Idálio Revez, in Público online
“Temos de permitir que a natureza faça o seu caminho, e abandonar as plantas mais exigentes em água.” Há agricultores no Algarve que optaram por respeitar os escassos recursos existentes. Com sucesso.
Na Quinta do Freixo, onde não há falta de água, não se plantaram pomares de abacateiros, como seria de esperar. “Essa seria a opção fácil”, diz o sócio-gerente da empresa agrícola, Luís Silva, defensor de uma visão holística para o futuro do mundo rural, em que todas as suas componentes – vegetais e animais – desempenham um papel fundamental. Assim sendo, como é que as ovelhas e outros animais podem ajudar a manter o ecossistema e a terra fértil? A resposta a esta questão serviu de tema para um congresso internacional, realizado no final de Abril e que contou com a presença de 110 pessoas oriundas de 30 países, desde a Nova Zelândia aos EUA, passando pela vizinha Espanha.
A Quinta do Freixo, uma propriedade com 700 hectares situada no interior do concelho de Loulé, foi o local escolhido para juntar agricultores e investigadores preocupados com futuro do planeta. “Estamos numa zona que não é o Alentejo da moda, nem o Algarve do turismo clássico”, diz o sócio-gerente de uma exploração que não segue as linhas clássicas da agricultura. Luís Silva mostra o resultado, no território, do trabalho de um rebanho com mil ovelhas e 600 borregos. “Comem as ervas e deixam o estrume.” O solo agradece o fertilizante natural nele depositado e a regeneração das sementes, sublinha, faz-se de forma espontânea. “A matéria orgânica comporta-se como uma esponja na absorção da humidade” e, a partir daí, tendo a água garantida, todos os seres – animais e vegetais – entram na cadeia reprodutiva, assegurando que a vida pulsa neste espaço.
O que é a agricultura regenerativa?
As alterações climáticas evidenciam os velhos problemas dos países da bacia do Mediterrâneo: chuvas cada vez menos frequentes e mais intensas. “O solo é o maior reservatório, mas para funcionar com esse objectivo precisa de ter práticas agrícolas compatíveis com a preservação dos ecossistemas”, diz o director Regional de Agricultura do Algarve, Pedro Monteiro, destacando a importância da agricultura regenerativa. O conceito, reconhece, “não sendo novo, está a ter uma nova abordagem pela necessidade de encontrar novas soluções para o problema da seca”. No país, adianta, são pouco mais de meia dúzia de projectos a serem ensaiados, dois dos quais estão no Algarve
Os solos em Portugal, diz Pedro Monteiro, também professor da Universidade do Algarve, são pobres e, como tal, têm pouca capacidade de retenção da água. O que a agricultura regenerativa preconiza é aumentar a matéria orgânica na terra para esta criar as condições para uma maior absorção da chuva. A pastorícia, tal como se fazia nos métodos tradicionais da agricultura, está no centro do processo, onde nada se perde e tudo se transforma. Os animais ficam durante um período de tempo numa parcela e ao deixarem na terra os dejectos proporcionam o fermento para que todo o ecossistema renasça. Depois, o gado roda para outro sítio e assim se vai formando um mosaico de biodiversidade, com a natureza a ganhar novas formas e cores.
O tipo de culturas utilizado na agricultura regenerativa é outra das formas de encarar os desafios que se colocam a um território, cada vez mais dependente dos escassos recursos hídricos. A figueira e a alfarrobeira, árvores pouco exigentes em água, readquiriram, neste contexto, uma nova importância e não apenas económica. Os pomares intensivos de citrinos e abacateiros estão nas antípodas do novo conceito que está a ser trilhado: A terra só dá ao homem se ele a souber cuidar e alimentar. Até agora, o recurso aos adubos químicos tem sido prática corrente, para garantir a política da produção máxima a custos menores. Mas até quando?
Os visitantes são convidados a subir para os reboques dos tractores. Os assentos, improvisados, são fardos de palha, amarrados por cordas. “O transporte está homologado [condições de segurança]?”, graceja o representante da Direcção Regional de Agricultura, João Santana. O veículo segue em velocidade lenta. Junto a uma mina de água, Gustavo Alés, espanhol, chama a atenção para a importância dos animais selvagens – raposas e javalis – para manter o equilíbrio das espécies. “Javalis?”, questiona a professora da Universidade do Algarve, Emília Madeira, considerando que os porcos selvagens “são uma praga” devido ao descontrolo da espécie que se verifica por várias regiões do país. “Tenho um vídeo de uma raposa que entrou pelo restaurante adentro”, revela Luís Silva, lembrando que os “animais andam a vaguear” pela quinta, em harmonia com os outros seres. Ao fim e ao cabo, explica, “a gestão holística é perceber como funciona a relação das plantas com os animais e as milhares de ligações que se estabelecem. Não podemos estar contra a natureza, que é o que temos feito”, sublinha.
