9.1.15

Atentados em Paris."Há uma frustração no mundo islâmico"

Por Pedro Rainho, in iOnline




Sheik Munir não consegue enquadrar os atentados em nome do islão nas palavras do profeta Maomé. O líder da comunidade islâmica diz que os autores estão "marginalizados"




O sheik David Munir não consegue perceber. Allahu Akbar, Deus é grande. Segundos depois de disparar à queima-roupa sobre um polícia que passava de bicicleta na rua, matando-o, essas mesmas palavras foram gritadas por um dos responsáveis pelo ataque à redacção do "Charlie Hebdo", esta quarta-feira. Na mesquita central de Lisboa ouvem-se as mesmas palavras, uma e outra vez, durante a oração do início da tarde. O sheik repete as palavras. Allahu Akbar. Deus é grande.

O líder da comunidade islâmica em Portugal não consegue perceber como é que actos como os desta semana em Paris podem acontecer sob o manto da palavra sagrada. "O islão é o mesmo, é uno." Mas as palavras que o sheik lê no Corão são de tolerância, a mensagem é a de que se deve responder ao ataque com a paz. Os cartoons publicados pelo semanário "Charlie Hebdo" são "uma ofensa", não esconde. "Mas a resposta nunca pode ser a violência, nunca. É essa a postura que cada muçulmano deve ter."

À porta da mesquita, tudo na mesma. Quem passa frente ao edifício não se prende em considerações sobre os atentados de Paris nem mostra sinais de desconforto. As conversas são banais, de dia-a-dia. No interior, entre os fiéis que vão chegando para a oração conjunta, o ambiente é de serenidade. "Estamos na comunidade, somos compreendidos", garante o sheik. Mas isso pode não ser suficiente. Ataques perpetrados em nome do islão podem ter consequências para a restante comunidade islâmica, admite. "Nos transportes públicos, no contacto diário com a população podemos ser olhados com receio."

O sheik reflecte sobre a leitura dos versículos, pensa nos atentados e não encontra razão para o que aconteceu. "É como tirar um texto do seu contexto original e dar-lhe uma interpretação completamente diferente", diz David Munir. Só assim consegue apresentar uma explicação para que se justifiquem mortes em nome do islão.

Ou então é outra coisa. "Há uma frustração no mundo islâmico", desabafa o líder religioso. "Quando um muçulmano sai do seu país, para onde é que ele emigra?" Para o Ocidente, vai em busca da democracia. "Não vai para outros países muçulmanos, vai para onde não há falta de liberdade e onde não faltam condições de vida."

Mas Said e Chérif Kouachi são franceses, descendentes de argelinos. Consequência da "marginalização" social, aponta o sheik. Jovens que viveram toda a vida ou grande parte dela no contexto europeu, mas têm raízes noutros pontos culturais e geográficos. Isso e uma ignorância em relação aos princípios basilares do islão, dois factores que facilitam a tarefa de quem está do outro lado - Al-Qaeda, Estado Islâmico - e pretende servir-se destes "peões" em nome de uma guerra santa.

Ontem, tal como noutros momentos de tensão em que o foco incide de imediato sobre os muçulmanos, nunca lhe chegaram relatos de discriminação. Menos ainda relatos de ataques a membros da comunidade, ao contrário do que aconteceu, ainda ontem, junto a uma mesquita no sul de Paris. Pouco tempo antes, a 25 de Dezembro, uma outra mesquita, dessa vez em Estocolmo, na Suécia, foi incendiada quando decorriam orações no interior, ferindo cinco pessoas. O timing não é casual. Em vários países europeus, mas sobretudo na região do norte da Europa, o debate sobre a imposição de limites à imigração está quente. A comunidade islâmica portuguesa escapa às demonstrações de xenofobia, mas o risco existe. "Nós somos particularmente afectados por estes casos porque somos muçulmanos e estes actos são praticados em nome do islão", reconhece o líder religioso.

Dois homens franceses entraram na redacção do jornal, chamaram pelo nome cada um dos alvos que procuravam e dispararam a matar. O polícia que garantia a protecção da redacção foi morto pelo caminho. O outro polícia - ele próprio muçulmano - foi abatido de forma indiscriminada.

Quiseram vingar a "ofensa" a Maomé, os desenhos que satirizavam o profeta. "Quando se proferem palavras contra Deus, um muçulmano não toma isso a peito porque Deus é superior a tudo. Mas quando se ofende o profeta, essa ofensa é muito sentida porque ele é o exemplo a seguir, ele é o modelo", explica o sheik. O "Charlie Hebdo" passou a linha da sua liberdade ao publicar os cartoons de Maomé, diz o líder religioso em Portugal. A reacção tem, por isso, de existir. "Mas eu vivo numa democracia ocidental, que se rege pela lei. E é só nesse campo que tenho de intervir", sublinha o sheik.