Andreia Sanches, in Jornal Público
Já não há sempre polícia na rua, como nos dias que se seguiram ao tiroteio que chocou o país. Mas têm sido feitas várias detenções
Na avenida principal o comércio está quase todo fechado e há pouca gente na rua. Muitas lojas dos famosos prédios amarelos que o país se habituou a ver na televisão, no Verão passado, depois das cenas de tiroteio no bairro da Quinta da Fonte, em Loures, não abrem as portas há anos. Junto a um campo de jogos deserto, que espera por obras, Vítor, um rapaz cigano, franzino, que não vai à escola, canta eufórico, aos pulos, com auscultadores nos ouvidos: "Parapapapapapa". É o refrão do Rap das armas, música brasileira que fala das favelas, banda sonora do filme Tropa de Elite.
Mais à frente, uma mulher fará ao final do dia um fumeiro ao ar livre, com lenha a arder, chouriços pendurados, panela grande a fervilhar. Na rua. No centro das actividades de tempos livres, gerido pela Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, adolescentes de diferentes etnias ensaiam para o campeonato de matraquilhos. É aqui que cerca de 50 tomam o pequeno-almoço antes de ir para a escola. Todos os dias. Também almoçam, lancham e fazem os trabalhos de casa.
Às quintas, sextas e sábados há treino de futsal na escola. "Existe aqui um talento para o futsal como não há igual", garante o entusiasta Délcio Martins, de 22 anos, um dos treinadores, dirigente da Associação Jovens da Apelação (AJA). A normalidade regressou à Quinta da Fonte? Há quem vá mais longe. Há quem diga que o bairro está a mudar.
Na memória de todos ainda estão os acontecimentos dos dias 10 e 11 de Julho. O que começou por ser uma rixa acabou com uma violenta troca de tiros que provocou nove feridos. Alguém filmou a cena digna de um filme de cowboys e as televisões passaram--na dias a fio. O episódio, que terá tido origem numa discussão entre marido e mulher de etnia cigana, foi lido como um conflito entre ciganos (cerca de 20 por cento da população do bairro) e pessoas de origem africana (a maioria).
"Mas não é verdade que haja um conflito étnico na Quinta da Fonte", assegura Mauro Pereira, de 22 anos, animador na Escola Básica da Apelação, na parte da manhã, mediador no centro cultural, na parte da tarde, cantor de hip-
-hop, nos tempos livres - quer ser advogado.
Já há associação de moradores
Ele próprio vive num prédio com "ciganos e não ciganos", sem problemas. "Naqueles dias até houve africanos a juntarem-se para proteger as casas dos ciganos", diz também Aida Marrano, responsável pelo centro de tempos livres - um dos projectos no bairro com o financiamento do Progride, um programa público de combate à pobreza.
Um dos principais problemas da Quinta da Fonte, dizem muitos, passa por alguns grupos de jovens entre os 14 e os 20 anos que não fazem nada, bebem muito, juntam--se à noite, cometem assaltos na zona, espalham a insegurança. Não tem a ver com etnias.
Certo é que logo a seguir à cena de tiros, várias famílias ciganas (os chefes de família de algumas eram os mesmos homens que as imagens das televisões tinham mostrado a empunhar pistolas) puseram-se em fuga, acamparam junto à Câmara Municipal de Loures, exigiram novas casas, noutro local, porque diziam que eram perseguidas no bairro.
Alguns apartamentos foram vandalizados por esses dias. E as famílias apontaram o dedo a jovens de origem africana. A câmara prometeu obras, mas sempre disse que não daria novas casas a ninguém. E não deu.
José Garcia, de 63 anos, foi um dos que chegaram a sair do bairro. E um dos que entretanto regressaram. Integra hoje a associação de moradores que está a ser constituída - uma das novidades pós-tiroteio. "A ideia é que a comissão tenha cabo-
-verdianos, angolanos, ciganos, diferentes sensibilidades", explica. Mas não está particularmente entusiasmado.
Recebe o PÚBLICO na sua casa, com uma Bíblia na mão, numa sala quase vazia - a mulher morreu e a tradição cigana manda que o luto passe por distribuir pelos filhos a mobília, as loiças, as mantas...
Apesar de achar "que as coisas no bairro estão um bocadinho melhores", se tivesse outra alternativa não estava a morar na Quinta da Fonte. "Ainda no outro dia fui falar com um rapaz que tinha provocado o meu neto que estava a andar na bicicleta. Disse-me que lhe ia partir a boca, dei-lhe um estalo... o senhor do supermercado veio separar-nos."
