9.1.15

Desperdício alimentar. O que era lixo para um é o luxo de outros

Por Marta Cerqueira, in iOnline




17% dos alimentos produzidos por ano são desperdiçados. Na luta contra este número, a Refood e a Zero Desperdício levam refeições que iam para o lixo até quem mais precisa




Deixar no frigorífico tupperwares com as sobras do jantar guardadas para o almoço do dia seguinte, que nunca chegou a acontecer. Deitar fora iogurtes e bolachas, só porque o prazo acaba nesse exacto dia. Encher o prato de comida, quando a fome só permite comer metade. São gestos do dia-a-dia e que, isolados, parecem ter pouca importância. Numa escala mais global, no entanto, são esses mesmos gestos que contribuem para que sejam desperdiçados um milhão de toneladas de alimentos todos os anos em Portugal – cerca de 17% do que é produzido para consumo humano.

Estes dados são de 2012 e dizem respeito ao primeiro estudo do género feito em Portugal. Dois anos depois de ter sido dado o alerta, a expectativa é de que esses números tenham descido, não só pela crise, que levou a um corte em tudo o que seja excesso, inclusive alimentar, mas principalmente tendo em conta o trabalho da Refood e da Zero Desperdício, os dois maiores projectos de combate ao desperdício. Com métodos de trabalho semelhantes, os voluntários das duas equipas recolhem todos os dias refeições de restaurantes, cantinas, hotéis e hipermercados, que iriam para o lixo, e entregam a famílias carenciadas.

A ideia destes projectos é tão simples que a pergunta que fica no ar é “por que razão não se fez isto antes”. António Costa Pereira dá a resposta. “Nunca ninguém tinha questionado se era permitido aproveitar este tipo de refeições”, explicou ao i o mentor do projecto Zero Desperdício. No entanto, bastou um primeiro contacto com a ASAE para que António percebesse que não só era permitido, como a Autoridade de Segurança Alimentar estaria disponível para colaborar no projecto, ajudando a que a comida mantivesse a mesma qualidade durante todo o processo.

A partir daí seguiram-se uma série de procedimentos burocráticos que permitiram que Abril de 2012 fosse o mês de lançamento da Zero Desperdício que, em colaboração com a câmara de Lisboa, já recolheu mais de 1,5 milhões de refeições. As cerca de cem entidades com quem têm protocolo, que vão desde a Assembleia da República ao Ikea, desde o Hotel Ritz aos restaurantes de bairro, entregam todos os dias as refeições que iriam para o lixo para que sejam distribuídas por quem precisa. Para quem ainda tem dúvidas sobre o processo, António esclarece: “Não estamos a falar dos restos que sobram dos pratos dos clientes. Falamos, sim, das refeições que nunca saíram da cozinha e que iriam para o lixo no final do dia.”

Aproveitando os meios já existentes, a Zero Desperdício trabalha com voluntários e funcionários das juntas de freguesia que seguem em carrinhas para recolher os alimentos e que, posteriormente, as armazenam nas instituições com quem colaboram. A partir daí, os beneficiários podem optar por comer nos refeitórios das instituições que tenham essa capacidade ou, simplesmente, ir buscar a refeição para comer em casa.

Em três anos de projecto, António Costa Pereira garante que nunca teve um parceiro que desistisse e aponta 2015 como um ano de alargamento da rede em que operam e que actualmente se cinge a Lisboa, Loures, Cascais, Sintra, Santo Tirso e Loulé.

Este é também o ano de aposta na expansão da rede da Refood, que vai passar literalmente do oito para o 80. “Temos em funcionamento os núcleos de Nossa Senhora de Fátima, Telheiras, Estrela, Lumiar, Alfragide, Olivais, Foz do Douro, no Porto, e Cascais. Este ano queremos chegar aos 80 em todo o país”, conta ao i Hunter Halder, americano a viver em Portugal há 20 anos. Quando se começou a questionar sobre o que era feito com a comida que sobrava dos restaurantes, passou a percorrer Lisboa de bicicleta, em percursos nos quais ia recolhendo a comida que sobrava dos restaurantes para a entregar a quem precisava. Das primeiras 45 entidades que contactou, 30 disseram logo que sim. O projecto começou a ter uma dimensão que ultrapassava o trabalho para só uma pessoa. Foi aí que Hunter recrutou voluntários, dividiu-os em equipas e contactou cada vez mais restaurantes e supermercados, chegando aos números actuais: 300 mil refeições recolhidas anualmente pelos cerca de 1400 voluntários no activo.

FRUTA FEIA Mais de 30% da fruta produzida em Portugal é desperdiçada, apesar de ser de boa qualidade. Por não ter a cor, o formato e a dimensão ideais, é rejeitada por distribuidores e consumidores. A cooperativa Fruta Feia nasceu em 2013 da necessidade de inverter esta tendência de normalização de frutas e legumes que nada tem a ver com questões de segurança e de qualidade.

A cooperativa contacta directamente agricultores e produtores, que fornecem a fruta que, de outra forma, iria para o caixote do lixo. Com valores abaixo dos praticados no mercado, a cooperativa vende a fruta e legumes em cabazes que os interessados podem recolher em dois pontos específicos, para já, só em Lisboa. No seu primeiro ano de actividade, evitou o desperdício de quase 70 toneladas de frutos e hortícolas.