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8.5.23

Como se lida com reclusos “radicalizados” na UE? Portugal não tem programa específico

Ana Cristina Pereira, in Público online

“O regime específico aplicável deve respeitar os mesmos direitos humanos e obrigações internacionais concedidos a qualquer recluso”, escrevem autoras de relatório europeu.

No seio da União Europeia cresce a inquietação com a “radicalização”, entendida como adesão a ideologia extremista que pode conduzir a actos terroristas. Diversos Estados-membros desenvolveram acções de “desradicalização” nas prisões. O sistema prisional português diz que, pelo menos para já, não detectou quaisquer sinais de "radicalização" e, por isso, não desenvolveu qualquer programa.

A Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE) do Parlamento Europeu é que pediu ao Departamento de Políticas para os Direitos dos Cidadãos e os Assuntos Constitucionais um relatório sobre condições de detenção. As autoras, Julia Burchett, da Universidade de Bruxelas, e Anne Weyembergh, na Universidade Livre de Bruxelas, não se ficaram pela sobrelotação e outros temas repetidos.

“Há cada vez mais reclusos extremistas — isto é, condenados por delitos relacionados com o terrorismo e condenados por delitos comuns que se radicalizaram na prisão — e estes têm origens mais diversificadas e mais ampla variedade de sentenças, muitas de relativa curta duração”, observam no documento. Ora, tal combinação torna a gestão “mais urgente e desafiante”.

As baixas taxas de reincidência neste tipo de crimes não bastam para sossegar quem se ocupa deste tema. Pelo menos cinco ataques jihadistas perpetrados no espaço comunitário (Áustria, Alemanha, Reino Unido quando membro) envolveram pessoas que já tinham estado encarceradas por terrorismo ou acabado de sair de uma prisão. Esses episódios “reacenderam o debate sobre a necessidade de avaliar a eficácia dos programas de ‘desradicalização’”.

Ao que se lê no relatório “Prisões e condições de detenção na UE”, como este assunto é da competência dos Estados-membros, “as instituições europeias limitam-se a definir prioridades de trabalho, orientações e recomendações”. “Embora reconheça a necessidade de estabelecer diferentes regimes de detenção para prevenir a ‘radicalização’ nas prisões, o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes sublinha que esses regimes devem respeitar os mesmos direitos humanos e as mesmas obrigações internacionais garantidas a qualquer recluso”.
O caso da França

Segundo Burchett e Weyembergh, diferentes estratégias têm sido testadas pelos serviços prisionais dos Estados-membros que mais lidam com esta realidade. Há os que apostam na dispersão, os que optam pela concentração e os que preferem isolamento. A maioria caminha para um “regime misto”. Nalguns “emergem preocupações”.

A França, por exemplo, criou seis unidades para avaliar o grau de “radicalização” e seis unidades para o tratamento da “radicalização”. Uma vez avaliado o risco, decide o regime de detenção adequado. O Comité Europeu para a Prevenção da Tortura visitou algumas unidades em 2019. Felicitou o facto de disporem de pessoal treinado e condições adequadas. Notou, todavia, insuficiente actividade disponível. E questionou o facto de as medidas de segurança mais restritivas serem aplicadas a todos.

“No sistema prisional português não se detectaram, até ao presente momento, fenómenos ou sinais de radicalização islâmica ou outra. Esta direcção geral não tem em execução qualquer programa específico de ‘desradicalização’, uma vez que, como se referiu, não há, por ora, matéria substantiva para tal aplicação.” Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais

As autoras do relatório dão conta de queixas semelhantes sobre unidades exclusivas criadas na Bélgica. Vários reclusos apresentaram queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Aquela entidade condenou a França por não terem qualquer hipótese de recurso judicial para contestar a decisão de colocá-los em tais unidades. Agora, “estas unidades quase não têm reclusos”.
Nova estratégia em Portugal

Questionada pelo PÚBLICO, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) informa que “no sistema prisional português não se detectaram, até ao presente momento, fenómenos ou sinais de radicalização islâmica ou outra”. “Esta direcção geral não tem em execução qualquer programa específico de ‘desradicalização’, uma vez que, como se referiu, não há, por ora, matéria substantiva para tal aplicação.”

O tema está na ordem dia. No dia 3 de Maio, foi publicada a nova Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, que assenta em quatro eixos (prevenir, proteger, perseguir e responder) e deverá ser concretizada através de planos de acção. Aí se expressa que Portugal deverá “continuar a participar activamente nos esforços europeus e internacionais de combate à radicalização, aos extremismos violentos e à sua expressão agravada, o terrorismo”.

“A área governativa da Justiça tem estado atenta a este fenómeno, designadamente através da participação da PJ e da DGRSP em actividades da Radicalization Awareness Network/Rede de Conhecimento da Radicalização, da União Europeia”, informa o Ministério da Justiça. No âmbito da nova ENCT, “a PJ e a DGRSP cooperarão, sempre que necessário, no desenvolvimento de acções específicas com vista à detecção e o controlo de detidos e presos com risco de envolvimento em condutas relacionadas com o terrorismo e o seu financiamento”.

Embora até à data o sistema prisional não tenha “quaisquer indícios de fenómenos de radicalização islâmica ou outra”, essa hipótese está presente. “Sem prejuízo da não detecção desses indícios, a DGRSP articula com outros serviços do Estado e com organismos internacionais políticas de vigilância e de detecção deste fenómeno, mantendo-se a vigilância atenta e activa caso surja matéria substantiva que justifique a adopção de medidas adicionais”.

Normas mínimas

O relatório europeu debruça-se sobre outros aspectos relacionados com as condições de detenção, dando atenção à velha questão da sobrelotação. “É importante abordar as causas profundas do problema das más condições de detenção através de uma abordagem abrangente/holística que leva em consideração todas as medidas de justiça criminal relevantes que influem decisivamente no fluxo do encarceramento e envolvem todos os actores relevantes.”

No fim, as investigadoras recomendam que se pondere a possibilidade de adopção de um instrumento legislativo que estabelecesse normas mínimas da União. E que se desenvolvam indicadores comuns para medir a sobrelotação prisional e o acesso a medidas alternativas à prisão.


Como se lida com reclusos “radicalizados” na UE? Portugal não tem programa específico

Ana Cristina Pereira, in Público



“O regime específico aplicável deve respeitar os mesmos direitos humanos e obrigações internacionais concedidos a qualquer recluso”, escrevem autoras de relatório europeu.


No seio da União Europeia cresce a inquietação com a “radicalização”, entendida como adesão a ideologia extremista que pode conduzir a actos terroristas. Diversos Estados-membros desenvolveram acções de “desradicalização” nas prisões. O sistema prisional português diz que, pelo menos para já, não detectou quaisquer sinais de "radicalização" e, por isso, não desenvolveu qualquer programa.

A Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE) do Parlamento Europeu é que pediu ao Departamento de Políticas para os Direitos dos Cidadãos e os Assuntos Constitucionais um relatório sobre condições de detenção. As autoras, Julia Burchett, da Universidade de Bruxelas, e Anne Weyembergh, na Universidade Livre de Bruxelas, não se ficaram pela sobrelotação e outros temas repetidos.

“Há cada vez mais reclusos extremistas — isto é, condenados por delitos relacionados com o terrorismo e condenados por delitos comuns que se radicalizaram na prisão — e estes têm origens mais diversificadas e mais ampla variedade de sentenças, muitas de relativa curta duração”, observam no documento. Ora, tal combinação torna a gestão “mais urgente e desafiante”.

As baixas taxas de reincidência neste tipo de crimes não bastam para sossegar quem se ocupa deste tema. Pelo menos cinco ataques jihadistas perpetrados no espaço comunitário (Áustria, Alemanha, Reino Unido quando membro) envolveram pessoas que já tinham estado encarceradas por terrorismo ou acabado de sair de uma prisão. Esses episódios “reacenderam o debate sobre a necessidade de avaliar a eficácia dos programas de ‘desradicalização’”.

Ao que se lê no relatório “Prisões e condições de detenção na UE”, como este assunto é da competência dos Estados-membros, “as instituições europeias limitam-se a definir prioridades de trabalho, orientações e recomendações”. “Embora reconheça a necessidade de estabelecer diferentes regimes de detenção para prevenir a ‘radicalização’ nas prisões, o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes sublinha que esses regimes devem respeitar os mesmos direitos humanos e as mesmas obrigações internacionais garantidas a qualquer recluso”.

O caso da França

Segundo Burchett e Weyembergh, diferentes estratégias têm sido testadas pelos serviços prisionais dos Estados-membros que mais lidam com esta realidade. Há os que apostam na dispersão, os que optam pela concentração e os que preferem isolamento. A maioria caminha para um “regime misto”. Nalguns “emergem preocupações”.

“No sistema prisional português não se detectaram, até ao presente momento, fenómenos ou sinais de radicalização islâmica ou outra. Esta direcção geral não tem em execução qualquer programa específico de ‘desradicalização’, uma vez que, como se referiu, não há, por ora, matéria substantiva para tal aplicação.” Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais


A França, por exemplo, criou seis unidades para avaliar o grau de “radicalização” e seis unidades para o tratamento da “radicalização”. Uma vez avaliado o risco, decide o regime de detenção adequado. O Comité Europeu para a Prevenção da Tortura visitou algumas unidades em 2019. Felicitou o facto de disporem de pessoal treinado e condições adequadas. Notou, todavia, insuficiente actividade disponível. E questionou o facto de as medidas de segurança mais restritivas serem aplicadas a todos.

As autoras do relatório dão conta de queixas semelhantes sobre unidades exclusivas criadas na Bélgica. Vários reclusos apresentaram queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Aquela entidade condenou a França por não terem qualquer hipótese de recurso judicial para contestar a decisão de colocá-los em tais unidades. Agora, “estas unidades quase não têm reclusos”.
Nova estratégia em Portugal

Questionada pelo PÚBLICO, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) informa que “no sistema prisional português não se detectaram, até ao presente momento, fenómenos ou sinais de radicalização islâmica ou outra”. “Esta direcção geral não tem em execução qualquer programa específico de ‘desradicalização’, uma vez que, como se referiu, não há, por ora, matéria substantiva para tal aplicação.”

O tema está na ordem dia. No dia 3 de Maio, foi publicada a nova Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, que assenta em quatro eixos (prevenir, proteger, perseguir e responder) e deverá ser concretizada através de planos de acção. Aí se expressa que Portugal deverá “continuar a participar activamente nos esforços europeus e internacionais de combate à radicalização, aos extremismos violentos e à sua expressão agravada, o terrorismo”.

