normal” e a que constitui uma perturbação psicológica? A linha que as separa é muito subjetiva e varia de pessoa para pessoa, mas, explica a especialista, “o problema acontece quando a ansiedade paralisa ou bloqueia o indivíduo, que não é capaz de utilizar nenhuma estratégia positiva para lidar com ela”. Ou seja, quando controla a sua vida, ao invés de ser este a controlá-la.
O consumo elevado de ansiolíticos, nomeadamente aqueles que têm na sua base a benzodiazepina, como o Victan ou o Xanax, o mais famoso de todos, é algo que está a preocupar os especialistas
Em grande parte dos casos, está associada à depressão. “São companheiras de viagem”, afirma Telles Correia. “As pessoas que sofrem dos vários tipos de ansiedade acabam, devido ao peso que esta impõe nas suas vidas, e à disfunção social e ocupacional que imprime, por desenvolver sentimentos de tristeza que podem chegar à depressão.” Da mesma forma, os sintomas de ansiedade, os medos constantes e os comportamentos de evitamento “podem ocorrer com frequência” nos doentes com depressão.

É muito difícil apontar uma causa para um problema tão complexo como este. “As causas são, na grande maioria dos casos, de natureza reativa a acontecimentos da vida”, nota João Marques Teixeira, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. “No entanto, nem toda a gente reage com perturbações de ansiedade a acontecimentos traumáticos semelhantes, o que significa que também é necessário que os indivíduos apresentem uma determinada organização da sua personalidade para que reajam desta forma. Em síntese, podemos dizer que elas resultam de uma combinação entre fatores próprios da constituição genética da pessoa e fatores ambientais.” O especialista sublinha que um aspeto importante para o desenvolvimento das perturbações da ansiedade é a “aprendizagem desta forma de reagir aos acontecimentos”. É algo que ocorre durante o desenvolvimento da pessoa “e muitas vezes é aprendido a partir de estilos comportamentais dos familiares próximos”.

As perturbações de ansiedade podem assumir várias formas, cada uma delas com sintomas diferentes, sendo as mais frequentes a doença obsessiva compulsiva, as fobias, os ataques de pânico, o stresse pós-traumático e a perturbação de ansiedade generalizada, que se caracteriza por uma preocupação praticamente permanente e duradoura (pelo menos seis meses).

Andreia Reis tinha 16 anos quando lhe foi diagnosticada doença obsessiva compulsiva, mas os sintomas da sua ansiedade começaram dois anos antes. “Nessa altura andava bastante revoltada com tudo. Tinha um ódio enorme por mim mesma, um medo terrível dos outros e o desejo de ter mais experiência. Foi pouco depois disso que decidi sair do colégio da terrinha e ir estudar teatro.”

Aos poucos, os sintomas foram-se intensificando. Tinha episódios sufocantes, em que sentia engasgar-se “com o próprio ar”. Teve ataques de pânico “tão graves e tão repentinos” que nem sabia o que se estava a passar. Num momento estava a dormir “descansada da vida”, no outro acordava com dores no peito tão fortes que tinha de ir para o hospital. Começou a automutilar-se. “Era o mecanismo que na altura parecia resultar comigo.”

Quanto mais os ataques se agravavam mais ela se esforçava para que ninguém reparasse que algo de errado se passava. Faz parte de um grupo de pessoas a quem Daniel Smith, autor do best-seller “Monkey Mind”, onde descreve a sua experiência com a doença, chama “repressores”. “Aprendem a esconder a sua ansiedade dos olhares públicos. Fecham-na dentro delas como ácido num tubo. Não é agradável. A mente humana não é um Pyrex, pode corroer.”
Foi isso que um médico cardiologia do Hospital de Santo António, no Porto, lhe explicou quando foi lá parar depois de ter desmaiado no chão da faculdade, coberta de suores frios. “Disse-me que estava a ter ataques de pânico e que podiam vir em muitas formas e quando menos esperava. Dava para perceber que eu era uma pessoa que engarrafava toda a minha ansiedade e depois o meu corpo tinha de descarregá-la.”

Já tentou “de tudo”: consultou psicólogos e psiquiatras, tomou “várias medicações”, que começavam em doses pequenas e “aumentavam até doses de cavalo”, experimentou a hipnose e “terapias não convencionais”, do reikki a taças de som tibetanas (que se diz ajudarem a equilibrar o corpo e a mente). “Só me falta ir a bruxa ou à missa!”, atira, esboçando um sorriso. A psiquiatra que a segue agora quer tirar-lhe a medicação. “Estou só com uma dose baixa de fluoxetina [um antidepressivo] e faço Victan [um ansiolítico] em SOS, mas ela também quer acabar com isso.”

