26.7.23

Melanie quer Portugal a entrevistar avós para as homenagear como “estrelas de cinema”

João Carlos Malta (texto e fotos), in RR


A artista luso-americana tinha o projeto pessoal de conhecer melhor a história da última avó viva. Mas quando o decidiu fazer, a pandemia levou-a. Não desistiu e quis alargar a iniciativa a todas as avós de Portugal. Assim nasceu o “Vozes da Avó”, uma ideia que quer fazer nascer “uma forma de ativismo”: ouvir os mais velhos.

A artista luso-americana Melanie sentia que o tempo estava a passar rápido de mais, imparável, e queria preservar a memória da última avó viva. A ideia era entrevistá-la e registar o legado da matriarca. Mas, aos 95 anos, Maria José não conseguiu sobreviver ao período da pandemia.

Sem poder concretizar o projeto, Melanie não quis deixar morrer o conceito e, por isso, fê-lo renascer. Alargou-o e tornou-o maior. Deixou de ser de âmbito familiar e recriou-o à escala de uma cidade.

Nascia o “Vozes da Avó”, uma instalação artística que conta a história de sete avós do concelho da Amadora, expostas numa grande superfície da cidade, a que se juntam as memórias que Melanie Alves ainda conseguiu recuperar da avó Maria José. O sentimento de que estas são mulheres sem voz, silenciadas, muitas vezes esquecidas, tornou imperioso agir.

Mas a artista sente que não pode ficar por aqui: “Gostava que isto fosse não só um projeto, mas realmente um movimento.” Quer torná-lo nacional e isso passa por pôr os netos a entrevistar as avós e “homenageá-las como estrelas de cinema”.

“São, pelo menos, as estrelas das nossas vidas”, elogia. Entusiasmada, Melanie, que se especializou em instalações de grande escala, traz na cabeça a ideia de que conhecer os nossos avós e o nosso passado “é uma revolução”. Para fazer chegar essa mensagem a mais pessoas, até já criou um slogan: “O colo como ativismo.”

Isso, defende, teria de ser movido por uma mudança de olhar. “E se pensássemos que ser cool, que ser punk, que ser rebelde e irreverente é dar colo a quem nos deu colo a vida toda? Ouvir as suas histórias, dar carinho e acolher?”

Mas regressemos à Amadora e à instalação artística que pode ser vista no espaço “The Hood”, do centro comercial Ubbo. Após entrevistar as sete avós, a quem chegou através de amigos, de jornalistas e de universidades sénior, Melanie percebeu que queria ali construir “uma casa de memórias de todas as avós, na qual se junta vários pedaços das suas histórias e vários segredos”.

Do conceito à concretização, Melanie concebeu a forma. Quis criar um espaço que “fosse táctil”, “que fosse sensorial” e “em que se possa tocar, sentir, ouvir”. Fê-lo quase só com recurso a materiais já usados, que lhe foram dados pelas avós ou que foi recolhendo.

Ao olhar para o alto da instalação vemos os rostos das avós que Melanie “desenhou com tecidos”. Vemos que as caras das avós contam as histórias das suas vidas presentes e passadas. Há gatos a passear nas testas, lábios feitos de serapilheira ou macacões esvoaçantes no cabelo.

Cá em baixo, no corredor central, temos um “hall of fame” com as fotografias das mulheres. Nas laterais, os tesouros escondidos das vidas das protagonistas: o manipulo das antigas caixinhas de música que podemos girar e ouvir, ou pequenos sacos de pano, à moda antiga, em que se leem frases como “quem casa quer casa”.


"Fiz este projeto para demonstrar que todos nós temos uma história importante para ser contada e que com um mundo que anda cada vez mais rápido é importante praticarmos exercícios de parar, ouvir e escutar", Melanie Alves, artista multidisciplinar.

Há ainda duas botinhas de chuva que pertenciam à avó Conceição quando esta tinha dois anos e de que nunca se conseguiu desfazer. Estão escondidas por fitas, numa metáfora da magia infantil.

“Pedi a cada avó para me doar algo que pudesse ter memória”, explica.

Melanie, que nasceu em São José, nos EUA, e cresceu na margem Sul do Tejo, acha que estamos a perder a capacidade de parar e de ouvir. E isso reflete-se mais nos idosos, que muitas vezes são apenas vistos como velhos. Ela, pelo contrário, desde pequena que ao olhar para as pessoas imagina quem são, para onde vão, o que viveram, conta.

“O mundo gira cada vez mais rápido, estamos mais individualistas, um bocado mais narcisistas e com imensos projetos, imensas coisas a acontecer. Temos muito pouco tempo para os avós”, concretiza.

A artista gostava de ver não só “os netos de Portugal”, mas toda a gente, mesmo quem não os tenha, a parar, a ouvir e a sentir curiosidade de entrevistar avós.