“A área governativa da Justiça tem estado atenta a este fenómeno, designadamente através da participação da PJ e da DGRSP em actividades da Radicalization Awareness Network/Rede de Conhecimento da Radicalização, da União Europeia”, informa o Ministério da Justiça. No âmbito da nova ENCT, “a PJ e a DGRSP cooperarão, sempre que necessário, no desenvolvimento de acções específicas com vista à detecção e o controlo de detidos e presos com risco de envolvimento em condutas relacionadas com o terrorismo e o seu financiamento”.


Embora até à data o sistema prisional não tenha “quaisquer indícios de fenómenos de radicalização islâmica ou outra”, essa hipótese está presente. “Sem prejuízo da não detecção desses indícios, a DGRSP articula com outros serviços do Estado e com organismos internacionais políticas de vigilância e de detecção deste fenómeno, mantendo-se a vigilância atenta e activa caso surja matéria substantiva que justifique a adopção de medidas adicionais”.
Normas mínimas

O relatório europeu debruça-se sobre outros aspectos relacionados com as condições de detenção, dando atenção à velha questão da sobrelotação. “É importante abordar as causas profundas do problema das más condições de detenção através de uma abordagem abrangente/holística que leva em consideração todas as medidas de justiça criminal relevantes que influem decisivamente no fluxo do encarceramento e envolvem todos os actores relevantes.”

No fim, as investigadoras recomendam que se pondere a possibilidade de adopção de um instrumento legislativo que estabelecesse normas mínimas da União. E que se desenvolvam indicadores comuns para medir a sobrelotação prisional e o acesso a medidas alternativas à prisão.

18.3.19

O mundo está doente da memória

Rui Tavares, in Público on-line

Só quem não faz ideia do horror que a II Guerra Mundial foi pode brincar com a ideia de acicatar grupos de humanos uns contra os outros.

Para um historiador, um pormenor particularmente inquietante do atentado terrorista que matou 50 pessoas e feriu outras 50 em duas mesquitas de Christchurch, Nova Zelândia, estava escrito a tinta branca nas armas usadas pelo assassino: datas, datas e mais datas de acontecimentos históricos; nomes, nomes e mais nomes de personagens históricas. Da Batalha de Lepanto em 1571 ao Cerco de Viena em 1688, da Batalha de Poitiers em 732 ao Cerco de Acre em 1189, o assassino tinha as armas saturadas de referências históricas.

O que quer isto dizer? Em primeiro lugar, comecemos por notar que esta fixação pela história por parte de um terrorista islamofóbico é também um dos traços recorrentes do terrorismo islamista. Também o ISIS saturava o seu discurso com referências a batalhas e às suas datas. Muitas vezes as mesmas, precisamente porque se tratam de episódios nos conflitos medievais e modernos entre muçulmanos e cristãos que estes fanáticos anseiam por recriar hoje em nome das suas insanas obsessões com o atear do rastilho a uma “guerra de civilizações”.

Arrisco o palpite de que se disséssemos ao terrorista de Christchurch que ele não é mais do que a versão simétrica dos terroristas do ISIS ele não se chocaria nem ficaria desagradado: pelo contrário, ele investiu o sentido da sua vida exatamente no mesmo objetivo que o ISIS descrevia como o de acabar com a “zona cinzenta” onde pessoas de religiões diferentes convivem pacífica e até amistosamente. Para ele, matar inocentes para provocar retaliações é uma tática de eleição, particularmente numa época em que o ISIS está sem fôlego; se lhe acontecer trazer o terrorismo islamista de novo à vida o terrorista islamofóbico ficará provavelmente contente. Parece contraditório mas claro que não é, porque aquilo que ele vê como maior perigo não é na verdade o “inimigo”: é antes toda a gente de paz e tolerância, de todas as religiões e origens, que não têm senão desprezo pelos terroristas de ambos os lados. Somos nós. Por isso acertou tanto a primeira-ministra neozelandesa ao referir-se às vítimas do atentado dizendo “eles somos nós”, e por duas razões: porque é preciso combater o discurso do “nós contra eles”, e porque todos aqueles que combaterem o discurso do “nós contra eles” se tornam imediatamente obstáculos no pensamento do fanático.

Quando vi as armas do ataque e li excertos do “manifesto” do terrorista soube imediatamente o que estava a ler: as palavras de um imitador de Breivik, o terrorista de extrema-direita norueguês que ceifou a vida de mais de 70 jovens na ilha de Utøya. No verão de 2011 passei vários dias lendo o “compêndio” que Breivik publicou, no qual descobri que eu era um indivíduo que ele certamente consideraria um “traidor de categoria B” (“políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” a punir com execução e expropriação). Na altura escrevi-o para este jornal: aquela ideologia provocaria seguidores. Agora aqui está.


Que ideologia é aquela? Estamos a falar de algo semelhante mas não exatamente igual ao nacionalismo que tanto tem intoxicado a política mundial nos últimos anos. De semelhante tem o egoísmo coletivo elevado a princípio cimeiro da política: para esta gente o mundo é um jogo de soma zero em que para uns ganharem outros têm de perder. De diferente tem que estes “uns” e “outros” não são necessariamente nações. Tal como para o ISIS, que não acredita em nações (supostamente invenções dos homens e não de Deus) e investe toda a ideia de soberania na “umma”, ou comunidade dos fiéis muçulmanos dirigida por um califa, os terroristas de Utøya e Christchurch são apóstolos do racismo violento. Note-se que o terrorista de Christchurch não era neozelandês, mas sim australiano e para ele atravessar a fronteira para matar gente noutro país não lhe dizia nada. Para ele o impulso racista é superior ao impulso nacionalista. Nós já vimos isto antes; era a ideologia de Hitler.
E aí voltamos à questão das datas e das obsessões históricas de gente historicamente ignorante que pulula nas catacumbas da Internet e das redes sociais.

Há muito que estou convencido que na raiz de muitos dos nossos problemas está um problema de memória: à medida que as catástrofes do passado se vão afastando das lembranças dos vivos e que as sociedades não são capazes de reproduzir um discurso cívico sobre o nosso passado comum, mais vemos a memória ser substituída por mitos em que gente leviana se projeta como se fossem heróis reincarnados. Só quem não faz ideia do horror que a II Guerra Mundial foi pode brincar com a ideia de acicatar grupos de humanos uns contra os outros. Só quem não sabe o mal que as teorias da conspiração fizeram no passado pode hoje propalar mitos sobre os “globalistas” ou “a grande substituição de populações” que são bem mais nem menos do que as versões contemporâneas das ideologias que levaram ao Holocausto.

A solução para isto passa por recuperar a memória verdadeira e rigorosa do passado. Mas tem de ir mais longe do que isso: passa por um discurso para o futuro que demonstre que há mundo para todos; que a humanidade é só uma; e que verdadeiros heróis são os que promovem a tolerância e o cosmopolitismo. Só assim conseguiremos impedir que jovens substituam a memória por mitos e matem e morram em nome de batalhas de há séculos e milénios que nunca foram heróicas.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

1.2.17

UE pode rejeitar asilo a “colaboradores” de grupos terroristas

Por AFP, in Exame

Segundo a justiça, asilo pode ser negado mesmo que solicitantes não tenham cometido "efetivamente atos de terrorismo"

Os países da União Europeia (UE) podem rejeitar a solicitação de asilo de quem participou “nas atividades de uma rede terrorista”, como o recrutamento de combatentes, mesmo que não tenham cometido “efetivamente atos de terrorismo”, informou a justiça europeia.

A exclusão do status de refugiado “pode ser ampliada também aos que realizam atividades de recrutamento, organização, transporte ou de equipar as pessoas que viajam a um Estado distinto” para “cometer, planejar ou preparar atos terroristas”, segundo o Tribunal de Justiça da UE (TJUE).

O alto tribunal europeu se pronuncia assim sobre uma pergunta do Conselho de Estado belga a respeito do caso de Mostafa Lounani, sobre quais eram as condições de exclusão do status por “atos contrários às finalidades e aos princípios das Nações Unidas”, no marco da diretriz europeia sobre refugiados.

Em 2006, o marroquino foi condenado pela justiça belga a uma pena de prisão de seis anos por participar na Bélgica nas atividades do Grupo Islâmico Combatente Marroquino (GICM), especialmente por “participação ativa na organização de uma rede de envio de voluntários ao Iraque”, destaca o comunicado do TJUE.

Lounani apresentou um pedido de asilo no país europeu quatro anos depois, por considerar que, se fosse repatriado ao Marrocos, as autoridades de seu país poderiam considerá-lo um islamita radical e persegui-lo.

Bruxelas rejeitou o pedido em um primeiro momento, apesar do Conselho de Contencioso de Estrangeiros ter considerado em duas resoluções, de 2011 e 2012, que ele deveria receber os status de refugiado, já que os atos pelos quais foi condenado não eram suficientemente graves para provocar sua expulsão, em virtude das regras da UE.

“O conceito de ‘atos contrários às finalidades e aos princípios das Nações Unidas’ não se limita aos atos de terrorismo”, destaca o TJUE, que recorda uma resolução do Conselho de Segurança de 2014 sobre a “crescente ameaça que representam os combatentes terroristas estrangeiros”.

2.8.16

Papa Francisco: “Não é justo dizer que o Islão é terrorista”

in o Observador

O Papa rejeitou a associação entre Islão e terrorismo, e disse: "Se falo de violência islâmica, também tenho de falar da violência cristã".
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Francisco falou aos jornalistas no avião, durante a viagem de regresso a Itália

O Papa Francisco considerou que “não é justo” identificar o Islão com a violência, e disse que o terrorismo é da autoria de “grupos fundamentalistas”, que são minorias. Durante o voo de regresso a Itália, após quatro dias na Polónia a presidir às Jornadas Mundiais da Juventude, o líder da Igreja Católica defende que “os muçulmanos não são todos violentos“. O autoproclamado Estado Islâmico, esse sim, é que “se apresenta como violento”.

“Uma coisa é verdade: em quase todas as religiões há sempre um pequeno grupo fundamentalista. Também nós os temos“, disse o Papa Francisco. “Todos os dias, quando abro os jornais, vejo violência em Itália, alguém que mata a namorada, outro que mata a sogra. E são católicos batizados. Se falo de violência islâmica, também tenho de falar da violência cristã“, sublinhou.

Questionado novamente sobre o assassinato de um padre em França, o Papa Francisco insistiu que “não se pode dizer, não é verdade e não é justo dizer que o Islão é terrorista“.

