5.8.19

Porquê uma participação criminal por discriminação racial?

Joana Cabral, in Público on-line

A luta contra o racismo é uma luta pela democracia e esta luta não abdica de nenhum meio ao seu dispor.

Assistiu-se a um aceso debate em torno do texto assinado neste jornal por Maria de Fátima Bonifácio (MFB). Uma franca maioria criticou o seu teor racista e xenófobo, mas houve ainda quem acrescentasse um “mas” desavergonhado, para amparar a autora e menosprezar a gravidade das suas ofensas. Na sequência do texto, e por entenderem que existiam nele indícios da prática do crime de discriminação racial, o SOS Racismo e outras individualidades apresentaram queixas junto do Ministério Público. Estas iniciativas não foram bem acolhidas pela esmagadora maioria das pessoas que se pronunciaram publicamente sobre o assunto, o que demonstra à evidência que pouca gente está verdadeiramente empenhada no combate ao racismo, querendo mantê-lo afastado dos tribunais e relegado apenas para o campo da mera troca de ideias e opiniões.

Acorda, vem ver a Lua: a mensagem de esperança de um fotógrafo para um menino cigano
Os principais argumentos que sustentam a crítica à queixa-crime têm sido o de que um “mau argumento” deve ser combatido com um “bom argumento”, e que o que estaria em causa seria o mero exercício da liberdade de expressão de MFB. Invariavelmente, quem invoca tais considerandos nunca releva a dignidade, honra e consideração dos/as africanos/as e ciganos/as atingidos/as com as palavras livremente expressadas por MFB; mas demonstra, sim, alguma ignorância sobre aquilo que constitui a liberdade de expressão. Nos termos do n.º 1 do artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio […].”. Esta norma não foi violada – efetivamente, MFB teve toda a liberdade para escrever o que quis, não tendo sido censurada. Mas os n.º 3 e o n.º 4 do artigo 37.º da CRP também referem o seguinte: “As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”, e “A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.

Em 2017, o artigo 240.º do Código Penal, que prevê e pune o crime de discriminação racial, sofreu uma importante alteração: para que este se considere praticado, deixou de ser necessário que a declaração pública de injúria e difamação seja efetuada com a intenção de incitar à discriminação ou de a encorajar. Basta que alguém, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, venha a difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.
São estas normas que fundamentaram a queixa apresentada. Observando o texto de MFB, o SOS Racismo entendeu que existiam indícios suficientes da prática do crime – as suas declarações foram públicas e amplamente divulgadas, foram descritos dois grupos de pessoas em função da sua origem étnica ou nacional, cor da pele ou ascendência, e as expressões e conclusões anunciadas serão injuriosas e difamatórias.


Houve ainda quem argumentasse que a queixa não foi conveniente, porque permitiu que a luta política contra o racismo fosse deslocada para o campo judicial e que o debate público se afastasse da questão essencial – a criação de quotas de acesso ao ensino para minorias étnicas. Esta visão oportunista e tacticista merece-nos igual rejeição, quer porque não corresponde à verdade (o debate continuou a ser feito), quer porque assenta no pressuposto de que os direitos dos visados não são suficientemente importantes para serem protegidos pelos tribunais.

O SOS Racismo é uma associação anti-racista. O seu objeto estatutário é combater o racismo. Para tanto, a associação serve-se dos mais variados instrumentos ao seu dispor. Um deles é a possibilidade que lhe foi conferida pela Lei n.º 20/96, de 6 de julho, e cujo n.º 1 do seu artigo único refere o seguinte: “No caso de crimes cuja motivação resulte de atitude discriminatória em razão de raça ou de nacionalidade, designadamente nos crimes previstos nos artigos 132.º, n.º 2, alínea d), 146.º, 239.º e 240.º do Código Penal, podem constituir-se assistentes em processo penal as associações de comunidades de imigrantes, anti-racistas ou defensoras dos direitos humanos, salvo expressa oposição do ofendido, quer este requeira ou não a sua constituição como assistente.”

Quando agressor e vítima se encontram em tribunal: Há muita coisa que não quero contar
Com a queixa apresentada, o SOS Racismo não deixou de diversificar as suas ações e frentes de luta quotidiana e sistémica contra o racismo. Continuamos empenhados na dinamização de debates e formações, na produção de materiais e em todas as atividades de defesa dos mais elementares direitos humanos, incluindo a proposta de recolha de dados étnico-raciais, a alteração da lei da nacionalidade, o combate contra a violência policial, contra a extrema-direita, a reflexão em torno das quotas e de outras medidas de combate à discriminação. Estamos, como sempre estivemos, ao lado de quem sofre diariamente a discriminação racial, que é também inflamada por textos como aquele que motivou a queixa. Para nós, a luta contra o racismo é uma luta pela democracia e esta luta não abdica de nenhum meio ao seu dispor. Dirigentes do SOS Racismo
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico​