12.1.15

Ataque Terrorista. Adriano Moreira ajuda-nos a pensar sobre o que aconteceu

Por Isabel Tavares, in iOnline

A Europa tem vários problemas, diz o professor de Direito. Um deles é dizer-se liberal e inclusiva quando, na prática, o que faz é retirar dos seus cidadãos o mais que pode. Falha nos afectos e na protecção à imigração. Portugal sofre a dobrar e nem tem voto na matéria. Que aplica com vigor

Adriano Moreira coordenou o primeiro livro sobre terrorismo publicado em Portugal ["Terrorismo"], editado pela Almedina, em 2004. Em entrevista ao i dá--nos a sua visão do ataque à redacção do "Charlie Hebdo" que, na quarta-feira passada, chocou o mundo. Fala num atentado muito mais profundo do que à liberdade de imprensa, mas que falhou num dos seus intuitos, o de abalar a confiança da sociedade civil nos seus governos, como mostrou a manifestação de ontem, em Paris. E lembra que repúdio implica responsabilidades e consequências.
Adriano Moreira coordenou o primeiro livro sobre terrorismo publicado em Portugal [“Terrorismo”], editado pela Almedina, em 2004. Em entrevista ao i dá--nos a sua visão do ataque à redacção do “Charlie Hebdo” que, na quarta-feira passada, chocou o mundo. Fala num atentado muito mais profundo do que à liberdade de imprensa, mas que falhou num dos seus intuitos, o de abalar a confiança da sociedade civil nos seus governos, como mostrou a manifestação de ontem, em Paris. E lembra que repúdio implica responsabilidades e consequências.

O professor é Charlie?
Fui à manifestação da Câmara Municipal de Lisboa porque me telefonaram pessoas do CDS – não sei porquê a mim, que já não vou a coisas do partido, mas a esta rapaziada nunca digo que não, quando são estudantes vou sempre, acho que é obrigação enquanto estamos vivos.

Como é que olha para este atentado?
Este não é só um atentado contra a liberdade de escrever e isso tem de ser posto em evidência. Inscreve-se na agressão contra os ocidentais e é, antes de mais, um atentado à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que eles também assinaram. A começar pelo direito à vida, que vem no artigo 3.o: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Atrás da violação desses direitos vêm as outras atrocidades.

A forma de terrorismo, o tipo de ataques, tem vindo a mudar...
Os ataques são determinados por interesses. A novidade trazida pelo terrorismo islâmico é que passou a inscrever valores religiosos no conceito estratégico de combate. Uma coisa é combater para conquistar o Porto de Lisboa ou para roubar Badajoz. Outra coisa é desatar a esmagar pessoas porque não são muçulmanos, estão a espalhar a fé que lhes deu Maomé. E quando há elementos religiosos a violência e a crueldade aumentam.

Esses valores religiosos são reais?
São reais para quem assume a violência. E não devemos confundir os muçulmanos todos com os extremistas, para quem a violência é justificada.

Há pouco falava em interesses. Os dos líderes não são necessariamente os dos liderados.
O cristianismo foi um princípio, dito por Nosso Senhor Jesus Cristo: dá a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas quem dá a liberdade religiosa são os césares do mundo... O que está a acontecer com o novo Estado Islâmico é que inscrevem a ideologia deles, até já falam em conquistar a Andaluzia, não lhes basta ter um território, a independência.

Nesta guerra, o que é que está a falhar? É desconcertante perceber que os alvos são tão frágeis, por um lado, e ver uma Europa inactiva?
A União Europeia tem um sistema de segurança com uma dotação de vários milhões de euros. O que é justo dizer é que o número de ataques terroristas que vamos conhecendo, matança de crianças nas escolas, bombas em estações de comboios, etc., são as falhas. Não conhecemos os números dos ataques evitados pelos serviços de informação e segurança. Um dos objectivos destes atentados é cortar a confiança entre a sociedade civil e os governos. Mas falhou, como se viu na manifestação em Paris.


A União Europeia convocou uma reunião de urgência para rever o Tratado de Schengen, por causa do atentado. Olha para os criminosos como franceses ou estrangeiros?
Eram descendentes árabes. E isso leva-nos a outra questão. Parece-me normal que a União Europeia queira discutir Schengen, porque há questões que devem ser avaliadas na sua eficácia. Um dos problemas é a obtenção de cidadania, não basta entregar um cartão. Nos EUA é preciso jurar fidelidade e passar por um processo rigoroso. Mas há ainda outro aspecto a ter em conta e onde a Europa tem, muitas vezes, falhado.