O responsável da Igreja Católica sublinhou ainda que o terrorismo é muitas vezes consequência da falta de “ideais” dos jovens europeus. “Quantos entre os nossos jovens europeus é que abandonámos, sem ideais, sem trabalho. Eles voltam-se para as drogas, para o álcool, e vão mais longe e juntam-se a grupos fundamentalistas”, lamentou o Papa.

“Quando se põe no centro da economia mundial o deus dinheiro, não o homem e a mulher, isto é já um primeiro terrorismo”, considerou o Papa, acrescentando que “podemos matar tanto com a língua, como com uma faca”.

29.7.16

Estaremos a ajudar a criar assassinos?

in Público on-line

Em França já se omite o nome e os rostos dos autores de atentados terroristas. Um debate relevante.

Ontem soube-se o nome do segundo atacante no infame atentado que vitimou o padre Jacques Hamel. Era um jovem de 19 anos, natural da Saboia, nordeste de França, que a polícia só conseguiu identificar comparando amostras de ADN recolhidas do cadáver (a polícia matou os dois atacantes a tiro, à saída da igreja, depois de dado o alarme por uma das freiras feitas reféns, que conseguiu fugir enquanto o padre era degolado). O agora identificado seria um jihadista procurado pela polícia há dias, depois de uma agência estrangeira lhes ter enviado uma fotografia, dizendo pertencer a um homem que estaria prestes acometer um atentado no país. O atacante tem um nome e a polícia divulgou-o (tal como fez o PÚBLICO), mas em França foi aberto um debate entre os meios de comunicação acerca dessa divulgação. O diário Le Monde, por exemplo, decidiu não publicar fotografias dos assassinos. E a Rádio Europe 1, tal como o canal de televisão France 24 e o jornal católico La Croix decidiram não apenas não divulgar fotos mas também omitir os nomes de todos os que praticarem actos de terrorismo. Há um argumento sensível e compreensível para tais decisões: nos países onde estes atentados ocorrem, a difusão do rosto e nome dos autores pode corresponder ao seu desejo de “glorificação” do crime, tido por martírio guerreiro. O Le Monde argumenta, por exemplo, com a necessidade de “evitar eventuais efeitos de glorificação póstuma” e o psicanalista francês Fehti Benslama disse a este propósito, à AFP, que “quem comete tais atentados quer ser conhecido e reconhecido publicamente”. Por isso, evitar esse “conhecimento” é também evitar o “reconhecimento”, ou seja, a satisfação dos seus pares pelo crime cometido, que será também um incentivo a replicá-lo. É uma discussão que ainda está no início. Estaremos a ajudar a criar assassinos? A resposta obriga a uma reflexão ética e jornalística, que começou e segue agora o seu curso.

20.4.16

Direitos humanos 'são meio de combater terrorismo', diz Hollande

In "Diário Digital"

O Presidente francês considerou hoje no decurso de uma visita oficial ao Egito, ao lado do seu homólogo e anfitrião Abdel Fattah al-Sissi, que os direitos humanos "são também um meio de lutar contra o terrorismo".
Diversas ONG têm acusado o líder egípcio, no poder desde julho de 2013 na sequência de um golpe militar, de dirigir uma sangrenta repressão no país.

Combater o terrorismo "supõe firmeza mas também um Estado, e um estado de direito, é esse o sentido evocado pela França quando se pronuncia sobre direitos humanos. Os direitos humanos (...) são também uma forma de lutar contra o terrorismo", declarou Hollande perante o general Al-Sissi, manifestamente incomodado pelas questões dos jornalistas sobre este tema.

"Abordámos com o Presidente Sissi os direitos humanos incluindo os mais sensíveis", como o caso do francês Eric Lang e do italiano Giulio Regeni, prosseguiu Hollande, que evocou a necessidade de "liberdade de imprensa e a liberdade de expressão".

Eric Lang, um francês detido no Cairo em 2013 pela polícia, foi espancado até morte na sua cela "por outros detidos", segundo o procurador-geral do Cairo.

Guilio Regeni, um estudante italiano envolvido numa investigação sobre o movimento operário no Egito, foi raptado no centro da capital egípcia em 25 de janeiro e encontrado nove dias mais tarde numa vala, com sinais de tortura por todo o corpo.

Os media italianos e responsáveis diplomáticos asseguram que foi morto por membros dos serviços de segurança, o que tem sido negado com veemência pelo Egito. Roma convocou o seu embaixador no Cairo em protesto contra a falta de transparência na investigação.

A deslocação de Hollande ao Cairo, na sequência de uma deslocação ao Líbano, também inclui uma componente económica, com o reforço das relações bilaterais.

Em outubro de 2015, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, concluiu no Cairo a venda de dois navios de guerra Mistral, negócio que tinha sido anteriormente anulado com a Rússia devido à crise ucraniana.
Hollande tinha já anunciado a 23 de setembro um acordo com o seu homólogo egípcio sobre a venda de material militar num valor de 950 milhões de euros.

O golpe de julho de 2013 liderado por Al-Sissi afastou do poder o antigo presidente Mohamed Morsi, ligado à confraria islamita "Irmandade Muçulmana" e eleito chefe de Estado em junho de 2012 nas primeiras eleições presidenciais democráticas da história do país.

Após o golpe de Estado, as novas autoridades egípcias desencadearam uma intensa repressão sobre os simpatizantes, membros e dirigentes da Irmandade, declarada "grupo terrorista" em dezembro de 2013.

19.1.16

Terrorismo e refugiados na agenda dos líderes mundiais em Davos

Joana Petiz, in Diário de Notícias

Fórum Económico Mundial começa na quarta, na estância de luxo suíça. Os desafios de segurança estarão em primeiro plano.

Não podiam faltar a queda do preço do petróleo, o arrefecimento da China e o tímido crescimento médio de 4% esperado para este ano na reunião anual de Davos. Mas desta vez os 40 líderes mundiais e os bilionários que vão juntar-se na estância de esqui suíça entre quarta-feira e sábado vão ter pratos mais exóticos à mesa. Com a crise dos refugiados e o terrorismo em destaque. Por um lado, o problema humano que está a mudar a Europa; por outro, a grande ameaça que o mundo enfrenta e que tem estado cada vez mais perto da porta dos europeus.

Como podem as sociedades preparar-se para as rápidas e radicais mudanças que estamos a viver e que exigem um reforço sério na segurança? De que forma as novas tecnologias dificultam o combate ao terrorismo? Que intervenção deve ser feita para suavizar os desequilíbrios entre economias estagnadas e países prósperos para evitar a radicalização, os conflitos - e as suas principais vítimas, os refugiados? São estas e outras questões de segurança mundial que serão levadas a discussão este ano, no Fórum Económico Mundial, que contará com a presença do ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso.

O equilíbrio entre o combate sério ao terrorismo, cruzado com a melhor forma de lidar com a crise dos refugiados, será o tema de um debate que juntará governantes do Iraque, da Tunísia, do Mali, do Afeganistão, do Líbano e do Paquistão e ainda Federica Mogherini (comissária europeia para os Negócios Estrangeiros e Políticas de Segurança) e a rainha Rania da Jordânia.
5 curiosidades sobre Davos

Com o ataque ao Charlie Hebdo, em janeiro do ano passado, e os atentados que se seguiram em cidades europeias - só em Paris foram quatro num ano, morreram mais de 150 pessoas - ou tendo como alvo cidadãos europeus, a Europa foi forçada a encarar as questões de segurança como nunca até agora. Desde então, líderes como François Hollande e Angela Merkel declararam guerra ao Estado Islâmico, fizeram do terrorismo prioridade absoluta, mas não conseguiram controlar o crescimento de movimentos extremistas pela Europa. Nem evitar que a entrada dos milhares de refugiados que aqui chegaram, fugidos da guerra na Síria e dos países onde os jihadistas ganham força, fosse vista como uma ameaça. Procurar novas formas de lidar com uma realidade que transformou a forma de viver europeia é por isso também um objetivo de Davos.

No ano passado, os custos de segurança para o fórum ultrapassaram sete milhões de euros, tendo sido destacados cinco mil soldados para patrulhar a estância de luxo. Pela 46.ª edição passarão 2500 empresários e gestores de topo (incluindo Pedro Soares dos Santos e Henrique Soares dos Santos, da Jerónimo Martins, e Ângelo Paupério, da Sonae) e 300 figuras públicas.

24.11.15

Ahmed, o aluno que fez um relógio e foi acusado de ter uma bomba, pede indemnização de 15 milhões

in Diário de Notícias

A imagem de Ahmed a ser detido foi partilhada nas redes sociais

Advogados que representam a família alegam que o adolescente foi "detido ilegalmente e interrogado sem a presença dos pais"

A família do estudante muçulmano detido no Texas (EUA) por levar para uma aula um relógio que foi confundido com uma bomba artesanal pediu, na segunda-feira, uma indemnização de 15 milhões de dólares à câmara e à escola.

Os advogados que representam a família de Ahmed Mohamed, de 14 anos, alegaram que o adolescente foi "injustamente preso, detido ilegalmente e interrogado sem a presença dos seus pais".

Pelos danos causados pediram 10 milhões de dólares à câmara municipal de Irving e outros cinco milhões ao Distrito Escolar, além de um pedido de desculpa público, dando-lhes um prazo de 60 dias para efetivarem o pagamento da compensação e assim evitar uma ação judicial.
Ahmed fez um relógio para levar para a escola e foi preso por ter uma 'bomba'

Mohamed foi detido em setembro depois de um professor ter confundido o relógio que o aluno fez em casa com uma bomba artesanal, um controverso episódio que muitos associaram à origem muçulmana do jovem.

Após ter sido colocado em liberdade, Mohamed recebeu o apoio do próprio Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que o convidou a visitar a Casa Branca para a Noite de Astronomia.

Muitas universidades norte-americanas abriram-lhe então as suas portas, mas a família do jovem aceitou uma oferta da Fundação Qatar para se mudar para Doha e prosseguir ali os seus estudos.
Obama recebeu Ahmed, que fez um relógio e foi acusado de ter uma bomba

"Compreensivelmente, o senhor Mohamed está irritado pelo tratamento que o seu filho recebeu e com a motivação discriminatória da sua detenção", escreveram os advogados nas cartas enviadas à câmara e ao Distrito Escolar.

A fotografia do rapaz de 14 anos algemado, usando uma t-shirt da NASA, foi partilhada milhares de vezes na Internet em apenas algumas horas.

23.11.15

Serão as ruas desertas de Bruxelas uma imagem da Europa do futuro?

