18.7.18

Arquitetos e população unem-se para mudar bairros

Pedro Emanuel Santos, in Público on-line

Casa da Arquitetura, sediada em Matosinhos, pensou e concebeu o projeto Lugar de Partilha. Uma forma de juntar profissionais da área de várias partes do Mundo com cidadãos comuns e colocá-los no mesmo patamar de importância, na hora de idealizar e trabalhar um novo espaço público. No Conjunto Habitacional da Guarda, em Perafita (Matosinhos), uma nova realidade nascerá em breve graças a esta ideia inovadora.

O conceito é tão simples que parecia já inventado. Mas não estava. Pelo menos em Portugal. Chama-se Lugar de Partilha, foi concebido pela Casa da Arquitetura e a ideia é colocar moradores de bairros sociais a pensar projetos que gostariam de ver concebidos no espaço comum em que habitam. Não só pensá-los, mas fazê-los perdurar no tempo. Depois, em conjunto com uma equipa internacional de arquitetos, todos põem mãos à obra. Literalmente. No Conjunto Habitacional da Guarda, em Perafita (Matosinhos), uma nova realidade nascerá em breve graças a esta ideia inovadora.

"Um forno comunitário para fazer pão e pizas". "Isso não dá que é precisa muita coisa complicada, antes um espaço para os miúdos poderem brincar à vontade". "E uma tendazita para uns teatros e umas animações, que tal?". "Ou uns baloiços, também pode ser". "Uns aparelhos de ginástica, talvez". As propostas iam saltando de boca em boca dos moradores do Conjunto Habitacional da Guarda, enquanto um atento grupo de arquitetos tomava notas que podem vir a transformar-se em realidade num curto período do calendário. Foi o primeiro passo da segunda edição do Lugar de Partilha, o ponto de partida da interação direta entre arquitetos e cidadãos comuns, os quais, juntos, pensam, desenham e constroem um projeto que dará ar e vida nova a um espaço público descaraterizado mas com potencial de bom usufruto futuro depois de alterado.

Pode abrir portas para o futuro"
Antes de tomarem a palavra, os participantes escutaram o desafio da presidente da União de Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo. "Deem luta aos arquitetos, mostrem aquilo que querem", pediu Maria de Lurdes Queirós. E os moradores não se fizeram rogados. Sentados numa bancada do rinque do complexo, enquanto crianças ensaiavam remates a uma das balizas até a bola subir a um telhado e acabar com os sonhos do dia dos imitadores de Ronaldo, cerca de 50 inquilinos da Guarda começaram tímidos e acabaram tão entusiasmados que quase se interrompiam durante a catadupa de ideias que iam transbordando.

Atrás deles, o local onde a obra vai ganhar forma. Um pequeno descampado, quadrado irregular com altos e baixos de vegetação pouco cuidada, de onde sobressaem enormes calhaus, autênticas rochas a marcar posição de destaque. É lá que, daqui a semanas, vão começar a trabalhar em conjunto os voluntários moradores do bairro e cerca de duas dezenas de jovens arquitetos vindos de várias partes do mundo expressamente para participar neste Lugar de Partilha.

Confirmadas estão já as presenças de profissionais provenientes da Austrália, do México, do Brasil e de Itália. "É interessante para ficarem a conhecer outras realidades bem diferentes das que encontram nos respetivos países. Um intercâmbio que pode abrir portas para que no futuro queiram regressar a Portugal, que tanto apreciam por aquilo que é a história que conhecem de nomes internacionalmente consagrados como Eduardo Souto Moura e Siza Vieira", diz Nuno Sampaio, diretor-executivo da Casa da Arquitetura.

Ele e os colegas Roberto Cremascoli, Edison Okumura, Ivo Poças Martins e Dulcineia dos Santos são os rostos do Lugar de Partilha. Coordenam ideias, organizam, dão as boas-vindas a todos os contributos que possam acrescentar qualidade e dinamismo ao conceito. Sempre com os moradores da Guarda como parceiros. "Estamos em igualdade de circunstâncias. Aqui não há eles e nós, somos todos um só. Partilhamos tudo, até as ferramentas e a mão de obra", descreve Nuno Sampaio. Foi assim o ano passado no Porto, no Bairro da Campinas (ler texto na página 8), será assim este ano em Perafita.

Projeto global e local
A Câmara de Matosinhos também promete uma ajuda no que for necessário. "Dissemos logo que sim ao projeto da Casa da Arquitetura. Este bairro está muito enraizado na freguesia, daí ter sido o escolhido. É o centro de uma comunidade populacional muito trabalhada", explica Luísa Salgueiro, presidente da autarquia e entusiasta do Lugar de Partilha. Ela mesmo também ajudou a que os moradores deixassem a timidez de lado e expusessem planos para o espaço que é deles e que querem ver melhorado.

