Nuno Amaral, São Paulo, in Jornal Público
Chamam-lhe a "escravatura da dívida" e é o lado negro da expansão da cultura do etanol. O Governo tinha prometido erradicá-la até 2006. Mas falhou
É um cenário que as autoridades brasileiras detectaram em vários estados do país. Alojamentos totalmente repletos. Falta de água, comida estragada. Centenas de trabalhadores coagidos. E salários em atraso. Ou "penhorados" por supostamente deverem dinheiro aos empregadores. A "escravatura por dívida" não é nova no Brasil e continua a ser preocupante. Os dados provam-no.
Em 2008, foram libertadas no Brasil 4418 pessoas que eram mantidas em condições de trabalho análogas à escravidão, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Apesar de alarmantes, estes números são inferiores aos do ano anterior, em que se verificou um recorde de 5999 pessoas libertadas.
Há cinco anos, o Presidente Lula da Silva lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo que previa acabar com esta realidade até 2006. Mas isso não aconteceu.
Segundo disseram algumas das pessoas resgatadas, não era a primeira vez que trabalhavam em circunstâncias semelhantes. Mas queriam "mandar dinheiro para casa". Só que as dívidas com os fazendeiros eram sempre maiores do que os salários e acabavam reféns dos patrões.
Na rota da cana-de-açúcar
Os números mostram casos de libertação de pessoas escravizadas em 18 estados. A maior concentração ocorreu onde houve forte expansão da cultura de cana-de-açúcar, como em Goiás, Alagoas e no Pará, estados tradicionalmente sinalizados a vermelho no mapa do novo trabalho escravo. Em todas estas regiões há um dado em comum: a cultura de cana teve forte expansão, movida pela política de incentivo ao etanol do Governo Lula.
Para Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, a intervenção do Estado tem aumentado, com resultados à vista. "Apesar de o número de pessoas libertadas ser inferior ao de 2007, as acções aumentaram. Atingiu-se um valor recorde, falta fazer o resto", disse ao PÚBLICO.
Investigador em Ciências do Trabalho, Sakamoto nota que 120 anos depois do fim da escravatura do Brasil surgiu outra forma de aprisionar o trabalhador, a escravidão por dívida. "O trabalhador vive uma situação tão degradante, tão indigna, que acaba achando que não tem direito a mais. É uma violência simbólica com um poder avassalador", explica.
Xavier Plassat, membro da Comissão Pastoral da Terra que participou em várias operações no estado de Tocantins, disse ao PÚBLICO que, em muitos casos, os descontos com alimentação e medicamentos não permitiam aos empregados receber o salário prometido, de cerca de 60 euros (200 reais). "Havia gente com saldo de dois reais [75 cêntimos] ou 10 [três euros e setenta cêntimos]. E também os que estavam devendo para o mês seguinte. Isso era o normal em várias propriedades", relatou.
"A pobreza de muita gente do Nordeste é tão grande, que, apesar de escravizados, os trabalhadores sentem que o proprietário ainda lhes faz um favor, são tratados como animais e ainda ficam agradecidos, porque não têm nada... Até a dignidade lhes é retirada", sustenta Plassat.
Tripé de efeitos perversos
Leonardo Sakamoto antevê na persistência desta realidade um "tripé" de efeitos perversos: a pobreza de milhares de pessoas no Nordeste, a ganância dos proprietários e a impunidade. "Apesar de as acções de fiscalização terem aumentado, há pouquíssimos fazendeiros condenados", frisou.
Por norma, os trabalhadores das regiões mais pobres são aliciados pelo "gato", o responsável pela selecção e pagamento da viagem. A viagem até ao local de trabalho é a primeira dívida. Na "fazenda" ou na indústria no etanol, o trabalhador migrado apercebe-se de que o ordenado é substancialmente mais baixo do que o combinado.
A espiral de dívidas aumenta quando tem de comprar o material de trabalho e de protecção pessoal ao "gato" ou ao dono da fazenda.
Como, por norma, as fazendas estão distantes das zonas urbanas, os trabalhadores têm de adquirir bens de consumo na "cantina" do patrão. Os preços, muito inflacionados, funcionam como algemas: no final do mês, o vencimento não chega para suprir as dívidas. "É então que se instala a espiral, novo mês, novas dívidas e o trabalhador torna-se escravo", diz Sakamoto.