Clara Viana, in Público on-line

Paris pode ser a imagem da raiva e Bruxelas a do medo, mas também poderão vir a ser um retrato do passado e do futuro europeu, O futuro de ruas vazias que o Daesh deseja para o mundo. As reacções ao terror vistas por investigadores e não só.

Será Paris, com pessoas na rua e nas esplanadas, uma imagem do passado? E Bruxelas, quase deserta este fim-de-semana, uma imagem do futuro? A interrogação é lançada pelo sociólogo Filipe Carreira da Silva, quando questionado pelo PÚBLICO sobre o que justificará a diferença de reacção nas duas capitais face à ameaça terrorista.

Uma semana após os atentados que fizeram 130 mortos, muitos parisienses saíram à rua, como sempre fizeram, mas desta vez com um propósito claro: “Se beber uns copos, ir ao concerto ou ao jogo se vai tornar um combate, podem tremer, terroristas, porque nós estamos bem treinados!”, proclamava-se num cartaz afixado na capital francesa.

Tem sido assim desde o dia seguinte aos atentados, embora com menos gente do que é habitual nas ruas de Paris. Para Carreira da Silva, que é investigador do Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, e foi professor na Universidade de Cambridge, “à primeira vista, a diferença entre o que se passa nas duas capitais será o facto de em Paris já ter acontecido e em Bruxelas ser ainda ‘só’ um alerta".

Mas há também esse outro cenário mais arrepiante que o investigador avança, a de Paris como a imagem de uma Europa do passado e a de Bruxelas como o retrato do futuro “desejado pelo Daesh [o nome em árabe do autoproclamado Estado Islâmico] para a Europa e o Ocidente”. “Será o nosso futuro com ruas vazias de pessoas e o exército nas ruas como neste fim-de-semana em Bruxelas?”, questiona, adiantando que para que tal “não se torne verdade não basta desejar: "Há que agir concertadamente, em nome dos valores que nos unem, de modo a garantir a paz na Europa e no próprio Médio Oriente."

O eurodeputado Paulo Rangel, que na quinta-feira chegou da capital belga, lembra que, ao contrário de Bruxelas, “Paris nunca esteve em estado de sítio”. “Há tanques nas ruas e recomendações expressas do Governo para que não se use os transportes e outros espaços públicos e as pessoas estão a seguir essas directivas. Por outro lado, as escolas e o metro vão continuar fechados e basta isso para mudar o quotidiano de toda a gente”, diz.

Ao contrário do que sucedeu em Paris, onde os principais monumentos e espaços públicos ficaram com segurança reforçada, em Bruxelas todas as forças de segurança estão envolvidas “numa caça ao homem”, em rusgas sucessivas, que as impede de assegurar a vigilância dos espaços mais movimentados, o que aumenta o sentimento de insegurança entre os habitantes, adianta Rangel, acrescentando que se vive ali com a percepção de que, em qualquer altura, poderá acontecer um “acto violento” – já não talvez o atentado para o qual as autoridades alertaram, mas uma acção levada a cabo pelos suspeitos que continuam a ser procurados e que sentem “não ter já nada a perder”. “As pessoas e as autoridades têm essa percepção”, diz.

Por toda a Europa, as medidas de segurança têm vindo a ser reforçadas, incluindo em Portugal. Rangel conta a propósito que, na quinta-feira, foi-lhe pedido o passaporte quando desembarcou em Lisboa vindo de Bruxelas. Foi a primeira vez que tal lhe sucedeu desde que Portugal aderiu ao espaço Schengen, em 1991, mas agora os voos a partir da capital da União Europeia passaram a estar sob suspeita.

Medo versus raiva
Luísa Lima, professora de Psicologia Social no ISCTE, adianta que “têm sido estudadas dois tipos de reacção emocional a situações de terrorismo: uma centrada no medo, outra na raiva”. “O medo é um sentimento inibidor, de retracção e que aumenta a percepção de ameaça. A raiva, pelo contrário, tem um perfil mais activo, motivando à acção e que diminui a percepção de risco”, explica.

Bruxelas poderá ser assim a imagem do medo e Paris a da raiva. “O que diferencia o espoletar de uma das duas emoções é a percepção de controlo. Quando acreditamos que se pode fazer alguma coisa para prevenir novos atentados, tendemos a sentir menos medo (e mais raiva)”, especifica a investigadora, para acrescentar que, “neste caso, falamos de um tipo de controlo que não é individual, mas prende-se com a confiança nas autoridades, na tecnologia e nas instituições do próprio país”.

Este controlo “prende-se também com o orgulho nacional e a identificação com os valores associados à pátria”, sendo que, nos inquéritos internacionais, “os franceses aparecem como um dos povos em que o orgulho nacional é maior”, lembra Luísa Lima. “Esta forte identidade nacional é outra das bases de combate ao medo”, frisa.

A Bélgica está, neste aspecto, no pólo oposto, constata a socióloga Margarida Marques, da Universidade Nova de Lisboa: “É um país dividido em duas comunidades (francófona e flamenga), que vivem de costas voltas uma para a outra e com frequentes ameaças de cisão”. Por outro lado, acrescenta, “Paris sempre foi uma cidade muito mais cosmopolita do que Bruxelas e com uma muito maior tradição de ocupação do espaço público”. A acrescentar a tudo isto, refere ainda Margarida Marques, e por ser uma cidade muito mais pequena do que Paris, a percentagem da população muçulmana em Bruxelas faz-se sentir com mais acuidade, o que também poderá explicar as ruas desertas da capital belga: “Há uma maior retracção da população muçulmana nestes momentos, porque tem medo não só de ser também atingida por actos terroristas, como de ser atacada devido à facilidade com que, nestas situações, se cola tudo o que é muçulmano ao terrorismo”.

Já para o ex-eurodeputado e historiador Rui Tavares, as diferenças de base entre as duas cidades, onde já viveu, não são assim tão visíveis. “São duas cidades europeias, que não se distinguem muito uma da outra, embora Paris seja muito maior e com uma vivência mais acentuada, enquanto Bruxelas é mais contida e compartimentada”.

Tavares considera assim também que as imagens diferentes que chegam de um lado e de outro têm a ver sobretudo com o facto de em Paris a ameaça já ter sido concretizada, e por isso a saída à rua reveste a forma de um “desafio colectivo”, enquanto em Bruxelas ainda se está na fase do “pré-acto, estando as pessoas a cooperar com as autoridades”.

Voltando a uma abordagem mais psicológica, poder-se-á afinal dizer o que já se sabe a propósito de outras situações de trauma: "não parar" é, também, uma forma de fazer o luto por uma enorme tragédia que, de facto, já aconteceu em Paris e que, para já, é "apenas" uma ameaça em Bruxelas.

9.4.15

Menos voluntários devido barbárie de grupos como Estado Islâmico, diz presidente da AMI

in o Observador

O presidente da AMI, Fernando Nobre, admitiu que "os atos de barbaridade" praticados por grupos como o Estado Islâmico estão a condicionar os voluntários que desejam trabalhar em missões humanitárias

O responsável da Assistência Médica Internacional (AMI) falava à Lusa a propósito do anúncio quarta-feira da Organização Mundial da Saúde (OMS) da criação de um novo organismo que irá integrar equipas médicas devidamente qualificadas em todo o mundo prontas para intervir em caso de emergências graves, tais como epidemias, terremotos e tsunamis.

Em declarações à Lusa, Fernando Nobre considerou que “só há uma maneira de intervir para que as agências humanitárias possam fazer o seu trabalho de forma eficaz, coerente e com equidade junto das populações: é que seja imposto um ciclo de segurança”, o que pressupõe a “adoção de novas estratégias” para permitir que as mesmas operem em zonas de conflito.

“Hoje, para uma agência humanitária como a AMI entrar pela Síria adentro para tentar atuar em território sob controlo do (grupo) Estado Islâmico é ser puramente suicidário, já não é ser temerário”, afirmou o médico, assinalando que atualmente “a questão da segurança dos agentes humanitários está no primeiro nível das prioridades para todas as instituições”.

“Hoje, o que tolhe completamente a nossa intervenção não são as epidemias e a questão dos desastres ligados às alterações climáticas que vai acontecendo cada vez mais frequentemente e com maior violência. O que está a coartar a nossa intervenção são exatamente os conflitos ditos atípicos com entidades completamente fora do controlo”, situações que, de resto, “só podem ser ultrapassadas com o controlo destes grupos”, acrescentou.

De acordo com o presidente da AMI, “os movimentos humanitários estão totalmente impedidos de intervir porque, ao interceder em países como o Quénia, Somália, no Mali, onde os próprios grupos humanitários são alvos preferenciais, já não é ser temerário, é ser puramente louco”.

“Essas instituições são vistas como parte integrante de um mundo que esses movimentos de pura barbaridade e sem o mínimo respeito pela vida humana, não aceitam”, por isso, “é suicidário tentar atuar lá, porque vão ser imediatamente mortos a tiro ou degolados”, disse.

“É preciso que nestas situações a comunidade internacional, sob mandato das Nações Unidas, tenha coragem, vontade, determinação e ousadia para pôr termo a estas situações, para que não aconteça o mesmo que se passou há 20 anos no Ruanda”, onde houve um genocídio, em 1994, alertou.

Questionado pela Lusa se a atuação de grupos armados de cariz religioso, e não só, como o Estado Islâmico, no Médio, Oriente, bem como o Boko Haram e al-Shebab, em África, está a retrair os voluntários para as agências humanitárias, Fernando Nobre respondeu: “absolutamente, sim”.

“Está a retrair, porque somos temerários. Ninguém avança para uma intervenção se sabe que tem 100% de hipóteses de ser degolado, só sendo mesmo louco. Eles (grupos armados) veem-nos como parte de uma sociedade que as odeiam, as hostilizam e que as querem destruir. E nós somos apenas uma parte desta sociedade que eles não toleram”, frisou.

De acordo com o assistente humanitário, atualmente há zonas em que as intervenções diretas das agências são “complementadas vedadas”, por isso, a sua intervenção deve ser feita clandestinamente, por intermédio de instituições locais, como, de resto, já aconteceu no passado.

“Eu sou daqueles que na minha vida humanitária já entrou clandestinamente para desenvolver missões humanitárias — no Chade, em 1981, em Beirute (1982), no fim da guerra do Irão-Iraque (1981), mas nós não éramos procurados para sermos assassinados. Hoje, somos alvo preferenciais para sermos capturados e executados, e ai há que ter a máxima prudência, evidentemente”, concluiu Fernando Nobre.

