3.5.23

Para ser pobre é preciso ser-se elegível

Ana Sofia Branco, o Observador

Os que resistem à pobreza extrema ficam inelegíveis da generalidade dos apoios sociais, sufocando numa vida de constante ansiedade para tentar resolver os seus compromissos.

Em 1980, seis anos antes da entrada de Portugal na União Europeia, o sistema de proteção social português era ainda caracterizado por ser bastante subdesenvolvido quando comparado com os restantes países europeus. Naturalmente, a realidade europeia em matéria de proteção social é bastante díspar e resulta não só dos diferentes modelos de Estado Social como também do desenvolvimento económico de cada Estado-membro. A despesa pública portuguesa em proteção social era em 1980 de 9,7% do PIB (Produto Interno Bruto). Em Portugal, as estimativas apontam que no ano de 2022 as despesas com benefícios sociais terão representado 27,5% do PIB, sendo o 14º país que mais gasta com estas despesas em comparação com todos Estado-membros europeus. No Orçamento para 2023 o governo indica que a despesa prevista com o Estado Social irá atingir 113,2 mil milhões de euros. Os gastos mais relevantes são as prestações sociais, que valem quase 40% do total, de onde se destacam as pensões de reforma. Também os gastos com pessoal pesam, devendo atingir 27 mil milhões de euros, o equivalente a 24% do total.

Portugal distribui pelos mais empobrecidos a riqueza que cada vez é menos produzida pelo país, num exercício que a continuar a este ritmo poderá levar-nos a uma realidade em que cada vez são menos os que produzem riqueza para assegurar a sobrevivência da restante população. Em 2022, de facto, nós tivemos um crescimento de 6,7% do PIB, mas é preciso não ignorar na análise deste indicador o efeito base. Ou seja, vínhamos de valores muito baixos e, por isso, tivemos o segundo melhor indicador do PIB ao nível da União Europeia em 26 Estados. É mais fácil crescer quando se está no fundo.

Os gastos com os mais pobres têm, efetivamente, um peso significativo na despesa em Portugal. Seria legítimo e desejável tal peso se, por um lado, essa fosse a estratégia para a saída dos mais pobres dessa teia de empobrecimento (um apoio de transição ou impulsionador), e por outro lado, se essa despesa promovesse a equidade e a justiça social. Ora, aquilo a que assistimos é que Portugal tem uma taxa de pobreza que aumentou em 2021 de 16,2% para 18,4%, segundo dados do Eurostat. Acresce ainda, se retirarmos os apoios sociais, que o número de pessoas que vive abaixo ou no limiar da pobreza sobe para quatro milhões, isto é, quase metade da população portuguesa.

Salienta-se ainda, que apesar do número de pessoas empregadas ter aumentado, resultando numa diminuição da taxa de desemprego, cerca de 2 milhões de pessoas ainda viviam em 2021 com cerca de 554 euros por mês. Em 2022 os portugueses perderam 3,5% de poder de compra. Portugal é o nono país da OCDE onde se pagam mais impostos, tendo a carga fiscal atingido um novo máximo.

Mas se os dados apresentados nos levam a constatar que a estratégia de transferência de verbas para o combate à pobreza não tem tido o efeito desejado, por outro lado verificamos que a fronteira entre o pobre merecedor de prestações sociais e o pobre excluído desses apoios financeiros tem como critério contornos vagos e muitas vezes ténues que separam a acessibilidade ou não ao recebimento das prestações sociais.

Veja-se o exemplo da nova medida de apoio extraordinário para as famílias mais vulneráveis. São elegíveis de acordo com o Decreto-Lei n.º 21-A/2023, de 28 de março, artigo nº 2 para esse apoio as famílias beneficiárias da tarifa social de energia elétrica (TSEE) por referência ao mês anterior ao pagamento, e as famílias que não sejam beneficiárias da TSEE, mas em que pelo menos um dos membros do agregado familiar seja beneficiário (por referência ao mês anterior ao pagamento) de uma das seguintes prestações sociais mínimas:

O complemento solidário para idosos;
O rendimento social de inserção;
A pensão social de invalidez do regime especial de proteção na invalidez;
O complemento da prestação social para a inclusão;
A pensão social de velhice;
O subsídio social de desemprego;
Abono de família do 1.º ou 2.º escalão.

