17.11.14

"Crónica de um tempo" em que Portugal ficou mais pobreza

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Mais do que uma exposição visual, O Tempo e o Modo pretende ser uma reflexão, em imagens e palavras, sobre a condição de empobrecimento da sociedade portuguesa. Para ver no Pavilhão 31 do Hospital Júlio de Matos, a partir de 16 de Janeiro de 2015.

O conceito de pobreza de hoje não é o mesmo de há 100 ou 40 anos atrás em Portugal. É um conceito em constante mudança e relativização, diz Emília Tavares, conservadora e curadora para a área da Fotografia e Novos Media no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa.

O tema é mais do que "pertinente", completa o artista plástico e comissário de exposições Paulo Mendes sobre um tempo – o de hoje – de “uma preponderância dos valores económicos sobre os valores mais humanistas e do capital que põe em questão o Estado Social e as conquistas do 25 de Abril”. E isso “não muito devido à crise económica”, ao contrário da imagem transmitida às pessoas, mas mais por uma questão ideológica, defende.

Também por isso, e porque não deve fechar-se os olhos a uma “responsabilidade” de artistas e agentes culturais “sobre a sociedade em que vivem”, Emília Tavares e Paulo Mendes criaram o projecto O Tempo e o Modo – Para um Retrato da Pobreza em Portugal, que foi apresentado nesta sexta-feira em Lisboa.

A exposição abre portas no Pavilhão 31 do Hospital Júlio de Matos entre 16 de Janeiro e 27 de Fevereiro de 2015. A ideia, que junta artistas de várias gerações e investigadores, tomou forma com o financiamento aprovado pela Direcção-Geral das Artes e Fundação Calouste Gulbenkian mas a ideia surgiu há mais de um ano.

“Teve a ver com a circunstância social e política em Portugal”, explica ao PÚBLICO Emília Tavares, que sempre se interessou pela representação da pobreza em si mesmo e numa perspectiva histórica. Desde o século XIX com o interesse de fotógrafos, entre eles aristocratas, sobre a pessoa pobre e o mundo rural, até hoje, em que “começaram a aparecer muitos cartazes e propaganda de partidos políticos” em torno dessa condição de empobrecimento da sociedade, descreve. “A etnografia actual começou a ser mais clara em relação a esta questão”, continua Emília Tavares. “Este discurso deixa de ser tão verbal e começa a ser mais visual.”

Mudanças bruscas
“Abruptamente”, lê-se no texto de apresentação da exposição, depois das “consequências brutais” que teve a crise do sistema financeiro internacional nalgumas economias europeias, como a de Portugal, assistiu-se a “um retrocesso da qualidade de vida sem igual, uma perda inimaginável há alguns anos atrás”.

Uma mudança que encontra uma semelhante linha de discurso. Não há uma verdadeira memória histórica das representações da pobreza (durante o Estado Novo, prevalecia a ideia de que não havia pobreza, mas realizaram-se as marchas da fome, lembra Paulo Mendes). Contudo, expressões “recorrentes” e alguns discursos políticos de hoje são “demasiado próximos dos discursos do Estado Novo e de Salazar”. “Discursos que estranhamente são quase reproduzidos pelos responsáveis políticos de hoje", nota o artista.

"Os problemas económicos são cíclicos. E os discursos tendem a ir para esse lado, numa complacência miserabilista em vez de atacar o problema”, critica. Para Paulo Mendes, este projecto surge como “uma sequência lógica” do trabalho que tem vindo a desenvolver nos últimos 20 anos – “um trabalho político e de crítica social”.

Numa forma testemunhal
A ideia não é fazer uma exposição de artes plásticas ou fotografia. Antes construir uma reflexão sobre o tema da pobreza no século XX até à contemporaneidade; perceber de que forma os diversos entendimentos da pobreza, sob o ponto de vista do poder político, emergiram em diferentes épocas; e ter essa visão histórica, na primeira pessoa, sob uma forma “testemunhal”. Aos artistas, foi pedido uma obra específica para esta temática. A lista é vasta e inclui nomes de diferentes gerações: Hugo Canoilas, Gustavo Sumpta, João Tabarra, Pedro Barateiro, Margarida Correia, Maria Trabulo, Renato Ferrão e Nuno Ramalho.

A exposição vai buscar o nome ao título da revista, publicada pela primeira vez nos anos 1960, O Tempo e o Modo, por ser esta uma publicação com “um carácter muito progressista, e de crítica de reflexão”, explica Emília Tavares.

“É isto que a exposição pretende ser”, acrescenta. Um projecto que “permita olhar para as coisas não de uma forma muito abstracta”, ancorada apenas na torrente de índices e números publicados sobre a pobreza, mas reflectindo aquilo que existe no terreno. E revelar “rostos” e “realidades”, dar matéria às pessoas para que façam a sua própria reflexão, e mostrar “como todos estes conceitos de pobreza e exclusão são por vezes parte de “um jogo de linguagem” e de “uma manipulação da realidade”.

Visual e verbal
“A relação entre a imagem e a palavra é muito relevante neste projecto”, acrescenta Paulo Mendes. “Os artistas foram convidados a realizar novas obras, artefactos contemporâneos, que serão acompanhados por uma publicação a ser lançada no final da exposição." A publicação reúne textos e material documental – como capas de revistas, jornais de várias épocas, excertos de textos – que também será exposto. A ideia, descreve Paulo Mendes, é “realizar obras que sejam uma reflexão mas sirvam também como uma crónica do tempo que vivemos”.

A publicação terá contributos de vários autores, sob a coordenação do historiador e investigador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Nova de Lisboa, José Neves. A antropóloga Rita Sá Marques e o sociólogo Frederico Agóas também são investigadores do projecto que pretende acentuar “essa relação muito forte entre os dois caminhos” – o visual e o verbal.