20.1.15

O valor da vida humana

Por Fernando Nobre, in iOnline

Poderia continuar com estas estatísticas macabras e estes números enfadonhos, mas creio que a amostra revela bem à nossa sociedade como é relativo o valor da vida humana

Escrever sobre o valor da vida humana é mergulhar num abismo de absoluta relatividade. Na verdade umas vidas "valem" muito enquanto outras não valem absolutamente nada, como temos observado ad nauseum. Senão vejamos alguns factos recentes e indesmentíveis:

1. Alguém ouviu sequer falar do mais brutal genocídio ocorrido desde 1997 até hoje no Zaire/RDC, onde na floresta equatorial e na região de Goma foram mortos entre uma indiferença total entre 8 e 10 milhões de seres humanos? Mais, alguém sabe que, por tentar investigar essa tremenda tragédia oculta, a senhora Mary Robinson não foi eleita para um segundo mandato como alta comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas?

2. Sabemos em detalhe quantos militares ocidentais morreram no Afeganistão e no Iraque. Alguém sabe quantas centenas de milhares de afegãos, iraquianos e sírios já morreram por causa das acções e bombas desvairadas em nome "da democracia do desenvolvimento e da luta antiterrorista"?

3. Sabemos exactamente quantos cidadãos e soldados israelitas já morreram na tragédia da Palestina desde 1947. Alguém sabe quantas dezenas de milhares de vítimas mortais palestinianas houve e quantas centenas de milhares vivem em campos, há várias gerações, há mais de 60 anos?

4. Sabemos quantas vítimas mortais houve recentemente nos atentados terroristas e confrontos que ocorreram em Paris e em Verviers (Bélgica). Alguém sabe, e se comoveu, com as vítimas do movimento terrorista Boko Haram na Nigéria? E as chacinas na República Centro-Africana?

5. Alguém sabe quantas dezenas de milhares de imigrantes, fugindo à miséria e aos conflitos, morreram nos últimos cinco anos nas travessias do Sara e do Mediterrâneo?

Poderia continuar com estas estatísticas macabras e estes números enfadonhos, mas creio que esta amostra revela bem à nossa sociedade como relativo o valor da vida humana, pese embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos ter sido escrita há mais de 65 anos, e ratificada por todos os governos.

A verdade nua e crua é que nem todos os "seres humanos" têm a mesma importância, o mesmo valor: uns poucos são "seres humanos", inúmeros outros são baratas, piolhos e anónimos que não contam.

O que é particularmente confrangedor e aterrador para mim, médico que há mais de 35 anos percorre o mundo em acções humanitárias concretas, é que estamos em pleno século xxi, já talvez inexoravelmente a caminho da terceira guerra mundial, por indiferença, incúria, falta de sensibilidade, incompetência ou pura malvadez e perversão de interesses planeados.

As lideranças globais financeiras, económicas e políticas, maniqueístas e psiquiatricamente gravemente enfermas de ganância, indiferença e intolerância, já soltaram os quatro cavaleiros do apocalipse sobre a humanidade e, ipso facto , sobre algo que deveria ser absoluta e igualmente sagrado entre todos nós: a vida!

Até agora calcula-se, por baixo, que os 100 maiores genocídios perpetrados na história da humanidade desde há uns 2500 anos já provocaram mais de 800 milhões de mortos, tendo o recorde absoluto sido atingido na Segunda Guerra Mundial, com cerca de 60 milhões de mortos. E neste resumo de genocídios não contam os que provocaram menos de 150 mil mortos!!

Para mim, ser humano, humanista, viajante, pai, médico e professor de Medicina Humanitária, o que me deixa particularmente estupefacto e angustiado é que a vida não tem, repito, não tem o mesmo valor sagrado e o mesmo significado que deveria ter derivado da sua intrínseca sacralidade consoante o sítio onde nascemos. E isso é inaceitável.

Ou a sociedade civil global e solidária se levanta e grita bem alto que BASTA, que somos todos irmãos, ou já não haverá muralha que impeça que os doentes que nos "lideram" globalmente ponham em marcha as suas máquinas trituradoras infernais e maléficas, que cuspirão os descartáveis, os outros, sempre vilões, as baratas, os dejectos para as fossas comuns e para o esquecimento, enquanto erguerão mausoléus, arcos do triunfo e panteões exclusivamente para os seus, sempre heróis, únicas vidas que a seus olhos têm valor... se tiverem! Não, para já as vidas não têm manifestamente o mesmo valor!

No entanto, eu, cidadão e médico, sei que todas, todas, as vidas são únicas e insubstituíveis!

Nós, cidadãos, todos nós, talvez ainda possamos reagir a tempo, impondo a todos:

- Sacralidade e igualdade do valor da vida para todos!

- Respeito e conhecimento mútuo entre todas as raças, todas as nações, todos os credos. A haver Deus, só há um e é para todos nós: judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, hinduístas, taoistas, animistas, ateus...

- Sensibilidade, tolerância e fim da indiferença como doença altamente mortífera que é.

Se não for por humanismo, entendam-no pelo menos, em nome da inteligência e da sobrevivência da nossa espécie!

16.1.15

O rastro de destruição deixado pelo Boko Haram

in TVI24

Foram lançadas imagens de satélite que mostram a destruição da cidade piscatória de Baga, na Nigéria

Foram reveladas as imagens de satélite das cidades nigerianas que estão a ser atacadas por Boko Haram, desde 3 de janeiro. As manchas gráficas mostram a destruição e sugerem um elevado número de mortos.

Ninguém ficou para trás para contar os corpos. Estávamos a tentar fugir dos combatentes do Boko Haram que ocuparam a área , disse um residente, à ONG.

A ONG Human Right Wacht divulgou uma imagem por satélite onde mostra o rasto de destruição, depois das milícias islamitas terem controlado a região.
Segundo a Amnistia, as imagens mostram cerca de 3.700 estruturas danificadas ou destruídas na região durante este mês. Os relatórios apontaram para dois mil mortos, mas o governo da Nigéria já contestou os resultados e disse que o número de mortos foi de 150.
Uma onda de violência ligada ao grupo Boko Haram tem atingido a Nigéria. Na passada semana houve vários ataques, incluindo ataques de crianças suicidas.
No próximo mês, a Nigéria vai realizar eleições, mas a ONG diz que não sabe se o direito a voto vai chegar a todas as regiões do país.
Varrido do mapa
A Amnistia Internacional disse que o ataque a Baga e Doron Baga, no extremo nordeste da Nigéria, foi o maior que Boko Haram fez. Cerca de 620 estruturas foram destruídas em Baga e mais de 3.100 em Doron Baga, como mostram as imagens de satélite do antes e depois tiradas no dia 2 e 7 de janeiro.
A vegetação saudável é mostrada pela cor vermelha. Muitos barcos de pesca de madeira que estavam na costa no dia 2 já não são visíveis no dia 7.
Estas imagens detalhadas mostram uma devastação com proporções catastróficas nas duas cidades. Uma das quais foi quase varrida do mapa em apenas quatro dias , disse Daniel Eyre, pesquisadora da Amnistia ao jornal BBC.
A imagem representa um ataque pensado contra civis e onde escolas, casas e hospitais estão em ruínas , adiantou.

Na semana passada, Musa Alhaji Bukar, um alto funcionário do governo da região, disse que a cidade de Baga tinha cerca de 10 mil moradores e que agora quase não há ninguém.
A cidade ardeu até ao fim , afirmou ainda um morador ao correspondente da BBC, Will Ross.
Segundo as autoridades, os militares atacaram a cidade de Baga no dia 7 de janeiro, quatro dias depois das tropas terem abandonado a base militar nigeriana. Adotei Akwei, da Amnistia, disse à BBC que embora não se saiba ainda os resultados do ataque, o governo nigeriano manipulou o número de mortos .
Na timeline em baixo, pode-se ver os acontecimentos dos últimos dias em Baga e Dorom Baga.

14.1.15

Pedro Mexia: "Não há nenhuma razão para crer que as coisas vão sempre melhorar"

por Pedro Rios (texto) e Joana Bourgard (vídeo), in RR

É poeta, crítico literário e comentador político. Desconfia das soluções radicais ou populistas que despontam na Europa. Mas relativiza: "O poder tende a dissolver o radicalismo". Sobre os atentados de Paris, diz que o problema é sério, mas a resposta não pode passar por "identificar o islão com o terrorismo".

Não é preciso ser "pessimista crónico", como Pedro Mexia se autoclassifica, para estar preocupado. Os ataques em Paris lembram que há um problema ligado ao islamismo radical a que a Europa tem de responder, avisa. "Só não vê quem não quer, só menoriza quem quer."

Perante uma Europa em que despontam forças políticas distantes do tradicional centro que construiu o "consenso europeu", o poeta, crítico literário e comentário lembra que os progressos associados ao Estado Social "foram conquistados com contributos vários e pressões várias, mas pelos partidos do 'centrão'".

Diz-se um pessimista crónico. Nessa pele, como vê os atentados de Paris?
Infelizmente, não é preciso ser pessimista para perceber o que se passou com este atentado/execução. Há talvez 25 anos, talvez desde o caso [Salman] Rushdie, que temos visto suceder uma série de casos por causa de artigos, filmes, textos, opiniões políticas ou outras formas de exercer a liberdade de expressão – ou simplesmente de andar em transportes públicos, como foi o caso [dos atentados] de Madrid e Londres. São atentados ligados ao islamismo radical, só não vê quem não quer, só menoriza quem quer.

Infelizmente, tendemos a fugir da identificação do problema porque existem forças políticas na Europa que a esse problema dão uma resposta que nos desagrada, como os partidos fascistas ou fascizantes, a Frente Nacional, etc.. É evidente que essa não é a resposta, a resposta não é identificar o islão com terrorismo, fechar as portas, estigmatizar os emigrantes. Mas o facto de essa não ser a resposta não significa que não haja uma pergunta séria para fazer.

A liberdade é precisamente a possibilidade que se façam, digam, escrevam e aconteçam coisas que cada um de nós, pessoalmente, não aprova. Eu não gosto particularmente do "Charlie Hebdo", não é um jornal em que me reconheça…

E não era um jornal com grandes vendas.
Sou totalmente insuspeito para o dizer porque sou católico e não tenho nenhuma simpatia por um discurso agressivamente anti-religioso. A liberdade de expressão também nasceu com a liberdade religiosa, com a liberdade de criticar as religiões e de não ter religião nenhuma. Não gosto de muitas das coisas que se escrevem sobre a Igreja Católica e sobre o Papa (não posso dizer que me choquem, propriamente), às vezes acho de mau gosto. Mas continuo a minha vida como toda a gente.

