30.8.19

A “desigualdade afectiva” é uma máquina de fazer pobres

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

“A rede de apoio das pessoas pobres é formada por pessoas pobres como elas e por redes institucionais, que dão algum apoio, mas também controlam.” Esta foi uma das conclusões a que chegou a socióloga Elsa Teixeira, depois de entrevistar mulheres que viviam em situação de privação. De dinheiro, mas também de afecto.

Primeiro, a socióloga Elsa Teixeira escolheu Helena Costa Araújo, professora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, com práticas de investigação que se debruçam sobre o modo como os contextos são trespassados por relações étnicas, idade, género, orientação sexual, classe social. Depois, escolheu Bernard Lahire, professor na École Normale Supérieure de Lyon, que “explica como é que as nossas disposições para pensar, sentir e agir se formam através da socialização”. Por fim, conheceu Kathleen Lynch, professora na University College Dublin, que “atribui à desigualdade afectiva um papel essencial.” Fez 60 entrevistas em profundidade a 20 mulheres do Norte de Portugal. Cruzou várias dimensões da desigualdade – relacionadas com falta de recursos económicos ou escolaridade, mas também com amor, cuidado, solidariedade, respeito e reconhecimento. E fez a tese de doutoramento sobre “os percursos sociais e educacionais singulares de mulheres pobres e as suas estratégias para enfrentar a pobreza”.

Não estava à espera de encontrar tanta história de negligência, violência, abuso?
Entrevistei mulheres entre os 30 e 45 anos. Todas tinham sido vítimas de violência. Isso surpreendeu-me. Não era só violência doméstica. Tinham sido vítimas de desinteresse ou violência por parte de professores e de depreciação e de bullying por parte de colegas. Foram vítimas de trabalho infantil. Uma começou a trabalhar aos oito anos. Algumas tinham sido vítimas de violência física por parte das patroas. Em crianças iam trabalhar para casa das senhoras e elas batiam-lhes.

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E algumas na vida adulta…
Este é um estudo qualitativo, na área das Ciências da Educação, mas muitos outros mostram que mulheres que assistiram ou foram vítimas de violência na infância procuram companheiros violentos. As mulheres que entrevistei conseguiram separar-se dos maridos violentos, mas eles desapareceram da vida dos filhos, o que agravou a situação económica destas famílias. As mulheres sentem que é responsabilidade delas cuidar dos filhos. Este trabalho não é pago. Assumindo essa responsabilidade sozinhas, elas não tinham tanto tempo para cuidar dos filhos como gostariam. Tinham de fazer vários turnos seguidos, por exemplo. [De acordo com a estatística oficial] há mais mulheres a receber Rendimento Social de Inserção [RSI]. Destacam-se as famílias monoparentais. E fala-se destas mulheres que ficam em casa com os filhos pequenos ou doentes…

Como se fossem preguiçosas?
Sim. Como se não existisse tudo isto, que muitas vezes não começa com elas, começa com as mães, com as avós. Como se não existisse esta desigualdade afectiva, esta falta de condições de habitabilidade, esta privação, até ao nível nutricional, que muitas vezes é a causa de dificuldade de aprendizagem. Uma questão interessante é a das redes sociais, que em alguns casos são muito pequenas.

E destituídas de poder?
Exactamente. Há redes que são de apoio e há redes que são de alavancagem. A rede de apoio das pessoas pobres é formada por pessoas pobres como elas e por redes institucionais, que dão algum apoio, mas também controlam. As redes de alavancagem são mais interessantes, porque são heterogéneas, permitem o acesso a mais informação e oportunidade. Às vezes, basta uma pessoa para haver uma oportunidade.

A sua tese é que a pobreza está “profundamente relacionada” com estas desigualdades afectivas.
Os estudos da Psicologia mostram que o trauma tem implicações na aprendizagem. Há uma desmotivação, que acaba por criar insucesso, e, muitas vezes, abandono escolar precoce. Quem tem poucas competências, só arranja trabalhos precários, repetitivos, pouco qualificados. Há este lado. E há outro lado, emocional. Estas mulheres, muitas vezes, sofrem de ansiedade, depressão.

Há sempre sequelas?
Quase todas tinham algum problema de saúde mental, o que também as podia impedir de ter ou de manter um emprego. Faltavam-lhes competências sociais. Algumas arranjavam conflitos facilmente. Tudo isto está relacionado. O facto de ter de trabalhar longe pode causar insegurança, para quem não está habituado a ter grandes horizontes. Se o emprego é longe, pode não haver transportes. Se há transportes, os horários podem não encaixar. Se há transportes e os horários encaixam, pode não haver com quem deixar os filhos. Muitas vezes, as mulheres têm de fazer uma opção entre ir trabalhar e cuidar dos filhos. São muitas variáveis que, se calhar, uma pessoa de classe média, que tem carro ou pode pagar a creche, não compreende.

São muito condicionadas?
Mas nada está determinado. Elas têm de tomar decisões estratégicas. Por exemplo, uma mulher tem duas filhas, vai receber um salário um pouco acima do salário mínimo, o que já a impede de ter algum tipo de apoio. Pode, por exemplo, ter de passar a pagar creche. No fundo, vai receber o mesmo. Qual o interesse de ir trabalhar, não estar com as filhas, se vai receber o mesmo valor? Qualquer pessoa posta perante um dilema destes tem de decidir. E é quase como se esta pessoa, por ser pobre, por receber um subsídio, não tivesse o direito de tomar decisões. As pessoas encontram estratégias para lidar com a pobreza. Na ausência de tudo o resto, a estratégia pode passar pela discussão, pelo conflito. Pode até passar pela violência relativamente a trabalhadores sociais, ou professores, se for a única forma de resolver problemas que respeitam aos filhos.