Melanie sente que todas as “suas avós” – fala delas realmente como se fizessem já parte da família afetiva que criou com o projeto– tinham histórias espetaculares para contar, tanto de momentos muito difíceis, como os de mortes na família ou casamentos desafiantes e divórcios, mas também fases de "uma força inacreditável, de uma magia espetacular”.

"Sigo o meu neto no instagram. Às vezes digo-lhe que há coisas que não havia necessidade, mas ele lá sabe”, avó Maria Conceição.

Através destes testemunhos, a artista quer também ajudar a mudar a ideia que se tem enraizado na nossa sociedade e que traz acoplada uma narrativa que os séniores já interiorizaram.

“Muitos são vistos como empecilhos e alguns deles pensam que agora não podem fazer amizades, que não podem investir na sua comunidade e no bem-estar, acabando por se isolar em casa”, concretiza a artista de 39 anos.

Sobre a solidão, Melanie diz que não observou uma confissão declarada das avós, embora tenha sentido que “as próprias circunstâncias das nossas vidas tão atribuladas fazem com que os avós, mesmo estando connosco, não se sintam acompanhados”.

Ainda assim, é na relação com os netos e na ajuda que dão a criá-los, a tomar conta, que muitas encontram um desígnio. Um futuro.

Duas delas são as avós Tomásia e Maria da Conceição, amigas desde a infância, e que convivem na estrada da Falagueira, na Amadora, desde que se lembram de ser gente. São protagonistas do “Vozes da Avó”.


Quase todos os dias se encontram no pequeno minimercado que Tomásia mantém aberto naquela rua, hoje transformado num espaço de convívio para muitas vizinhas que ali passam e não desdenham dois dedos de conversa. Ou mais.

Tomásia é muito feliz no papel de avó. Tem dois netos, “uma menina com 25 anos e um menino com 12 anos”. Mas, para ser honesta, “não estamos muito em contacto”. Já com os filhos, o contacto, pelo menos telefónico, é diário.

A dona do minimercado, além da vocação de comerciante, tem uma veia de jornalista e historiadora bem vincada. Há um caderninho que guarda religiosamente na loja, onde aponta tudo, tim-tim por tim-tim, sobre momentos importantes da vida das pessoas e dos animais (como o Jaguar, o cão querido da família) que fazem parte do seu quotidiano. Ou então simples acontecimentos que ocorreram na rua. Nada lhe escapa.

A neta mais velha até dizia quando era mais nova: “A única coisa que quero herdar é esse caderno. É maravilhoso para mim”, lembra. “Olhe, reconhecia que gostava do que eu fazia”, comenta a avó Tomásia.

Maria da Conceição confirma. “Esse caderno tem tudo apontado. Quem morreu, tudo... Às vezes pergunto qualquer coisa e ela vai procurar no caderno.”

"Acho que as mulheres têm mais vontade de estar sozinhas. Acho que a mulher é muito independente. Chegadas a uma determinada idade elas querem viver no posso, quero e mando. E casadas não tinham esse privilégio, penso que será isso", avó Tomásia

Voltando à relação de avós com netos e à forma como mudou nas últimas gerações, Conceição lembra a avó com quem mais teve contacto.

“Era um general, entre aspas, havia respeito e o que a avó dizia fazia-se. Agora é tudo antipedagógico. O melhor é não dizer nada”, partilha entre sorrisos, para depois acrescentar: “Embora eu, quando estou sozinha com eles, diga alguma coisa, sim.”

Mas o que quer isso dizer? “Antes quando se dizia não era não. Agora diz-se não e os meus filhos dizem: ‘Deixe lá a criança’.” E o que acha disso a avó Conceição? “Mal.”

A conversa avança para a questão da solidão. Conceição não se revê no retrato que muitos fazem dos mais velhos. “Eu gosto da solidão. De poder estar sozinha, de fazer o que me apetece”, diz.

Tomásia anui. “Também não me importo nada. Quando o meu marido morreu há quatro anos, os meus filhos queriam que não ficasse sozinha, mas eu gosto de estar em casa sozinha”, concretiza.

Como não poderia deixar de ser para quem patologicamente aponta tudo o que vê e lhe interessa, Tomásia sabe dizer quantas pessoas moram sozinhas na estrada da Falagueira. “Trinta e tal mulheres e cinco homens. Já viu a diferença?”, questiona.

“Acho que as mulheres têm mais vontade de estar sozinhas. Acho que a mulher é muito independente. Chegadas a uma determinada idade elas querem viver no 'posso, quero e mando'. E casadas não tinham esse privilégio, penso que será isso.”

Em relação a um possível "gap geracional", Conceição diz que não os sente. Até segue o neto no Instagram. “Às veze digo-lhe que há coisas que não havia necessidade, mas ele lá sabe”.

Tem orgulho nos feitos do neto, que a quer por perto nos momentos mais marcantes. “Ele agora tem uma banda e pergunta se quando der um concerto eu vou ver. E eu digo: ‘Sou a primeira da primeira fila’.”