2015 pode ser o ano dos partidos de fora do centro? Temos a Frente Nacional em França, o Podemos em Espanha, Marinho Pinto em Portugal e o Syriza, na Grécia, que lidera as sondagens das eleições de dia 25.
Um ponto prévio bastante importante: os gregos têm o direito de escolher o governo que querem sem nenhuma espécie de intervenção, de ameaça, de sugestão. Os gregos não perderam a sua soberania política e eleitoral. Toda a gente sabe a política económica e financeira que um país segue estando integrado num espaço comum como a União Europeia, mas não é preciso estar a lembrá-lo como se fosse uma tutela, uma ameaça ou um acto de paternalismo.

E Bruxelas tem feito essa ameaça?
Bastante, bastante. Não me parece uma boa maneira de os órgãos da União Europeia procederem com os países membros. Os gregos têm de votar de acordo com aquilo que entenderem.

Segundo ponto: parece-me que o Syriza, à medida que tem uma perspectiva mais realista de chegar ao poder, tem mudado algumas coisas, às vezes discretamente, no seu discurso. Aquilo que aconteceu com governos socialistas "mainstream" – uma viragem ao centro quando chegaram ao poder ou quando se aproximaram do poder – também pode acontecer.

Há quem ache que uma política diferente daquela que tem vindo a ser seguida, uma política fortemente antiausteridade, pode ser a salvação e veremos; outros dirão que pode ser uma catástrofe e veremos; e outros ainda dizem que pode ser uma catástrofe e ainda bem, que é aquela tese que havia nos anos 70 em Portugal quando Kissinger achava que, a seguir à revolução, o poder devia cair na mão dos comunistas para os portugueses verem como é.

A austeridade, na maioria dos países, não tem tido resultados extraordinários, mas o contrário disto tudo teria resultado? Não sabemos porque ninguém tentou. Mesmo quem foi eleito com um programa vagamente antiausteridade recuou quando viu as contas.

A Europa poderia ganhar com um sobressalto como a vitória do Syriza?
Não acredito que a prática antiausteridade também tenha muitas pernas para andar. O pacote de medidas estatais e de apoios estatais que o Syriza propõe é gigantesco, não consigo perceber como é que um país que é a "lanterna vermelha" da Europa, que está em total colapso e dependente de ajuda externa, vai aplicar todos aqueles planos de apoio social, de aumento de impostos às empresas sem que as empresas que restam fujam. Se estivéssemos a falar num laboratório seria interessante tentar, mas estamos a falar de um país que já está em muito mau estado.

Enquanto não for testada, a antiausteridade vai continuar a parecer o remédio ideal. Mas se testarmos e não for o remédio o desespero ainda será maior: isto é péssimo e não há alternativa. Eu não sei se não há alternativa, a economia para mim neste momento está na mesma categoria do vudu em relação ao que sabe, ao que prevê e ao que consegue.

Há um sentimento anti-regime que se ouve nas ruas e pulula nas redes sociais e nos comentários dos "sites" noticiosos. Como é que o conservador Pedro Mexia vê a ideia de que isto precisa de uma vassourada?
Há movimentos de natureza muito diferente, mas todos os males que nos tenham trazido ou possam trazer as políticas conservadoras, liberais, social-democratas ou socialistas são sempre melhores do os comunismos e os fascismos. Não tenho nenhuma simpatia pelo discurso anticentrista e radical.

Mas agora há movimentos quase pós-ideológicos, que cruzam elementos de esquerda e de direita.
Existe uma certa amálgama política que me parece muito perigosa. O próprio Podemos, que poderia ser definido como um partido de extrema-esquerda, recusa usar as palavras "esquerda" e "direita" porque existe um clima de insatisfação que ultrapassa a esquerda e a direita. Só que tudo o que ultrapassa a distinção entre "esquerda" e "direita" é um puro descontentamento porque ou se é estatista ou não, ou se é pela liberalização dos costumes ou contra, etc., etc.. Não se pode fazer uma amálgama e dizer: eu sou contra o que está mal. Politicamente isso é zero. Pode valer pelo carisma de um político, a voz grossa, ou o que for.

O caso Marinho e Pinto é um bocadinho isso. É uma figura um pouco atípica: é um homem de esquerda, mas tem algumas posições que só a direita radical é que tem, nomeadamente sobre as questões ligadas à homossexualidade; parece um populista, mas nas últimas semanas tem sido um defensor de José Sócrates, afastando-se do discurso populista e justicialista de alguma imprensa. É um caso um bocadinho atípico, mas vai dar ao mesmo porque o que é aquela plataforma política a não ser um grito de revolta?

Esse tipo de partidos fazem perguntas pertinentes e exprimem preocupações reais da sociedade, mas não têm uma estrutura ideológica consequente. Evidentemente que é fácil estar indignado com a política italiana – e se as pessoas continuam a aceitar a existência política de uma figura como Berlusconi por que não aceitar um comediante como Beppe Grillo? Mas [o movimento 5 Estrelas, de Grillo] não é um partido sério, na maneira como se comporta no Parlamento, como usa piadas de internet, sexistas às vezes, no Parlamento. Não sei se é nesse tipo de políticos em que se deve pôr a esperança.

Forças políticas como essa vão crescer?
Nas democracias há uma coisa fatal para os partidos radicais: chegarem ao poder ou perto do poder. Tem havido algumas reportagens sobre câmaras ganhas em França pela Frente Nacional. Com uma ou duas excepções, os políticos da Frente Nacional não sabem muito bem o que fazer quando chegam ao poder. Têm o "chip" da contestação tão enraizado que é um bocadinho como chegar à idade adulta: quando a culpa já não é dos outros o que é que se faz? O poder tende a dissolver o radicalismo.

Em 2014 a troika saiu do país. Portugal parece-se com aquele que imaginava em 2011, quando começou o programa?
Não esperava muito da actual maioria quando foi eleita, mas esperava que a reforma do Estado, que é necessária, fosse feita de uma forma mais radical. Dizia-se muito que havia fundações com apoios estatais a mais – e há – e fez-se uma lista das fundações que não faziam sentido. A conclusão: disse-se às fundações que se deviam extinguir. Claro que 90 e tal por cento não acataram essa recomendação.

Por outro lado, foi demasiado radical noutras coisas. Eu compreendo perfeitamente os sacrifícios, compreendo até o brutal aumento de impostos. Tenho muita dificuldade com as pensões, seja qual for o valor ou percentagem: é muito diferente pedir sacrifícios a pessoas na vida activa e a reformados. Percebo mal essa insensibilidade. Por outro lado, também percebo mal que o Estado não afaste do sector público várias coisas absurdas. Não sou contra a existência de canais públicos de televisão, mas acho absurdo – já não vou falar da Liga dos Campeões, isso é grotesco – que os contribuintes paguem concursos, novelas, futebol.

Também acho que entregar a rede energética não a privados, mas a estados estrangeiros é uma coisa bastante complicada. Não percebo que a energia esteja nas mãos de um Estado estrangeiro e que esse Estado estrangeiro seja a China – não percebo, não consigo perceber.

O que me leva a perguntar: o que é hoje a pátria, o que é hoje isso de ser português? Sentimos mais a noção de pátria no discurso do PCP do que no de outros partidos.
O capital não tem pátria. A partir do momento em que o capitalismo triunfou no Ocidente, em que não tem fronteiras que correspondam às fronteiras dos países e em que estamos no mercado aberto, a noção de pátria fica claramente afectada.

Quando apareceu a senhora Thatcher, alguns filósofos conservadores, nomeadamente o Roger Scruton, avisaram: atenção, a ideia que o mercado regula tudo é destruidora para um conservador porque o mercado é destrutivo da ideia de família, de pátria, de religião.

Não acredito em todas as experiências do capitalismo, sobretudo do capitalismo financeiro, mas enquanto sistema de liberdade económica é preferível. Mas isso e a integração europeia provocam uma grande erosão em valores [como a noção de pátria]... Tenho uma visão bastante tranquila da noção de pátria. Não sou daquelas pessoas que professam nojo pelo seu próprio país, mas também não sou um patriota ardente. Conheço muitas poucas pessoas que se considerem europeias antes de serem portuguesas, dinamarquesas ou espanholas.

A noção de futuro colectivo também está em crise? Temos uma geração de jovens que espera viver pior do que os pais, o que já não acontecia há algum tempo.
Não há nenhuma razão para crer que as coisas vão sempre melhorar. Os retrocessos, no caso do capitalismo, têm sido todos transitórios. O capitalismo sobreviveu a 29, ao "crash" dos anos 80 e vamos ver como sobrevive, ou não, à actual crise. Por outro lado, isso também nos faz valorizar aquilo que foi conseguido nestas décadas. Houve progressos enormes nos vários países, em Portugal também. E os progressos em termos daquilo a que chamamos de Estado Social foram conquistados com contributos vários e pressões várias, mas pelos partidos do "centrão" – pelos partidos socialistas e democratas-cristãos e conservadores.

Sabemos como o Estado Providência se baseou numa pirâmide demográfica, numa taxa de natalidade e numa reposição geracional que não são as que temos. A ideia desta máquina é boa, mas já não tem pilhas. Então, temos que mudar as pilhas. As pessoas dizem muito "vejam onde nos trouxeram os partidos moderados". Mas depois dizem "não nos tirem todas as regalias que os partidos moderados conquistaram".

13.1.15

Reclusos portugueses sem indícios de influências extremistas

por Valentina Marcelina, in Diário de Notícias

Só há dois detidos por crimes de terrorismo nas prisões portuguesas, controlados ao minuto e sem radicalizar ninguém.

O etarra condenado Andoni Fernández e o suspeito jihadista Guima Her Calunga são os únicos reclusos potenciais recrutadores para o terrorismo nas prisões portuguesas. E estes, garantiu ao DN fonte da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), "estão muito bem controlados e não mostram qualquer indício de quererem radicalizar alguém".

Fernández, condenado em 2011 a 12 anos de prisão, e Calunga, em prisão preventiva indiciado por adesão e apoio a atividade terrorista, depois de ter sido detido no Aeroporto de Lisboa com uma faca junto a um avião na pista de aterragem, estão na prisão de alta segurança de Monsanto, em Lisboa.

