12.1.15

"Há um enorme crescimento do número de doentes com problemas sociais nos hospitais"

Alexandra Campos, in Público on-line

O recurso às urgências hospitalares continua a ser excessivo em Portugal e o caos nas urgências é um problema cíclico, não sendo um exclusivo português, mas podia ser minorado com algumas medidas, acredita Luís Campos, presidente do Conselho Nacional para a Qualidade em Saúde, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e autor do “Roteiro de Intervenção em Cuidados de Emergência e Urgência”, apresentado no final de 2014, no âmbito duma avaliação do Plano Nacional de Saúde. “Este é um problema complexo e, como tal, não tem uma receita milagrosa”, avisa.

Fez parte de uma comissão que delineou a reforma das urgências em 2008. Presume-se que o vosso trabalho visava, entre muitos objectivos, que as situações de caos vividas ciclicamente nas urgências não fossem tão frequentes nem tão extremas. Por que razão é que se continuam a repetir, de ano para ano?
As urgências são a confluência dos problemas de saúde e sociais das pessoas com todas as disfunções do sistema de saúde, mas, ao mesmo tempo, respondem de forma eficaz, resolvendo ou encaminhando os problemas das pessoas. A situação actual representa, acima de tudo, o arrastar de um problema que é cíclico, é complexo e, como tal, não tem uma solução milagrosa ao virar da esquina, exigindo uma resposta sistémica para as suas múltiplas causas. Existem algumas medidas simples que o poderiam atenuar.

Mas a situação não está pior do que num passado recente?
O agravamento dos problemas de saúde das pessoas, que ocorrem necessariamente em todos os povos que empobrecem, e as restrições no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ditadas pela crise económica, que têm dificultado a capacidade de resposta, estarão seguramente a contribuir este ano para a agudização deste problema, mas parece-me abusivo dizer que toda a culpa é da crise assim como afirmar que se deve ao colapso do SNS.

A reforma das urgências não devia ter prevenido este tipo de situações? Será porque não foi concretizada?
A nossa reforma foi implementada na sua quase totalidade mas não poderia prevenir o actual problema das urgências porque foi essencialmente uma reforma estrutural. Os objectivos da reforma de 2008 foram a redefinição da rede de urgências, de forma a melhorar o acesso a este tipo de serviços, a equidade nesse acesso e a qualidade da assistência, garantindo que os hospitais ou centros de saúde tinham capacidade de resposta para o nível de urgência que neles estava sediada. Esta reforma foi, além disso, quem definiu, na prática, a actual configuração da rede de hospitais agudos, levando a uma concentração desses hospitais, que passaram dos 73 para os atuais 41. Com a proposta complementar de 45 Serviços de Urgência Básica, dos quais estão a funcionar 41, conseguiu que mais de 90% da população esteja a menos de meia hora de qualquer ponto de urgência.

Mas então o problema actual é de excesso de procura das urgências ou de diminuição da capacidade de resposta?
O número de urgências não tem aumentado ao longo dos anos, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus, embora continue excessiva. Aumentou apenas no Inverno, embora não mais do que no Inverno passado. No entanto, a gravidade dos doentes tem aumentado nos últimos anos e também o número de internamentos. Este ano assistiu-se a uma menor capacidade de resposta, o que é preocupante porque ainda não estamos sequer em pico de gripe.

Porque é que diz que é excessivo o recurso às urgências e como é que explica esse excesso?
Na realidade, cada 10 portugueses vão, em média, seis vezes por ano a uma urgência hospitalar. Em Inglaterra, por exemplo, apenas vão três vezes. Além disso, em Portugal, 40% dos casos podiam ser resolvidos nos cuidados primários. Para isto contribui um milhão de pessoas sem médico de família, maior dificuldade de acesso ao médico nos centros de saúde que não foram abrangidos pela reforma hospitalar, ausência de outros especialistas ou acesso a exames complementares nos centros de saúde. Mas também existe falta de alternativas nos próprios hospitais, que não estipulam vagas nas consultas para doentes não programados nem fazem um aproveitamento pleno dos hospitais de dia. Depois, a falta de uma resposta integrada proactiva aos doentes crónicos, particularmente aos mais frágeis, idosos e com muitas co-morbilidades, que são os grandes frequentadores das urgências e consomem mais de metade dos recursos da saúde. Finalmente, uma pequena percentagem de doentes dirige-se às urgências apenas por razões de proximidade, ou por conveniência de horário, porque não querem nem podem faltar ao emprego.

Mas disse também que existe uma diminuição da capacidade de resposta. É por falta de médicos?
As limitações nas contratações terão afectado muitos hospitais mas também a diminuição do pagamento das horas extraordinárias tem desmotivado muitos profissionais para a prestação do serviço de urgência, um trabalho altamente exigente em termos físicos e emocionais. Aliado a isto está o recurso a internos, médicos indiferenciados ou mesmo médicos contratados às empresas, que caem nos bancos “de pára-quedas”, a que as equipas fixas recorrem, tendo diminuído os médicos mais experientes na linha da frente. Este facto diminui a capacidade de decisão na área de maior risco na urgência e aquela em que a experiência e competência dos médicos pode acelerar mais os fluxos e diminuir o erro. Mas a acumulação de doentes na urgência por falta de vagas nas enfermarias, mobilizando grande parte de capacidade da equipa que está na urgência, é também uma das causas mais importantes.