Ora, um beneficiário de uma pensão de sobrevivência (independentemente do valor que a mesma possa ter) fica excluído desta medida. Salienta-se que são cada vez mais aqueles que vivem em quartos arrendados ou subarrendados sem, por isso, possuírem em seu nome contratos com as empresas prestadoras do fornecimento de energia. Da leitura atenta do Decreto Lei acima referido resulta uma dúvida legítima sobre a elegibilidade dos beneficiários da prestação social para a inclusão que apenas recebem a componente base e não têm direito ao complemento para essa prestação (alínea d). Trata-se de um ato voluntário do legislador de excluir os beneficiários que apenas recebem a componente base da prestação para a inclusão ou tratar-se-á de um erro grosseiro de redação ao apenas considerar explicitamente os que recebem a base e também o complemento? (ver texto do artigo nº 2, alínea d), do número 4 do Decreto-Lei n.º 21-A/2023, de 28 de março)

Importa, destes meros exemplos de falta de elegibilidade de uma pessoa pobre para uma medida política, refletir que estas medidas são apenas avulsas e reativas, não sendo, por isso, parte da solução mas sim placebos para problemas persistentes e estruturais.

Estas medidas, ao não preverem toda a realidade, vão deixando pessoas para trás, talvez seja mesmo impossível prever todas as variáveis e contextos singulares. Ora, o combate à pobreza não pode ficar essencialmente dependente das transferências dos apoios sociais, mas deve depender, isso sim, do efetivo crescimento económico do país e da inclusão de um maior número de pessoas “marginalizadas” no sistema produtivo e participativo.

Reverter as divergências entre os cidadãos passa por proporcionar aos menos instruídos melhores níveis de acesso à educação, este é sem dúvida um dos caminhos, que morre se apenas ele for percorrido, isto é, se não for acompanhado por outras formas de participação social.

A generalidade da população fica presa a um emprego de baixa produtividade e isso é, muitas vezes, o resultado de uma vida de soma de desvantagens que começaram na infância. As alternativas são escassas: ou as famílias e os indivíduos sobrevivem através das diversas prestações sociais, ou procuram a integração no mercado de trabalho, ou seja, com salários demasiado baixos para assegurar os compromissos mensais (alimentação, habitação, saúde, educação, etc.). Os que resistem à pobreza extrema ficam inelegíveis da generalidade dos apoios sociais, sufocando numa vida de constante ansiedade para tentar resolver os seus compromissos. Os que caíram numa situação de pobreza não veem nem incentivos, nem mecanismos que potenciem a sua integração na economia das sociedades, desistindo, muitas vezes, de o tentar.

A pobreza vai contagiando cada vez mais pessoas, que, já fragilizadas pelas inúmeras dificuldades, vão enfraquecendo a sua capacidade de serem agentes produtivos e de ter controlo das suas próprias vidas, relembro que, conforme disse acima, cerca de 40% da população portuguesa ou é efetivamente miserável, ou, se não recebesse as prestações sociais, também o era de facto. Urge uma identidade partilhada, um sentido de reciprocidade nas sociedades. Um governo que potencie e invista no setor produtivo e numa economia inclusiva. Uma política ética que reforce o sentimento de pertença comum e o propósito partilhado e não apenas numa política distributiva de apoios sociais que não resolvem os problemas, mas apenas adiam as suas consequências e potenciam o aumento da pobreza transgeracional.

As políticas de combate à pobreza deviam refletir a estratégia de um país em promover a integração social das pessoas na comunidade, na vida económica, no tecido social e no acesso ao Estado Social. Em vez disso o nosso sistema político tornou-se disfuncional e já não é capaz de pensar de forma pragmática em soluções para os problemas.

Estamos assim perante um enorme falhanço das políticas económicas e sociais das últimas duas décadas, que condenaram Portugal a uma quase estagnação e a recuar para os últimos lugares das economias europeias. Presentemente não parece que estejamos perante uma “janela de oportunidade” para repensar radicalmente a proteção às populações através de mecanismos que promovam a sua real participação e integração no tecido social e económico do país.