Nuno Ribeiro, Madrid, in Jornal Público
Chegou há 27 anos a Vallecas, bairro operário nos subúrbios madrilenos. Vive com o risco. No risco. Adepto da Igreja da proximidade, tem como referência a teologia da libertação
Estamos à mesa da sua casa. Uma pequena moradia no "Pozo del Tio Raimundo", que saiu do anonimato suburbano pela matança terrorista do 11 de Março de 2004. Bairro operário, como atesta o centro comercial da zona, o único do mundo que tem o nome de um poeta: Rafael Alberti. O padre Enrique de Castro fala de certezas. Recorda lutas. Promete mais. E interroga: "Para onde nos leva esta Igreja?
"Quando Jesus disse a tua fé cura-te, disse-o ao romano, ao egípcio, ao fenício, ao judeu, porque a fé de Jesus transcende as religiões." Castro observa. Com uns olhos verdes entre as nuvens fumo das cigarrilhas que consome rapidamente. E continua: "Ao ateu cura-o a sua fé, a sua fé na vida, no ser humano, a descoberta da solidariedade e do apoio." Ou seja, a fé, para este "cura", irreverente e sedutor, é um abraço à vida.
Chegou há 27 anos a Vallecas, bairro operário nos subúrbios madrilenos. Não fala do ponto de partida. Num dos seus três livros pode ler-se que foi "niño de Serrano", filho-família. Foi ordenado sacerdote em 1972, recebeu o incentivo de Alberto Iniesta, padre que chegou a Madrid com Vicente Enrique y Tarancón, o cardeal que desafiou o ditador Franco. Uma das suas obras, Temos Que Enforcá-los?, é uma reflexão sobre a marginalidade e o poder. Com prólogo de José Maria de Llanos, o padre Llanos, da causa dos pobres contra o nacional- catolicismo dos vencedores da guerra civil.
"Fui taxista e operário." Esta é uma das poucas confidências que faz. Em 1985, perante o flagelo da heroína da sua paróquia, a vida deste padre muda ainda mais. "Os chavales [os miúdos] começaram a viver nas nossas casas." Foi o início de um hábito que ainda perdura.
É um jovem, um dos 12 que vivem na casa do sacerdote, que nos prepara o café matinal. "Metade são emigrantes, marroquinos, os outros são espanhóis", comenta Enrique. A partir de então ficou estabelecido que o tratamento era este: Enrique.
Os jovens saem de manhã com agenda: trabalho ou especialização profissional.
Mesmo estando em situação ilegal, a rede de solidariedade encontra ocupação. E há apoios inesperados: "Luís Valls Taberner [presidente do Banco Popular e figura da Opus Dei já falecido] deu 18 milhões de pesetas para as obras da paróquia, e ajudou com outros 50 milhões na compra de um armazém para os trapeiros [que recolhem desperdícios]". Enrique esclarece: "Era [Taberner] um cavalheiro, até 1997 de vez em quando estava connosco." E não hesita em narrar um episódio: "Um dia, um dos chavales perguntou-lhe: "Luis, vens ganhar o céu connosco?" E ele respondeu: "Sou apenas banqueiro.""
"No Evangelho, a fé opõe-se ao medo, sempre que Jesus falou da Ressurreição não falou de outra vida mas de uma utopia", diz Enrique. É assim que se explicam algumas das suas acções. A ocupação de um hotel devoluto na Gran Via madrilena. A entrada na bolsa de Madrid aos gritos "A vossa riqueza é a causa da nossa pobreza." E o almoço com os chavales no El Corte Inglês de Sol, sem pagar, com o gerente a assistir os desejos dos comensais, a fazer vista grossa ao que levavam e a aconselhar a saída pela porta com menos polícia. Velho guerrilheiro, os olhos verdes de Enrique brilham com estes relatos.
Diz que os serviços sociais são polícias paralelas, denuncia os abusos da polícia, a criminalização dos pobres e defende os direitos dos presos.
Enrique vive com o risco. No risco. "O futuro do Vaticano não me preocupa, o povo tem que recuperar a sua fé, a sua fé no ser humano, na vida", repete. Porque, como sempre recorda, "no Evangelho a fé opõe-se ao medo".
Adepto da Igreja da proximidade, Enrique tem como referência a teologia da libertação. Por isso relata: "Queriam [o arcebispado de Madrid] que assinasse um documento de 2003 de Ratzinger [Bento XVI] que condenava a homossexualidade, não assinei porque no Evangelho não há código sexual ou moral, mas amor e oferta."
Um telefonema da prisão de Alcalá Meco interrompe a conversa. Retoma o raciocínio: "Para onde nos leva esta Igreja? Há uma contraposição entre a hierarquia e a Igreja de base."