12.1.15

Ataque Terrorista. Adriano Moreira ajuda-nos a pensar sobre o que aconteceu

Por Isabel Tavares, in iOnline

A Europa tem vários problemas, diz o professor de Direito. Um deles é dizer-se liberal e inclusiva quando, na prática, o que faz é retirar dos seus cidadãos o mais que pode. Falha nos afectos e na protecção à imigração. Portugal sofre a dobrar e nem tem voto na matéria. Que aplica com vigor

Adriano Moreira coordenou o primeiro livro sobre terrorismo publicado em Portugal ["Terrorismo"], editado pela Almedina, em 2004. Em entrevista ao i dá--nos a sua visão do ataque à redacção do "Charlie Hebdo" que, na quarta-feira passada, chocou o mundo. Fala num atentado muito mais profundo do que à liberdade de imprensa, mas que falhou num dos seus intuitos, o de abalar a confiança da sociedade civil nos seus governos, como mostrou a manifestação de ontem, em Paris. E lembra que repúdio implica responsabilidades e consequências.
Adriano Moreira coordenou o primeiro livro sobre terrorismo publicado em Portugal [“Terrorismo”], editado pela Almedina, em 2004. Em entrevista ao i dá--nos a sua visão do ataque à redacção do “Charlie Hebdo” que, na quarta-feira passada, chocou o mundo. Fala num atentado muito mais profundo do que à liberdade de imprensa, mas que falhou num dos seus intuitos, o de abalar a confiança da sociedade civil nos seus governos, como mostrou a manifestação de ontem, em Paris. E lembra que repúdio implica responsabilidades e consequências.

O professor é Charlie?
Fui à manifestação da Câmara Municipal de Lisboa porque me telefonaram pessoas do CDS – não sei porquê a mim, que já não vou a coisas do partido, mas a esta rapaziada nunca digo que não, quando são estudantes vou sempre, acho que é obrigação enquanto estamos vivos.

Como é que olha para este atentado?
Este não é só um atentado contra a liberdade de escrever e isso tem de ser posto em evidência. Inscreve-se na agressão contra os ocidentais e é, antes de mais, um atentado à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que eles também assinaram. A começar pelo direito à vida, que vem no artigo 3.o: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Atrás da violação desses direitos vêm as outras atrocidades.

A forma de terrorismo, o tipo de ataques, tem vindo a mudar...
Os ataques são determinados por interesses. A novidade trazida pelo terrorismo islâmico é que passou a inscrever valores religiosos no conceito estratégico de combate. Uma coisa é combater para conquistar o Porto de Lisboa ou para roubar Badajoz. Outra coisa é desatar a esmagar pessoas porque não são muçulmanos, estão a espalhar a fé que lhes deu Maomé. E quando há elementos religiosos a violência e a crueldade aumentam.

Esses valores religiosos são reais?
São reais para quem assume a violência. E não devemos confundir os muçulmanos todos com os extremistas, para quem a violência é justificada.

Há pouco falava em interesses. Os dos líderes não são necessariamente os dos liderados.
O cristianismo foi um princípio, dito por Nosso Senhor Jesus Cristo: dá a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas quem dá a liberdade religiosa são os césares do mundo... O que está a acontecer com o novo Estado Islâmico é que inscrevem a ideologia deles, até já falam em conquistar a Andaluzia, não lhes basta ter um território, a independência.

Nesta guerra, o que é que está a falhar? É desconcertante perceber que os alvos são tão frágeis, por um lado, e ver uma Europa inactiva?
A União Europeia tem um sistema de segurança com uma dotação de vários milhões de euros. O que é justo dizer é que o número de ataques terroristas que vamos conhecendo, matança de crianças nas escolas, bombas em estações de comboios, etc., são as falhas. Não conhecemos os números dos ataques evitados pelos serviços de informação e segurança. Um dos objectivos destes atentados é cortar a confiança entre a sociedade civil e os governos. Mas falhou, como se viu na manifestação em Paris.


A União Europeia convocou uma reunião de urgência para rever o Tratado de Schengen, por causa do atentado. Olha para os criminosos como franceses ou estrangeiros?
Eram descendentes árabes. E isso leva-nos a outra questão. Parece-me normal que a União Europeia queira discutir Schengen, porque há questões que devem ser avaliadas na sua eficácia. Um dos problemas é a obtenção de cidadania, não basta entregar um cartão. Nos EUA é preciso jurar fidelidade e passar por um processo rigoroso. Mas há ainda outro aspecto a ter em conta e onde a Europa tem, muitas vezes, falhado.

Qual?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi escrita por ocidentais. Vamos imaginar o número 1 do artigo 16.o: “A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião […]” Quem escreveu isto alguma vez pensou na família poligâmica? Só para dar um exemplo. Quando os povos libertados começaram a chegar, leram, assinaram, mas não estavam a dizer a mesma coisa. Ou seja, a integração das culturas diferentes faz não pela tolerância, mas pelo respeito.

É aí que a Europa tem falhado?
Sim. A tolerância não se pode impor por lei. O que temos na Europa são grupos que correspondem ao conceito de multidão e não de comunidade, que é uma sociedade ligada por afectos. A França tem ainda hoje um grande problema a este nível com o argelinos – mas é um problema que existe em diversas cidades europeias, que têm regimes de exclusão. E estes homens, o que mostraram é que não estavam integrados na cultura francesa – só não sabemos ainda se agiram isolados ou se eram um braço armado de um grupo militar. Uma coisa é a nacionalidade formal, outra a tal comunidade dos afectos. O grande exemplo disto é a América, que tem a comunidade espanhola, etc., mas todos dizem que são americanos. Não foi por acaso que o presidente Barack Obama terminou o seu último discurso a dizer “somos todos americanos” em vez do tradicional “God bless America”. Esta é uma dinâmica que a Europa precisa fazer, mas leva tempo. Tem de haver aqui uma política activa da UE.

E, no entanto, a eurodeputada Marine le Pen, da Frente Nacional, diz que se for eleita em França traz a pena de morte de volta... Como olha para isto?
Da mesma maneira que olho para os americanos, em muitos Estados onde ainda existe a pena de morte. E nós tivemos pena de morte até 1800, apesar de termos sido os primeiros a acabar com ela na Europa. Não tenho dúvidas sobre que voltar a ter pena de morte é um retrocesso e isso também não se pode tolerar. Mas é um dos perigos. E tanto me faz que seja um europeu como um árabe, o princípio é o mesmo: é sempre violar o direito à vida.

Deixou claro que os ataques se inserem no que é intolerável. Como é que se reage nestes casos?
Há a lei e tem de a aplicar sem hesitações. E tem de se ter uma segurança pública séria.

Para a qual é preciso dinheiro...
Há uma coisa que os nossos economistas em geral se esquecem: o regime colonial trouxe aos ocidentais riqueza – pagavam os salários que queriam, tinham as matérias-primas ao preço que queriam, tinham o mercado dos produtos acabados pelo preço que lhes apetecia. Agora, andamos a queixar-nos de os chineses fazerem o que nós fazíamos. Já viu algum economista invocar isto? Faz de conta. Mas isto faz multiplicar na Europa de hoje os regimes extractivos. Ou seja, os regimes políticos dizem-se liberais, mas levam-lhe o vencimento, cobram impostos brutais, querem lá saber das dificuldades de cada um.

Não é uma Europa inclusiva?
Penso até que, no que se refere à política de imigrações, não respeitou muitas vezes a protecção e a legislação a que têm direito os trabalhadores, por exemplo. De vez em quando vamos tendo notícias sobre casos, aqui e ali. São políticas difíceis, mas que têm de ser assumidas. E não sei se estão assumidas em todos os países da União Europeia.

Somos uma Europa sem rumo?
A Europa está com um grave problema: não tem conselho estratégico. O perigo seria o de se estar a criar uma Europa alemã, hierárquica. Justamente aquilo que não é agregador, por isso a multiplicação de partidos reaccionários. Está a crescer o desamor à Europa, visível em toda a parte. A minha conclusão é que o imprevisível está à espera de uma oportunidade.

Portugal é um elo fraco, corre riscos?
Portugal é cada vez mais um país exógeno e isso significa que sofre os efeitos de decisões nas quais não participa. De maneira que tudo o que acontece neste ambiente pode ter reflexos no país.

Qual o papel da ONU e da NATO nestes conflitos?
A ONU está a transformar-se num templo de orações a deuses desconhecidos para dar protecção às desgraças do mundo. Com a NATO há um problema ao nível da articulação com o sistema autónomo de defesa da Europa e a complexidade dos acordos. Em segundo lugar, os EUA estão a colocar muito do seu esforço no Pacífico.

Choque de civilizações

Manuel Villaverde Cabral, in O Observador

Declarar que «Somos todos Charlie» é politicamente correcto mas pouco convincente e totalmente insuficiente para dar conta do que se está a passar no mundo e não só em França.

Declarar que «Somos todos Charlie» é politicamente correcto mas pouco convincente e totalmente insuficiente para dar conta do que se está a passar no mundo e não só em França. Não se trata apenas de um atentado inaudito contra a liberdade de expressão e contra a comunicação social tal como a conhecemos em democracia. Se fosse apenas isso, o voto pio dos media e dos manifestantes que saíram à rua um pouco por toda a Europa seria talvez suficiente, mas não é.

Em vez disso, é cada vez mais difícil escapar à terrível sensação de que estamos a assistir àquilo a que, já antes do atentado do 11 de Setembro de 2001, alguns chamavam um “choque de civilizações” e a que outros, mais tarde, começaram a chamar com disfarçado júbilo uma «terceira guerra mundial» destinada a ocupar o espaço criado pelo fim da “guerra fria” que sucedera à queda do muro de Berlim. Como Rui Ramos aqui lembrou a propósito do miserável atentado de quinta-feira passada em que assassinaram um dos meus heróis de Maio de ’68, Wolinski, e os seus companheiros de Charlie-Hebdo, foi o conservador norte-americano Samuel Huntington quem cunhou a expressão “choque de civilizações” (Foreign Affairs, 1993) a fim de designar “o próximo padrão de conflito” que estava a tomar o lugar da velha “guerra fria” entre – para simplificar – o comunismo e a democracia.

Ora, a verdade é que isso tem vindo a confirmar-se ano após ano, aceleradamente desde o 11 de Setembro, tendo como pano de fundo a densificação da globalização iniciada nos primórdios da década de Setenta do século passado e a correspondente emergência de potências económicas e políticas de tipo novo como os BRICs e os seus associados, nomeadamente no mundo islâmico (Irão, Turquia). Não é ainda a “terceira guerra mundial” anunciada para breve (Boaventura Sousa Santos, Visão, 11 de dezembro), mas é certamente um terreno de batalha aberto em permanência que ganha novos contornos todos os dias.

