Martim Avillez Figueiredo, in Expresso
Cavaco e Sócrates estragaram o Natal: falam do que não sabem. Dois americanos revelam como qualquer dos dois faz pouca falta à pobreza.
Durante a semana, e na véspera de mais um Natal, descobriu-se que Sócrates e Cavaco se pegaram pela mais terrível das fatalidades sociais - a pobreza. Pouco importa aqui se algum tem razão - o que interessa é que ambos olham a pobreza como um problema do Estado. Melhor dito: como um problema que se resolve pela atenção que lhe dedicam, eles representantes do Estado. Que absurdo.
Herbert Gintis, um economista quase desconhecido do grande público (e dos poucos que cruzam economia e generosidade nos seus estudos), defendeu em 2002 que quanto mais uma sociedade se expõe às virtudes e deficiências do mercado aberto mais os seus membros revelam disponibilidade para a caridade. Pausa: Gintis não é um desses liberais americanos que defendem o mercado contra todas as evidências. Pelo contrário: autointitula-se ex-marxista e Martin Luther King pedia-lhe documentos para sustentar as suas ideias de combate à desigualdade.
Na verdade, este professor da Universidade do Massachusetts não conclui que o Estado é nocivo - nem podia. O que ele diz é que os mercados colocam estranhos em contacto e que, dessa interação livre, nascem quase sempre benefícios mútuos. Esses benefícios, por sua vez, desenvolvem nas pessoas um sentido de preocupação com outros além da família e dos amigos mais próximos. Quanto mais livre e independente é essa interação, quanto mais habituados a lidar com gente fora de círculos sociais controlados, maior é a generosidade.
Mas Theodore Roosevelt Malloch diz que sim, que a presença de um Estado forte diminui a disponibilidade para dar. Theodore, que Margaret Thatcher apelidou um dia de "sherpa global", acusa governos e governantes (no livro "Being Generous", 2009) de serem forretas com a caridade porque o dinheiro não lhes pertence. E ilustra: os franceses dão 0,14% do seu PIB, os alemães 0,26%, os britânicos 0,73% e os americanos 1,7% do PIB. Ou seja, os franceses dão 12 vezes menos do que os americanos. E os portugueses?
Entre 2005 e 2007 doaram (via IRS) 3,5 milhões de euros para a caridade, cerca de 0,002% do PIB, e outros 7 milhões por vias diretas - tudo somado, 0,006% da riqueza. Ou trinta mil vezes menos do que os americanos. Sócrates e Cavaco estão preocupados com a pobreza - se Gintis estiver certo, faziam melhor em afastar-se dela.
Talvez a conclusão seja radical, sobretudo para alguém que acredita e defende o papel redistributivo do Estado. Sucede que isso não impede de tentar perceber o que a demagogia política esquece: as pessoas respondem a incentivos e quase nunca o fazem da forma como os políticos esperam. Os infantários de Haifa, Israel, mostram bem como isto acontece: num país de Estado tão forte, a lei resolveu punir com multas os pais que se atrasavam a apanhar os filhos ao final do dia. Os atrasos pioraram - os pais passaram a chegar duas vezes mais tarde. A razão? O atraso passou a ser qualquer coisa que podiam tranquilamente comprar - quando antes, pelo contrário, carregavam o peso moral de deixar os filhos à espera ("Journal of Legal Studies", vol. 29, 2000). Isto para dizer: Cavaco e Sócrates podem bem digladiar-se pelo título de campeão da pobreza que os dois ficam mal na fotografia.
Políticos messiânicos, que chamam a si em exclusivo a resolução de problemas como a pobreza, são o oposto do Pai Natal: em vez de esperança e espírito de partilha, espalham desconfiança e egoísmo entre os homens.