"Seria bom que ficasse algo que permaneça no tempo, que seja para continuar e que melhore a autoestima das pessoas. Um espaço para socialização, na tradução daquilo que é a expressão "pensar global e agir local", augura Luísa Salgueiro. Está previsto que a obra nasça definitivamente em meados de agosto. Quando concluída, há promessa de festa para marcar a preceito a inauguração daquele que será um dos momentos mais importantes da história do Conjunto Habitacional da Guarda, bairro social com mais de 30 anos, onde cabem 400 moradores perseguidos por um estigma difícil de eliminar.

"Ainda somos olhados de lado por sermos daqui. Infelizmente, por mais anos que passem, as pessoas continuam a ter uma ideia errada sobre nós. Na verdade, não não damos problemas a ninguém. Os outros, às vezes, é que veem coisas más onde elas não existem", lamenta Lurdes Costa, uma das inquilinas mais antigas do Conjunto da Guarda. Outro dos objetivos do Lugar de Partilha é mesmo esse, dar protagonismo a quem a vida não tem proporcionado os melhores horizontes de justiça social. Como que colocar no mapa da igualdade de oportunidades quem, por morar num bairro, é praticamente sentenciado como cidadão de segunda. E, sobretudo, doar a essas pessoas as chaves para que possam mandar no próprio espaço público com as suas ideias. "Dar-lhes razões para melhorar a autoestima", resume Nuno Sampaio.
A guardiã do Conjunto Habitacional da Guarda"

Chama-se Lurdes Costa e é das inquilinas mais antigas do Conjunto Habitacional da Guarda. E das mais ativas. Na falta de uma associação de moradores é ela quem dá voz, corpo e manifesto às queixas e ambições dos habitantes do bairro. "Quando para aqui vim, há 35 anos, nem luz elétrica havia. Passei o primeiro Natal a comer uma sopa cozinhada no fogo aceso nas traves de madeira de uma cama velha, sentada no chão com o meu falecido marido e os nossos filhos", recorda. Muita coisa mudou desde então. A eletricidade não demorou a surgir, as casas foram-se multiplicando, chegou gente aos magotes para emoldurar o complexo. Hoje, Lurdes é uma espécie de porta-voz informal do Conjunto da Guarda. Foram dela muitas das ideias para o Lugar de Partilha. "O que vamos fazer não é para estragar", foi, desde logo, avisando. Sem levantar a voz, apenas com a autoridade de alguém que ali todos respeitam como se fosse ela a guardiã natural do bairro. O sonho de Lurdes Costa é o de sempre. "Gostava que o Conjunto da Guarda se abrisse a todos. E que fôssemos respeitados, porque ainda há muitos que não nos olham com bons olhos por sermos de onde somos." Com o Lugar de Partilha sentiu um pequeno clique. "Pode ser que seja desta."
Bairro das Campinas deu o primeiro exemplo"

A primeira edição do Laboratório de Autoconstrução Lugar de Partilha decorreu no ano passado, também durante o verão. O local escolhido foi o Bairro das Campinas, em Ramalde, uma das freguesias mais desfavorecidas do Porto. Na altura, a participação ativa dos moradores superou as melhores expectativas da Casa da Arquitetura, tanta foi a adesão popular. Vieram ajudá-los arquitetos de todas as partidas do globo, até da Austrália e do Japão.

"De início, os habitantes do bairro estavam um pouco desconfiados, mas acabaram por ser excelentes. Forneceram grandes ideias e entusiasmaram-se bastante com o projeto que eles próprios idealizaram", recorda Nuno Sampaio, diretor-executivo da Casa da Arquitetura. As desconfianças iniciais foram quebradas com o decorrer dos dias. As ideias surgiram, os projetos foram ganhando forma e quando todos deram conta havia propostas "interessantes para serem executadas em conjunto". Daí até escolher o que passaria do papel à prática "foi um passo curto" e rapidamente as máquinas entraram em ação. Com arquitetos e populares em igualdade de circunstâncias na hora de pegar nas ferramentas e de dar o corpo ao manifesto. Menos de um mês foi o suficiente para ver nascer o que todos esperavam. Novos espaços públicos com que muitos moradores sonhavam, mas que nunca tinham passado de ilusões.

Foram construídas três estruturas que mudaram por completo uma área antes quase inútil e hoje participada pela comunidade das Campinas: o Bicho - um parque infantil que corre entre as árvores -, o Teatrinho - um coreto construído à base de vigas e pilares de madeira - e o Fogo - um círculo que rodeia o espaço onde tradicionalmente se acende a tradicional fogueira da noite de São João. Ainda hoje estes equipamentos estão à disposição dos moradores, que deles cuidam da manutenção com afinco. E que deles usufruem, claro. A ideia, agora, é que o que correu bem nas Campinas também corra na perfeição, este ano, no Conjunto Habitacional da Guarda. E que o Lugar de Partilha volte a ser exemplo que fica na memória e perdura no espaço físico.
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