"Algumas pessoas estão em condições de privação tão fortes que não conseguem ver para lá do dia seguinte. Há uma adaptação psicológica que depois é lida como preguiça."

Às vezes, os problemas parecem simples de resolver, como o da criança com piolhos que não quer ir à escola.
É. Às vezes, as coisas parecem tão evidentes e não são tão evidentes. O champô para os piolhos é muito caro. Havia uma filha, uma mãe e uma avó e todas teriam de usar o champô, não era fácil contornar os problemas. Chamavam piolhosa à criança na escola, mas a mãe não tinha dinheiro para comprar o champô. [Num caso destes] ou a Segurança Social proporciona esse apoio ou o centro e saúde ou isso, que é um problema simples de resolver, acaba por ser um drama.
Com consequências que se podem prolongar na vida adulta…

Claro, porque depois a criança não queria ir à escola e que lhe chamassem de piolhosa. São questões básicas, mas com implicações ao nível da empregabilidade. Muitas destas mulheres com 30 e tal anos já não têm dentes ou têm dentes estragados. Se precisarem de óculos e perceberem que o filho também precisa vão dar ao filho primeiro. Os sacrifícios podem incluir passarem fome para poderem dar comida aos filhos.
Encontrou uma “estratégia de mobilidade social ascendente” relacionada com o futuro dos filhos…

Isso foi a estratégica comum a todas as mulheres que entrevistei: tentar que a vida dos filhos fosse melhor do que a delas. Elas valorizavam muito o papel da escola nesta eventual estratégia de mobilidade. Falavam na importância que davam à escola, nos sacrifícios que tinham de fazer para que os filhos pudessem estudar e ascender a um determinado nível de consumo – a determinadas roupas, a determinada aparência. Tudo isso acaba por ser importante na inclusão social. Falavam nas crianças como sendo a parte mais importante da vida delas.


Além das redes de alavancagem que referiu, por oposição às redes de apoio, mais homogéneas, com menos oportunidades, o que pode fazer a diferença na vida destas mulheres?

A desigualdade afectiva, isto é, o facto de se ter sido ou não vítima de violência doméstica na infância, de se ter ou não uma relação igualitária com o parceiro, de se ter ou não maior apoio emocional, e a ética de trabalho, o estar habituado a planear, a poupar. Algumas pessoas estão em condições de privação tão fortes que não conseguem ver para lá do dia seguinte. Há uma adaptação psicológica que depois é lida como preguiça. Na realidade, a possibilidade de se “autonomizarem” depende, em grande medida, das condições de habitabilidade, da educação, do emprego, dos cuidados de saúde e, muito importante, de condições relacionais e de afecto. Muitas vezes, as políticas sociais entram em conflito com os objectivos a que se propõem. Fazem a defesa da autonomia e da responsabilização (se está a receber um subsídio, tem de dar algo em troca, de trabalhar, de estudar ou de se tratar), mas permitem apenas a sobrevivência, mantêm a pessoa num estado de dependência. O valor é baixo (cem euros para um indivíduo e 200 para uma família, em média). A intervenção não é individualizada, negociada.
A lei fala em contratos de inserção negociados…

Muitas mulheres não se lembravam de ter negociado o contrato de inserção. Lembram-se de lhes terem perguntado: “Concorda que os seus filhos vão à escola? Concorda em arranjar trabalho?” As entrevistas foram realizadas durante a crise. Houve alterações na lei, que diminuíram o valor da prestação [e que acabaram com os apoios complementares]. Estas mulheres não conseguiam sustentar a família com o RSI. E eram criticadas porque viviam à custa de subsídios. Havia mulheres que estavam a sofrer privações e não iam aos correios buscar o vale porque lá estariam vizinhos que iriam ver e criticar.

Elas também interiorizam o estereótipo?
Sim. Algumas também diziam mal dos vizinhos que recebiam RSI. Havia uma transferência do descrédito para os ciganos, para os negros, para os imigrantes. Distinguiam-se de pessoas que percepcionavam como sendo de um estatuto inferior ao delas. Apresentavam-se como pessoas honestas, que tratam bem dos filhos.

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Faziam a clássica distinção entre os “bons pobres” e os “maus pobres”?
Essa é também a linguagem dos trabalhadores sociais. Havia mulheres que resistiam a isto e tiveram conflitos. Lembro-me, por exemplo, de uma senhora que durante meses não recebeu o subsídio porque quando foi à assistente social levou uma criança vestida com um fato de uma marca cara, que lhe tinha sido oferecido, já em segunda mão. A assistente social disse-lhe que ela não precisava de apoio. Lá está a ausência de reconhecimento e respeito. Espera-se que as pessoas pobres tenham determinado tipo de comportamentos e determinado tipo de consumos.

Quem não corresponde ao esperado pode ser prejudicado…

Sim, mas os próprios trabalhadores sociais muitas vezes estão numa situação precária e são pressionados para obter resultados. Não há recursos humanos suficientes para ir às casas, conhecer as famílias. Se estiverem no gabinete, não conseguem avaliar bem.