Também ele acha que não há conflitos étnicos, como diz Mauro? "Há gente boa e má em todos os grupos."
Pelas suas contas, 15 famílias ciganas não voltaram até agora à Quinta da Fonte. A filha é uma delas. O homem que no Verão era o porta-voz da comunidade na luta por novas casas, José Fernandes, também não regressou. "Alguns alugaram casas noutros sítios, ou foram para casas de familiares. Outros estão a tentar comprar casa noutros locais ao abrigo do PER Famílias", um programa especial que prevê que a autarquia e o Instituto de Habitação comparticipem a compra de imóveis, explica. "Mas o PER Famílias foi areia que mandaram para os olhos das pessoas. Porque muitas não têm IRS suficiente para conseguir um empréstimo do banco e pagar a sua parte."
O patriarca não tem dúvidas: "Se metade do que foi prometido em termos de segurança fosse cumprido havia mais gente a regressar". E mostra um exemplar do Contrato Local de Segurança, assinado em Setembro pelo Ministério da Administração Interna e a Câmara de Loures. Diz que até agora não se viu resultados desse papel. "Promessas..."
Assaltos diminuíram
Logo depois dos tiros, a presença da polícia na Quinta da Fonte era ostensiva. Havia agentes a pé e de carro, permanentemente. Com o tempo, as fardas foram desaparecendo - o PÚBLICO não viu nenhum agente fardado no dia em que visitou o bairro. Em Novembro, a situação degradou-se. "Houve vários assaltos, as pessoas estavam de novo assustadas e tinham medo de sair à rua", conta Aida Marrano. Em Dezembro, contudo, terá havido alguma intervenção, diz, e alguns jovens problemáticos deixaram de ser vistos. "O bairro está melhor."
Fonte da PSP garante que nos últimos meses houve várias detenções (sobretudo por condução sob o efeito de álcool, posse e tráfico de drogas e armas). E que há vários processos de investigação em curso, ainda na sequência dos tiroteios. Considera mesmo que o bairro está controlado. Estará?
A Quinta da Fonte está longe de se parecer a favela daquele rap brasileiro que Vítor canta. Foi construída num local elevado da freguesia da Apelação, algo isolado, por duas cooperativas de habitação que entretanto tiveram problemas financeiros. Em meados dos anos 90, a Câmara de Loures utilizou-a para realojar várias pessoas que viviam em barracas em zonas que viriam a ser usadas para a construção dos acessos à Expo '98. Nos últimos anos, o clima de insegurança foi aumentando.
O bairro passou a estar conotado com o tráfico de armas e um estudo de 2007 do Observatório da Imigração classificava-o como um "barril de pólvora".
"Quando cheguei aqui, há quatro anos, quis que os alunos fizessem uma festa", conta Félix Bolaño, presidente do agrupamento de escolas da Apelação. "Mas soube que um grupo de jovens do bairro vinha cá acima partir a festa toda. Telefonei à polícia e disse: 'Meus senhores, preciso de dar esta festa porque os meus alunos precisam de celebrar e ter alegrias'. Colocaram aqui 30 polícias de intervenção, com cassetetes, escudos, capacetes... a festa foi feita com os tais jovens lá em baixo a olharem cá para cima."
Nos últimos dois anos, contudo, desenvolveram-se vários projectos que deram resultados: "Agora mesmo, foi feita uma festa na escola organizada pelos jovens, não teve a presença de um único adulto. Correu lindamente".
Os "acontecimentos pontuais" do Verão podiam ter estragado tudo. "Mas o bairro já tem a capacidade de responder." E mesmo as crianças que depois dos tiros tinham deixado de frequentar a escola começaram a regressar. "Ainda esta semana, a mãe de uma aluna cigana perguntou se a filha podia voltar." Mais: "Começa a haver um sentimento de pertença ao bairro", diz o professor. Mesmo os delinquentes que tanto contribuem para a má fama do sítio têm sido chamados a participar em actividades. "À noite já não assaltam tanto dentro do bairro."
Aida está cheia de esperança. E espera que as lojas que foram fechando por causa da insegurança voltem a abrir. "O bairro precisa de vida." Garcia está mais apreensivo. Já Mauro está cheio de energia para continuar a mediar conflitos. "Seis meses depois, está-se no bom caminho", garante Félix Bolaño.
2500
É o número de habitantes da Quinta da Fonte; 20 por cento são pessoas que compraram casas às cooperativas que começaram por construir o bairro; 80 por cento foram ali realojadas depois de 1996