O tractor sobe a encosta e os adeptos da visão “holística” aplicada ao mundo rural são convidados a observar o desempenho das ovelhas, enquanto estas se alimentam. Os animais, diz Gustavo Alés, “são indissociáveis da actividade do agricultor como sucede há milhares de anos”. O que há de novo, prossegue o consultor do projecto Quinta do Freixo, é o maneio dos animais.
O rebanho (1600 cabeças) fica confinado a 1,5 hectares durante uma semana, ao invés do que se passava no passado, em que se dispersava por dezenas hectares. Na semana seguinte, passa para outra parcela. De princípio, explica, os animais comem as ervas mais apetitosas, como se estivessem num restaurante self-service. “Uma refeição gourmet”, diz o agrónomo Luís Silva. Porém, o método ensaiado foi concebido para levar os animais a diversificar a alimentação, sem direito a escolha de ementa. Numa perspectiva de conservação do ecossistema, diz, não é aconselhável lavrar a terra e mandar abaixo as ervas. Por outro lado, a exposição da terra nua ao sol, enfatiza Luís Silva, “descontrola por completo a microbiologia”. Durante o Verão, exemplifica, a superfície da terra nesta zona algarvia chega a atingir os 50 a 60 graus. Se houver cobertura vegetal, “a temperatura reduz 15 a 20 graus”. As conclusões surgem a partir do resultado das amostras recolhidas em 20 pontos, onde é feita a análise do solo e avaliada a diversidade faunística.
O facto de a quinta se localizar junto ao sítio de Paisagem Protegida da Rocha da Pena e perto da Fonte Grande (Alte) confere-lhe uma situação privilegiada em recursos hídricos. No entanto, a área de regadio é feita com parcimónia. Do conjunto dos 700 hectares da propriedade, 300 são utilizados para pastagens e produção hortícola. Nas restantes parcelas, extrai-se o figo, alfarroba e cortiça. A exploração completa-se com sector da transformação: produção de compotas, queijo de figo e aguardente e ainda há uma unidade de alojamento de agro-turismo com 16 quartos. Do conjunto dos clientes regulares, diz o proprietário, destacam-se os amantes do birdwatching, percursos pedestres e cicloturistas.
O método da gestão holística, que se ensaia nesta quinta há três anos, leva mais de 50 anos de prática noutros países; porém, durante décadas os agricultores estiveram divorciados da academia. Com as alterações climáticas e a terra a dar sinais de cansaço, a “aproximação entre cientistas e agricultores tornou-se imprescindível”. Essa foi a conclusão do congresso, que contou com a presença de Allan Savory, de 88 anos de idade, presidente do Instituto Savory, com sede no Colorado (EUA), bem como alunos e investigadores da Universidade do Algarve.
A agricultura regenerativa, do ponto de vista técnico, disse Allan, “tem conhecidos benefícios ambientais – falta é convencer os políticos”. A Quinta do Freixo, entretanto, anunciou que, graças a este método, recuperou seis hectares de zona de mato (esteva) para pastagem e vai prosseguir com o projecto. No próximo ano, pretende alargar a experiência a mais duas dezenas de hectares, introduzindo a criação de porcos, galinhas e vacas. “Temos de permitir que a natureza faça o seu caminho, e ao mesmo tempo abandonar as plantas mais exigentes em água”, rematou Luís Silva. E deixou uma nota de satisfação: “O nosso carneiro Zambujo voltou a receber (pela segunda vez) a distinção do melhor exemplar da raça campaniça na Ovibeja.”
Sem recorrer ao regadio, Rosa produz os primeiros figos maduros da Europa
Os pássaros namoram os figos que vão crescendo. A fruta, ainda verde, daqui por um mês já estará madura é à venda nos mercados de Paris. “Tudo o que produzo é para exportação, somos os primeiros produtores a chegar à Europa com figos biológicos.” A jovem agricultora Rosa Dias, da Quinta da Fornalha (Castro Marim), decidiu trilhar um percurso contrário àquele que é seguido pelos vizinhos espanhóis do outro lado do Guadiana, onde não há água que chegue para tanto regadio. “Aprendi a fazer aquilo que os meus avós faziam: cultivar a terra respeitando a natureza.” A quinta, de 30 hectares, é outro dos exemplos, a juntar à Quinta do Freixo, onde se pratica a agricultura regenerativa. “Só não tenho é o rebanho das ovelhas”, comenta.