Nesse terreno, as organizações terroristas fazem as vezes de exércitos que nuns casos não existem e noutros fingem não existir (China e Rússia em particular), até porque as fronteiras são incertas, mudando a cada passo. O ponto mais fixo desta fronteira móvel entre civilizações é, efectivamente, o Islão, desde Marrocos até ao Afeganistão. Não só pelas razões culturais que se podem ler, a contrario, no Orientalismo (1978) que Edward Saïd escreveu contra aquilo que achava ser a «visão ocidental» do Médio Oriente, mas também pela efervescência religiosa e, por trás disso, o petróleo suficiente para financiar tudo o que se quiser.

Dito isso, o clamoroso insucesso da “Primavera Árabe” é a prova que não está à vista qualquer democratização dos territórios politicamente subjugados pelas diferentes crenças islâmicas. E a Turquia prova o mesmo ao fazer ao transformar as eleições em virtual ditadura. Há criaturas bem-intencionadas que dirão que, no próprio ocidente cristão, ainda há pouco nos matávamos por motivos teológicos, para não falar dos totalitarismos do século XX. É verdade com certeza. Desde a queda do muro de Berlim, todavia, já não é seguramente por aí que passa a fronteira dos grandes conflitos internacionais.

Muito poucos terão reparado nisso mas não foi à toa que o líder do PCP, no discurso de encerramento da última Festa do Avante, ao saudar “os povos e as forças progressistas que estão no centro dos grandes combates do nosso tempo”, citou a Palestina em lugar do maior destaque. E havia apenas outros três. A escolha diz muito: Venezuela, Ucrânia (pró-russa entenda-se) e Cuba, que entretanto irá possivelmente sair da lista; nem menção da China.
Inversamente, diante da Palestina está Israel, o que faz deste, quer se queira ou não, a primeira fronteira do “choque

civilizacional”. Uma das funções internacionais da Palestina tem sido, com efeito, empurrar a opinião pública e os próprios governos de Israel para a “direita”, de forma a isolar os USA e os seus aliados da opinião pública nas democracias europeias, a qual se tornou basicamente pacifista, rendendo-se à tolerância civilizacional e ao alegado “multiculturalismo”, ao mesmo tempo que tornava impossível as intervenções que a NATO ou o que dela resta poderia ter na Síria e em situações transnacionais como o infame “Estado islâmico”. Paradoxalmente ou talvez não, crescem o xenofobismo e as extremas-direitas na Europa.

Não querer juntar estes fios e não ver que está em movimento uma frente de combate no mundo islâmico contra aquilo que se designava antigamente por “imperialismo” é cegueira. E se porventura sou eu que me engano, ainda bem; é melhor prevenir que remediar. Agora, minimizar o facto de três ou quatros franceses de origem norte-africana terem feito morrer a tiro mais de 20 pessoas em menos de 48 horas, colocando mais uma vez em estado de alarme um dos principais países ocidentais, isso seria muita ingenuidade. O facto de os próprios terroristas se terem lançado contra as balas da polícia só garante que por boca deles nada mais se saberá acerca de quem eram e o que representam para as suas comunidades de origem. As ondas do “choque civilizacional” não cessarão de nos abalar.

9.1.15

Atentados em Paris."Há uma frustração no mundo islâmico"

Por Pedro Rainho, in iOnline




Sheik Munir não consegue enquadrar os atentados em nome do islão nas palavras do profeta Maomé. O líder da comunidade islâmica diz que os autores estão "marginalizados"




O sheik David Munir não consegue perceber. Allahu Akbar, Deus é grande. Segundos depois de disparar à queima-roupa sobre um polícia que passava de bicicleta na rua, matando-o, essas mesmas palavras foram gritadas por um dos responsáveis pelo ataque à redacção do "Charlie Hebdo", esta quarta-feira. Na mesquita central de Lisboa ouvem-se as mesmas palavras, uma e outra vez, durante a oração do início da tarde. O sheik repete as palavras. Allahu Akbar. Deus é grande.

O líder da comunidade islâmica em Portugal não consegue perceber como é que actos como os desta semana em Paris podem acontecer sob o manto da palavra sagrada. "O islão é o mesmo, é uno." Mas as palavras que o sheik lê no Corão são de tolerância, a mensagem é a de que se deve responder ao ataque com a paz. Os cartoons publicados pelo semanário "Charlie Hebdo" são "uma ofensa", não esconde. "Mas a resposta nunca pode ser a violência, nunca. É essa a postura que cada muçulmano deve ter."

À porta da mesquita, tudo na mesma. Quem passa frente ao edifício não se prende em considerações sobre os atentados de Paris nem mostra sinais de desconforto. As conversas são banais, de dia-a-dia. No interior, entre os fiéis que vão chegando para a oração conjunta, o ambiente é de serenidade. "Estamos na comunidade, somos compreendidos", garante o sheik. Mas isso pode não ser suficiente. Ataques perpetrados em nome do islão podem ter consequências para a restante comunidade islâmica, admite. "Nos transportes públicos, no contacto diário com a população podemos ser olhados com receio."

O sheik reflecte sobre a leitura dos versículos, pensa nos atentados e não encontra razão para o que aconteceu. "É como tirar um texto do seu contexto original e dar-lhe uma interpretação completamente diferente", diz David Munir. Só assim consegue apresentar uma explicação para que se justifiquem mortes em nome do islão.

Ou então é outra coisa. "Há uma frustração no mundo islâmico", desabafa o líder religioso. "Quando um muçulmano sai do seu país, para onde é que ele emigra?" Para o Ocidente, vai em busca da democracia. "Não vai para outros países muçulmanos, vai para onde não há falta de liberdade e onde não faltam condições de vida."

Mas Said e Chérif Kouachi são franceses, descendentes de argelinos. Consequência da "marginalização" social, aponta o sheik. Jovens que viveram toda a vida ou grande parte dela no contexto europeu, mas têm raízes noutros pontos culturais e geográficos. Isso e uma ignorância em relação aos princípios basilares do islão, dois factores que facilitam a tarefa de quem está do outro lado - Al-Qaeda, Estado Islâmico - e pretende servir-se destes "peões" em nome de uma guerra santa.

Ontem, tal como noutros momentos de tensão em que o foco incide de imediato sobre os muçulmanos, nunca lhe chegaram relatos de discriminação. Menos ainda relatos de ataques a membros da comunidade, ao contrário do que aconteceu, ainda ontem, junto a uma mesquita no sul de Paris. Pouco tempo antes, a 25 de Dezembro, uma outra mesquita, dessa vez em Estocolmo, na Suécia, foi incendiada quando decorriam orações no interior, ferindo cinco pessoas. O timing não é casual. Em vários países europeus, mas sobretudo na região do norte da Europa, o debate sobre a imposição de limites à imigração está quente. A comunidade islâmica portuguesa escapa às demonstrações de xenofobia, mas o risco existe. "Nós somos particularmente afectados por estes casos porque somos muçulmanos e estes actos são praticados em nome do islão", reconhece o líder religioso.

Dois homens franceses entraram na redacção do jornal, chamaram pelo nome cada um dos alvos que procuravam e dispararam a matar. O polícia que garantia a protecção da redacção foi morto pelo caminho. O outro polícia - ele próprio muçulmano - foi abatido de forma indiscriminada.

Quiseram vingar a "ofensa" a Maomé, os desenhos que satirizavam o profeta. "Quando se proferem palavras contra Deus, um muçulmano não toma isso a peito porque Deus é superior a tudo. Mas quando se ofende o profeta, essa ofensa é muito sentida porque ele é o exemplo a seguir, ele é o modelo", explica o sheik. O "Charlie Hebdo" passou a linha da sua liberdade ao publicar os cartoons de Maomé, diz o líder religioso em Portugal. A reacção tem, por isso, de existir. "Mas eu vivo numa democracia ocidental, que se rege pela lei. E é só nesse campo que tenho de intervir", sublinha o sheik.

Terroristas provocam o ódio contra os muçulmanos deliberadamente

Por Joana Azevedo Viana, in iOnline

Radicais alimentam a discriminação para facilitar recrutamento de franceses, dizem analistas

Miguel Monjardino, especialista em assuntos internacionais, dá menos crédito à tese da vingança como motivo por trás do atentado ao jornal satírico "Charlie Hebdo", inclinando-se para a hipótese de o ataque de quarta--feira ter sido a execução de um plano para alimentar a desconfiança entre os franceses e o ódio face à comunidade muçulmana. Para Monjardino, faz menos sentido pensar que os cartoons tenham ofendido dois ou três militantes islâmicos que responderam tirando a vida aos jornalistas, mas antes que estes podem ter-se servido do "Charlie Hebdo" para um atentado que tem "semelhanças com o que foi feito pela Al-Qaeda no Iraque", ou seja, "ataques altamente provocatórios com vista a provocar a desintegração da sociedade".

A vingança tomou de imediato o foco ao terem sido os próprios suspeitos do ataque, os irmãos Kouachi, a assegurarem--se disso ao gritarem no momento da fuga: "Vingámos o profeta Maomé! Matámos o 'Charlie Hebdo'!" Mas alguns analistas têm assinalado que o problema que enfrenta um grupo como a Al-Qaeda na Europa, que é a sua base de recrutamento, é que os muçulmanos, na sua larga maioria, rejeitam o terrorismo. A maioria dos muçulmanos nem sequer mostra grande interesse pela política, e menos ainda pelo islão enquanto política.

A França é um país de 66 milhões, dos quais cinco milhões são de origem muçulmana. Segundo as sondagens, apenas um terço desta comunidade tem interesse por religião. Os dados indicam que os muçulmanos franceses são a comunidade muçulmana mais próxima de um sentido secular da sociedade. Muitos destes imigrantes chegaram a França no período do pós-guerra, buscando trabalho, e apenas uma minoria era letrada. Os seus netos têm uma perspectiva distanciada do fundamentalismo que grassa no Médio Oriente, sendo antes orientados por uma cultura cosmopolita e urbana.

Em Paris, onde reside uma população muçulmana que tende a ter um nível de instrução mais elevado e que é mais religiosa, a larga maioria não só rejeita a violência como declara a sua lealdade à pátria francesa. O objectivo de grupos inspirados na Al-Qaeda passa, por isso, por "colonizar mentalmente" os muçulmanos franceses, diz o especialista em questões do Médio Oriente Juan Cole, num artigo de opinião que assinou ontem no site Informed Comment. Monjardino explica que, perante a indiferença desta população, a estratégia dos terroristas terá de passar por criar um ambiente de "desconfiança e discriminação", extremando as posições para gerar um ambiente de "guerra civil psicológica".