3.5.23

Quebrar os muros do Bairro do Cerco do Porto com uma galeria a céu aberto

André Borges Vieira (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografia), in Público online

O cineasta/fotógrafo Ricardo Leite trabalhou alguns meses com os moradores do conjunto habitacional camarário. O resultado é uma exposição que durará até que o desgaste do tempo decida que terminou.

O que define o que é ou não é um espaço de exposições poderá ter mais que ver com as obras de arte que estão expostas do que com a natureza do local em si. Foi a seguir à risca esta noção que o cineasta/videógrafo Ricardo Leite, vestindo a sua pele de fotógrafo, partiu para o projecto Cerco de Prata. Durante cerca de um ano, o artista tornou-se presença assídua do Bairro do Cerco do Porto à procura de inspiração e montou lá o seu ateliê e a sua galeria. O resultado artístico deu origem a uma exposição temporária. O objectivo que pretende atingir a longo prazo com o seu trabalho passa por ajudar a mandar abaixo os muros que separam as pessoas que vivem neste e noutros conjuntos habitacionais camarários do resto da cidade.

Desta empreitada nasceu obra materializada em imagens, sobretudo de retratos de alguns moradores do Cerco. Ao produto final chegou-se a partir dos disparos do fotógrafo e de quem quis arriscar pegar numa máquina fotográfica. No final, todos os intervenientes, ou seja, os moradores, deram uma mão para ajudarem a transferir película para tecido e para montar a exposição. O mais importante, considera o autor, foi conseguir criar essa interacção com quem ali vive.

Há cerca de duas semanas fez-se uma festa para a inauguração da exposição. A galeria foi montada no exterior do bairro e usaram-se varais, desta vez não para pôr a roupa lavada a secar, mas sim para expor oito imagens emulsionadas em tecido, cada uma com 1,20 metros por 80 centímetros. À vista ficaram algumas caras de quem habita o Cerco. Algumas das peças ficarão expostas até que o desgaste do tempo decida que a exposição chegou ao fim. Outras, o fotógrafo levou-as consigo. Uma delas entregou-a em mãos a um dos moradores que mais o ajudou na concretização do projecto. Essa estará exposta, mas dentro de quatro paredes.

Ricardo Leite, que também fez parte da equipa do documentário sobre o bairro de São João de Deus, Tarrafal, do realizador Pedro Neves, quando foi para o terreno tinha apenas algumas certezas: “Sabia que queria fotografar lá e expor no mesmo sítio. Queria usar o bairro como galeria”.

Outras motivações também já existiam e tinham uma justificação. “A vontade de fotografar no bairro nasceu por causa da invisibilidade que a maior parte dos bairros, principalmente o do Cerco, tem na cidade”, afirma o fotógrafo, que já conhece bem outros conjuntos habitacionais camarários da cidade.
Estigma existe, mas há liberdade

“O bairro do Cerco é ainda hoje um bairro muito estigmatizado”, diz. A sua própria designação - uma referência à primeira metade do século XIX, quando as tropas absolutistas de D. Miguel cercaram as forças liberais de D. Pedro – ainda parece fazer algum sentido. Segundo o autor do projecto, quem ali mora continua a viver numa espécie de ilha dentro da cidade.

Mas, viver em isolamento, acredita, pode ter algumas vantagens: “Ao mesmo tempo também é um espaço de liberdade. Há crianças a brincar na rua. As crianças vão para a rua porque toda a gente está atenta. Os vizinhos estão a olhar, os vizinhos estão a ver. É um espaço mais ou menos vigiado por eles próprios. É engraçado porque há crianças que saem muitas vezes sozinhas e estão à vontade porque há sempre gente que toma conta delas. Ainda se anda de bicicleta, salta-se à corda e é algo que já não se vê noutras zonas da cidade.” Porém, reconhece, há “quem viva com muitas dificuldades”.

Esse isolamento também serve de motor para aguçar o engenho. Ricardo Leite acredita existir uma motivação extra para que se combata o ócio. “Realmente depois percebo de onde é que vem aquela criatividade toda porque vem dessa necessidade de sobreviver. Sobretudo a comunidade cigana, mas não só, é muito aberta e muito ágil a abraçar coisas novas porque realmente todos os dias têm de inventar novas maneiras de sobreviver. E isso torna-os mais criativos. No geral, os moradores são pessoas muito curiosas e com muita vontade de aprender e de perceber o outro lado. Porque muitas vezes isso lhes é vedado. E este projecto surgiu no sentido de querer abrir um bocadinho mais as fronteiras”, afirma.