Rosa Dias, licenciada em Psicologia Social, não se deixou seduzir pela cultura dos campos de abacateiros e citrinos como se vê em redor da sua propriedade, exigentes em rega. Por isso optou pelas culturas tradicionais, de sequeiro. “A água é escassa, estamos no clima mediterrânico, ouvimos e lemos, mas ignora-se o que a história nos ensina”, enfatiza. Nesta altura, com mais um ano consecutivo de seca severa, diz, “devíamos estar a conservar a pouca humidade que existe no solo, em vez de aumentar as áreas de regadio”. Ali, à beirinha do rio, chegam as brisas do Guadiana, bênção divina nos dias de calor tórrido. No entanto, a suavidade do vento não chega para matar a sede da terra. Por vezes, sente-se um sopro de ar quente que vem do interior da serra do Nordeste algarvio, como se fosse um prenúncio de incêndio. A diferença de temperaturas entre o dia e a noite, dizem os agricultores, calibra os açúcares da fruta, quando o stress hídrico não deita tudo a perder.
“O figo-lampo, preto, nos finais de Maio já está a sair.” As primeiras colheitas, recorda, podem atingir os 8 euros/quilo nos mercados de França e Alemanha. No pico da produção, Rosa Dias exporta, em média, uma tonelada por semana. “Se tivesse ficado em Lisboa, provavelmente, seria mais uma a fazer estudos de mercado”, diz, a olhar para o verde-escuro das folhas das figueiras. “Os figos são a minha cara”, diz a sorrir.
O regresso à terra onde nasceu, recorda, fê-la reviver os sonhos de criança. “Sou um bocadinho romântica”, admite. Sublinha que aprendeu também a ser gestora: “A quinta estava na falência, a exploração do meu pai não correu bem.” Livrou-se do garrote dos bancos, em 2016, ao fim de seis anos de actividade. A partir daí lançou-se num novo desafio. Em complemento à exploração agrícola, criou um alojamento local para 11 famílias. “Estamos a construir [literalmente] um projecto pedra a pedra.”
As folhas das árvores vão caindo, precipitadas por uma Primavera anormalmente quente. “Já o meu avô dizia: o solo precisa de ser alimentado e a água é vital.” A neta aprendeu a lição.
“Natureza em profundo sofrimento”
Quando chega o mês de Agosto, o Algarve turístico não se dá conta do que se passa na maior parte do território. A pouco mais de meia dúzia de quilómetros de distância das grandes cadeias de hotéis, mais para o interior, a água não corre nas torneiras como se fosse um bem infinito: “A natureza está em profundo sofrimento.” O stress hídrico, lembra Rosa Dias, faz parte da história dos povos do Sul, mas a aceleração do problema, obrigando todo o ecossistema a reagir causa apreensão. “Costumo dizer que, no Verão, vivemos a hibernação ao contrário: as cobras, sapos e outros bichos enfiam-se na terra para se protegerem do calor.”
Na quinta, mostra o pequeno bosque em redor da casa, como se fosse uma bolsa de oxigénio e frescura. As árvores, plantadas de forma a delinear percursos pedestres, têm apenas uma função: criar sombras e amenizar o clima.
A época dos fogos avizinha-se, como se fosse uma fatalidade que se repete ano após ano. O investimento nos meios de combate a incêndios, observa, não resolve todos os problemas. “Não se discutem as más práticas agrícolas, nem formas de melhorar a gestão do território.” As verbas do fundo ambiental, sugere, deveriam ser aplicadas em equipamentos públicos para triturar os sobrantes das podas, fornecendo assim mais matéria para fertilizar o solo. Na falta desse tipo de intervenção, critica, os agricultores, “fazem queimas ou oferecem [a madeira] aos espanhóis que a transportam para Huelva, transformando-a em pellets”.
A Quinta da Fornalha está integrada no perímetro de rega do sotavento algarvio, com água fornecida pelo sistema de barragens Beliche-Odeleite. A agricultura faz-se nas várzeas, seguindo a tradição da localidade. No resto da propriedade, além das culturas das leguminosas (ervilhas e favas), predomina o pomar de sequeiro (figueiras, oliveiras, alfarrobeiras) e ainda uma pequena parcela de citrinos. A quinta possui uma barragem com cerca de um hectare, que não está a ser utilizada. A função é servir de “reserva” e um lugar de repouso de aves e outros animais que ali encontram o seu habitat, como se fossem turistas a gozar férias.