Qual?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi escrita por ocidentais. Vamos imaginar o número 1 do artigo 16.o: “A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião […]” Quem escreveu isto alguma vez pensou na família poligâmica? Só para dar um exemplo. Quando os povos libertados começaram a chegar, leram, assinaram, mas não estavam a dizer a mesma coisa. Ou seja, a integração das culturas diferentes faz não pela tolerância, mas pelo respeito.

É aí que a Europa tem falhado?
Sim. A tolerância não se pode impor por lei. O que temos na Europa são grupos que correspondem ao conceito de multidão e não de comunidade, que é uma sociedade ligada por afectos. A França tem ainda hoje um grande problema a este nível com o argelinos – mas é um problema que existe em diversas cidades europeias, que têm regimes de exclusão. E estes homens, o que mostraram é que não estavam integrados na cultura francesa – só não sabemos ainda se agiram isolados ou se eram um braço armado de um grupo militar. Uma coisa é a nacionalidade formal, outra a tal comunidade dos afectos. O grande exemplo disto é a América, que tem a comunidade espanhola, etc., mas todos dizem que são americanos. Não foi por acaso que o presidente Barack Obama terminou o seu último discurso a dizer “somos todos americanos” em vez do tradicional “God bless America”. Esta é uma dinâmica que a Europa precisa fazer, mas leva tempo. Tem de haver aqui uma política activa da UE.

E, no entanto, a eurodeputada Marine le Pen, da Frente Nacional, diz que se for eleita em França traz a pena de morte de volta... Como olha para isto?
Da mesma maneira que olho para os americanos, em muitos Estados onde ainda existe a pena de morte. E nós tivemos pena de morte até 1800, apesar de termos sido os primeiros a acabar com ela na Europa. Não tenho dúvidas sobre que voltar a ter pena de morte é um retrocesso e isso também não se pode tolerar. Mas é um dos perigos. E tanto me faz que seja um europeu como um árabe, o princípio é o mesmo: é sempre violar o direito à vida.

Deixou claro que os ataques se inserem no que é intolerável. Como é que se reage nestes casos?
Há a lei e tem de a aplicar sem hesitações. E tem de se ter uma segurança pública séria.

Para a qual é preciso dinheiro...
Há uma coisa que os nossos economistas em geral se esquecem: o regime colonial trouxe aos ocidentais riqueza – pagavam os salários que queriam, tinham as matérias-primas ao preço que queriam, tinham o mercado dos produtos acabados pelo preço que lhes apetecia. Agora, andamos a queixar-nos de os chineses fazerem o que nós fazíamos. Já viu algum economista invocar isto? Faz de conta. Mas isto faz multiplicar na Europa de hoje os regimes extractivos. Ou seja, os regimes políticos dizem-se liberais, mas levam-lhe o vencimento, cobram impostos brutais, querem lá saber das dificuldades de cada um.

Não é uma Europa inclusiva?
Penso até que, no que se refere à política de imigrações, não respeitou muitas vezes a protecção e a legislação a que têm direito os trabalhadores, por exemplo. De vez em quando vamos tendo notícias sobre casos, aqui e ali. São políticas difíceis, mas que têm de ser assumidas. E não sei se estão assumidas em todos os países da União Europeia.

Somos uma Europa sem rumo?
A Europa está com um grave problema: não tem conselho estratégico. O perigo seria o de se estar a criar uma Europa alemã, hierárquica. Justamente aquilo que não é agregador, por isso a multiplicação de partidos reaccionários. Está a crescer o desamor à Europa, visível em toda a parte. A minha conclusão é que o imprevisível está à espera de uma oportunidade.

Portugal é um elo fraco, corre riscos?
Portugal é cada vez mais um país exógeno e isso significa que sofre os efeitos de decisões nas quais não participa. De maneira que tudo o que acontece neste ambiente pode ter reflexos no país.

Qual o papel da ONU e da NATO nestes conflitos?
A ONU está a transformar-se num templo de orações a deuses desconhecidos para dar protecção às desgraças do mundo. Com a NATO há um problema ao nível da articulação com o sistema autónomo de defesa da Europa e a complexidade dos acordos. Em segundo lugar, os EUA estão a colocar muito do seu esforço no Pacífico.