O consumo elevado de ansiolíticos, nomeadamente aqueles que têm na sua base a benzodiazepina, como o Victan ou o Xanax, o mais famoso de todos, é algo que está a preocupar os especialistas. Portugal é um dos países da Europa que mais consomem este tipo de medicamentos: em 2017, venderam-se nas farmácias 10,6 milhões de embalagens, ou seja, mais de uma por habitante, facto que levou o diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, Paulo Xavier, a afirmar que, no país, “quase não há respostas além das farmacológicas”.

Estarão os ansiolíticos a ser usados como panaceia para todos os males da ansiedade? Isabel Lourinho responde com cautela. “Ao contrário de alguns colegas, não sou antifármacos. Sendo uma psicóloga com formação na área das ciências e doutoramento em biomedicina, reconheço o valor que os fármacos podem ter. Aliás, existem situações em que tomar o comprimido adequado pode ser a estratégia de resolução mais eficaz”, explica. Porém, a psicóloga lembra que, tão importante como resolver o sintoma, é descobrir a causa do mesmo. “E, aí, a psicoterapia aliada ao estilo de vida adequado, com uma maior consciência de si mesmo e dos outros, e em harmonia com o mundo, faz toda a diferença.”

Onde se traça então a fronteira entre o que é uma ansiedade “normal” e a que constitui uma perturbação psicológica? A linha que as separa é muito subjetiva e varia de pessoa para pessoa
Apesar de combaterem os sintomas, acalmando de forma transitória a ansiedade, os ansiolíticos não vão à raiz do problema e expõem os pacientes à dependência. Se estes tomarem a mesma dose durante vários anos, o corpo habitua-se e para conseguir o mesmo efeito é preciso subir a dose. Caem assim num círculo vicioso de tolerância e dependência, até a um ponto em que deixam de funcionar com normalidade, surgindo efeitos secundários como a perda de memória e de atenção. Sem saberem o que fazer, muitos acabam com frequência por tomar diversos fármacos. Dos ansiolíticos passam aos antidepressivos.

Diogo Telles Correia desfaz um dos mitos muito associados a estes últimos: “Ao contrário do que se publicita, não se conhecem efeitos secundários importantes deste tipo de medicamentos quando tomados por largos períodos de tempo”, garante. “Os mais usados na ansiedade são os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). Embora se denominem antidepressivos, porque foram inicialmente testados e usados na depressão, são os medicamentos mais eficazes para o tratamento a médio e longo prazo da ansiedade.” Um comprimido não deve nunca substituir a terapia, mas isso não significa que a medicação não seja, muitas vezes, parte da resposta ao problema.

As estratégias adequadas para cada caso “dependem sempre do diagnóstico”, explica Marques Teixeira. “Nas situações de extrema gravidade o tratamento terá de ser um tratamento médico; nas situações menores, uma abordagem psicológica que ajude a pessoa a encontrar recursos para lidar com os seus níveis elevados de ansiedade pode ser suficiente.” Absolutamente fundamental é apostar na prevenção, adotando um estilo de vida saudável, que inclua uma alimentação adequada, horas de sono suficientes e atividade física, “que é o melhor ansiolítico”, garante Isabel Lourinho.

Andreia ainda tem ataques de pânico “traduzidos em crises de meia idade”, o que é estranho porque só tem 19 anos “e a vida pela frente”. A diferença é que, pela primeira vez, sente-se preparada para “tomar as rédeas” da sua ansiedade. “A minha psiquiatra deu-me essa confiança. Foi a primeira que me disse: ‘Tu és responsável. E eu sei que és capaz dessa responsabilidade e dessa evolução’.” Depois de um período de tréguas, os ataques de ansiedade de Mariana voltaram, por culpa de uma experiência profissional que não a deixava dormir muito. Desta vez, está a lidar “com o monstrinho” sozinha. “Tento fazer a minha autoanálise e falar muito sobre as coisas. Acho que já tenho essas competências.” Sara sabe que o caminho rumo à paz interior é longo. Lutar contra a ansiedade “é uma maratona, não um sprint. Há que treinar pouco a pouco até recuperarmos a nossa vida. E os nossos sonhos”. Ninguém devia passar os dias a ter medo de ter medo.