Sofia Branco, in Jornal Público
Governo não exclui modificar caracterização do ilícito penal, desde que fique claro que não é necessário que a acção criminosa seja continuada
A proposta de revisão do Código Penal autonomiza o crime de violência, mas impõe que este tenha um carácter intenso ou reiterado. Ontem, na audição pública promovida pelo Parlamento, foram várias as vozes discordantes que exigiram a revogação do pressuposto, na discussão em sede de especialidade da reforma penal.
A presidente da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, Teresa Féria, criticou a referência à intensidade do crime, por assumir que "um mau trato pode ser suave, meigo ou por gentileza" e sublinhou que a exigência de reiteração representaria "um retrocesso jurídico e civilizacional". A jurista defendeu ainda a criação de tribunais de competência mista em matéria criminal e de direito da família e a realização de estudos sobre os "preconceitos sexistas" existentes nos tribunais.
A perita das Nações Unidas Catarina Albuquerque sublinharia a necessidade de uma lei "clara e inequívoca", já que "a mentalidade prevalecente em Portugal e na magistratura" ainda tende a desvalorizar a violência contra mulheres e crianças.
Presente na sessão, na qualidade de orador, o próprio coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal, Rui Pereira, afirmou ao PÚBLICO: "Não me repugna que se retire a referência à intensidade, desde que se mantenha que a violência doméstica, para ser crime, pode ser reiterada ou não".
No mesmo sentido acabaria por ir a intervenção do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, que fechou a audição organizada pelo grupo de trabalho para a campanha de combate à violência doméstica. Sublinhando que "alguma jurisprudência mais conservadora" tem exigido a reiteração para qualificar o crime de violência doméstica, Jorge Lacão vincou: "A reiteração não é um elemento essencial da ponderação do crime e é possível, e até desejável, rever o conceito de intensidade".
O procurador-geral da República, Pinto Monteiro, defendeu uma "efectiva e célere articulação" entre instituições, afirmando que cabe ao Ministério Público "contribuir de uma forma decisiva para a efectiva adequação da legislação à prática", nomeadamente concedendo "prioridade à tramitação dos processos por crime".
O painel da tarde debateu os custos da violência doméstica - económicos, sociais, familiares e pessoais. O sociólogo Manuel Lisboa, que tem coordenado os estudos sobre violência doméstica em Portugal, sublinhou que a violência doméstica tem consequências no mercado de trabalho: para as vítimas, é 69 por cento mais difícil arranjar emprego e o risco de (auto)despedimento aumenta em 107 por cento. Os filhos das vítimas têm mais problemas de saúde e maior insucesso escolar, o que o levou a dizer que o problema "está a hipotecar gerações futuras".
11.638
ocorrências de violência doméstica registadas em 2006 pela PSP, o que representa um aumento de 1822 casos face a 2005.
161
detenções por crimes de violência doméstica. Entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2006, verificaram-se 826 detenções.
34
casas-abrigo existentes em doze distritos, proporcionando 800 vagas.