E porque é que isso sucede?
Há razões estruturais e outras de gestão: hospitais subdimensionados para a população de referência, como é o caso nítido do hospital Fernando da Fonseca [Amadora-Sintra], hospitais demasiado fragmentados em serviços e não em departamentos que façam uma gestão comum de camas, diminuição das camas de medicina interna porque as camas cirúrgicas são mais rentáveis para o hospital, a não generalização do planeamento de altas, dificuldade na transferência para os cuidados continuados e falta de camas de cuidados paliativos, são algumas destas causas. Queria ainda destacar o enorme crescimento do número de doentes com problemas sociais, que afecta mais de metade dos doentes internados no meu serviço… Os serviços de medicina estão transformados em verdadeiros centros integrados de resolução dos problemas médico-sociais dos doentes e confrontamo-nos diariamente com uma maior incapacidade de resposta da Segurança Social e das Misericórdias.

Pelo que diz, são tantas as coisas a mudar que vamos continuar por muitos mais anos com estas esperas de 20 horas e pessoas a morrer à espera de ser atendidas?
Não necessariamente, há soluções que são estruturais, mais difíceis e demoradas, mas outras que são mais simples e fáceis de implementar. Vou apenas apontar duas que dizem respeito ao próprio serviço de urgência: estes tempos de espera decorrem da lógica do sistema de triagem de Manchester, que divide os doentes em cinco cores, conforme a sua gravidade, e estabelece tempos limite de atendimento de acordo com a prioridade de cada grupo. Esta triagem é fundamental mas, em situações de maior crise, os doentes de maior gravidade acabam por esgotar os recursos disponíveis e os doentes menos graves são penalizados com longos tempos de espera. Há uma solução para reduzir para um quarto o tempo máximo de espera: desde 1994 o Hospital de S. Francisco Xavier conseguiu esse objectivo, implementando uma via rápida para estes doentes, através da criação de um centro de atendimento de doentes agudos não urgentes (verdes e azuis), adjacente à urgência, garantido essencialmente por clínicos gerais.

Isso melhora substancialmente a situação?
A lógica é que estes doentes não necessitam de exames complementares nem de especialistas e só precisam de ver um médico e de uma prescrição para irem para casa. Esta solução não aumentou o número de doentes que acedem à urgência, permitiu adequar o nível dos médicos à gravidade dos doentes e permite sempre o envio para o balcão da urgência de um doente mal triado. Esta mesma solução está a ser implementada, 20 anos depois, nos serviços de urgência ingleses. Outra medida que pode salvar vidas é respeitar uma norma de design dos serviços de urgência, que é a existência de um balcão, que pode ser o balcão de informações, com ligação à sala de espera, onde está sempre alguém que mantém contacto visual com os doentes e familiares que estão nessa sala e pode detectar alguma situação de agravamento inesperado de algum doente, encaminhando-a novamente para a uma reavaliação na triagem.

Concorda com a proposta do Ministério que pretende que os enfermeiros possam pedir exames de diagnóstico na triagem?
Admito que, de uma forma protocolada e supervisionada por médicos, os enfermeiros possam requisitar exames complementares. É uma experiência que já está divulgada e tem bons resultados em alguns países, mas isto é uma opinião pessoal, quem tem competência para tomar uma posição sobre esta matéria é a Ordem dos Médicos.

E quanto às equipas fixas nas urgências?
Penso que o serviço de urgência, enquanto serviço que é, deve ter uma equipa dedicada que garanta a continuidade de cuidados, faça a gestão do serviço, promova a formação e a investigação, mas não pode tomar conta de todo o serviço nem durante todo o tempo. A urgência é uma área de prestação assistencial de muitas especialidades e nunca poderá funcionar sem a colaboração dessas especialidades. A colaboração da medicina interna, em particular, é fundamental, pela sua vocação e pela sua expertise nesta área. A substituição de internistas por médicos indiferenciados, que tem acontecido em alguns hospitais, irá agravar todos estes problemas e diminuir a qualidade da assistência aos doentes urgentes.

Acha que a criação da especialidade de emergência poderá ser a grande solução, como já defendeu o Secretário de Estado e mesmo alguns dos seus colegas?
Não. Pelo que eu disse, não existe nenhuma solução milagrosa para um problema complexo e esta não é uma delas. A subespecialização é inexorável para fazer face ao aumento do conhecimento e está acontecer em todas as especialidades, mas ela não tem que se traduzir em mais especialidades formais que só vão fragmentar o sistema de saúde e diminuir a sua flexibilidade de resposta. Na Ordem dos Médicos já existe uma competência de emergência que é transversal a todas as especialidades necessárias no Serviço de Urgência e isso parece-me suficiente. Imagine o que é colocar um médico, durante toda a sua vida profissional numa área de tão elevado desgaste e burnout [exaustão], sem possibilidade de transferência para outro serviço ao fim de uns anos… Acredite que a nossa realidade nos serviços de urgência é bem menos fantástica do que as séries de televisão mostram…