23.7.15

Esta Europa inquieta Sampaio. "Não pode haver um pensamento único"

por Raquel Abecasis e Catarina Santos (vídeo), in RR

Jorge Sampaio recebe sexta-feira o Prémio Nelson Mandela. Em entrevista à Renascença, o ex-Presidente diz que o tratamento dado à Grécia foi um "terramoto" e que falta democracia no processo decisório na UE.

O antigo Presidente da República Jorge Sampaio critica os acontecimentos recentes na União Europeia e o tratamento dado à Grécia – um verdadeiro "terramoto" na construção europeia.

Sampaio diz que a Europa está "numa encruzilhada" e que falta democracia no processo decisório. "Há pilares na construção do euro que ficaram por construir", diz em entrevista à Renascença. "São também desafios de guerra e paz a prazo."

Sampaio recebe esta sexta-feira, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Prémio Nelson Mandela, atribuído pela primeira vez pela ONU (também Helena Ndume, uma oftalmologista da Namíbia, foi galardoada com este galardão instituído para reconhecer a contribuição em prol da humanidade).

"Este prémio, no fundo, é um pouco uma vida", afirma. "Um Prémio Carreira" para uma vida a aproximar-nos do outro.

O que significa este prémio para si?
Primeiro, uma grande honra – é a primeira vez que é atribuído. E depois o nome, o Prémio Nelson Mandela, atribuível de cinco em cinco anos. Ficamos de alguma maneira ligados a essa grande personalidade que foi tão decisiva em matéria de reconciliação de transições para a democracia e a liberdade. É uma satisfação pessoal, também tenho direito a isso e é, no fundo, uma panorâmica sobre uma vida dedicada a variadas coisas que são citadas, desde as coisas estudantis…

E a sua acção como Presidente... É referida o seu papel na questão de Timor e na transição de Macau.
Não fui participante único, mas dei a minha luta nessas duas matérias. Timor foi uma preocupação constante durante toda a minha vida adulta. E depois as causas mais apaixonantes, do ponto de vista pessoal, porque aquelas eram responsabilidades oficiais e públicas (eu levo as coisas sempre a sério, é sabido, às vezes até demasiado a sério), aquelas causas que as Nações Unidas me pediram para subscrever…

Nomeadamente a Aliança das Civilizações, da qual foi alto representante, e o combate à tuberculose.
O senhor Kofi Annan, um mês depois de eu sair de Belém, pergunta-me se eu quero ser enviado especial para a tuberculose. Disse que sim porque sempre tive uma atenção muito grande pela saúde pública. A tuberculose era uma doença esquecida. As pessoas que tinham responsabilidade de redigir os textos para o G7 [grupo dos sete países mais ricos do mundo] da altura não sabiam bem o que era a tuberculose, que matava dois milhões de pessoa por ano. Foi um trabalho que me levou a grande parte do mundo, um mundo em que se visita a pobreza e se vê o sofrimento, a doença do esquecimento, a doença da discriminação.

Um ano depois, fui convidado por Kofi Annan para ser alto representante para a Aliança das Civilizações, que é uma iniciativa que as Nações Unidas tomaram e que se preocupou, com peritos de vários continentes e confissões, com o caminho que pode haver para este diálogo entre culturas.

A Aliança das Civilizações foi uma designação muito criticada na altura, mas no fundo significava aquilo que hoje parece evidente, que é cada vez mais necessário…

E que não existe...
Só pela educação se chega a compreender a outra fé. É algo de extremamente difícil, como se está a ver agora.

Uma das suas iniciativas mais recentes é o programa que põe estudantes sírios em universidades portuguesas e europeias. É uma continuação do trabalho da Aliança das Civilizações?
Começou quando acabou o [projecto] das Nações Unidas, em 2013. Quis acabar o mandato da Aliança das Civilizações. Nasceu esta ideia: como é que se faz o auxílio universitário de emergência a estudantes carenciados? O auxílio humanitário é muito localizado e percebe-se na instrução primária e às vezes secundária, mas há uma geração de universitários que está completamente bloqueada – universidades destruídas, professores e alunos em fuga.

Costumo dizer que se fosse rico teria cá mil estudantes em Portugal – e não só em Portugal. [Os alunos sírios] Têm tido muito boas notas, fizeram estágios em empresas portuguesas conhecidas, este ano vão fazer outra vez. Muitos já falam português. Têm-me dado uma enorme satisfação e uma enorme preocupação porque continuo a ser o mesmo que se preocupa. É tal maneira terrível o que se passa na Síria, são quatro milhões de refugiados e "displaced people", [deslocados] dentro do seu próprio país.

É preciso criar um plano colectivo. Na semana passada estive numa reunião na Universidade de York, na Grã-Bretanha, para discutir uma coisa: é preciso pôr na agenda o auxílio universitário de emergência. Não é só o outro auxílio escolar…

Porque são essas pessoas que reconstruirão os países?
Não se pode perder uma geração, essas pessoas são as que podem ajudar a reconstruir o seu país nas suas várias dimensões. Eles integraram-se bem, Portugal tem jeito para isto. Tem sido uma coisa que vai completando o conjunto. Este prémio, no fundo, é um pouco uma vida. "Mutatis mutandis" para o cinema, é um Prémio Carreira.



Sabia que o seu trabalho tinha esta visibilidade? Imagino que no mundo não faltem candidatos a um prémio desta natureza.
Segundo julgo saber, houve umas centenas de candidatos. Fiquei contente porque significa que tem mais visibilidade aquilo que eu fiz, os amigos com que me cruzei, as diferenças culturais que foram ultrapassadas, a capacidade de entrosar com várias religiões (ou sem religiões), confrontações diversas, algumas sérias. E isso teve reconhecimento exterior.

Desculpe provocá-lo, mas isso são tarefas que nos tempos que correm poderíamos designar como utópicas. A ponte entre civilizações, não desistir dos refugiados, tentar fazer transições pacíficas parecem hoje coisas impossíveis.
Os meios comunicacionais, que nos colocam a perceber o que se passa no país A ou B no minuto seguinte, tornam-nos a todos potenciais actores. Há sempre qualquer coisa que é possível [fazer], desde dizer a uma família síria "Tem aqui uma casa, vamos integrá-la" ou outra coisa qualquer – na saúde, pela paz, pela reconciliação, no nosso bairro, nas nossas comunidades. Esse desinteresse, às vezes, é mais teórico do que prático. Não podemos desistir.

As pessoas podem ajudar a mudar as coisas.
Podem ajudar. Influenciar as opiniões públicas, influenciar a comunicação social no bom sentido, fazê-la mostrar os horrores que estão a acontecer

O facto de estes cidadãos sírios estarem em Portugal ajuda a que algumas pessoas não sintam o problema como distante.
Pelo menos estamos a dar condições de subida, do ponto de vista de preparação e de cultura, a um conjunto de cidadãos que estariam a monte ou clandestinos. Estão integrados nas nossas melhores escolas, estão a estudar, fazem-se semanas sírias para os estudantes.

O Erasmus é das riquezas da UE a que a gente se pode agarrar, é das mais vivas, não há muitas outras manifestações de cidadania europeia. Eu sei e penso que a grande questão é o desconhecimento da história do outro. Tivemos essa experiência nos campos de férias da Aliança das Civilizações, vieram pessoas de 60 países – iranianos, judeus, pessoas de todos os sítios. E foi uma maravilha de uma semana. Há uma coisa fundamental que nos une: a condição humana. Temos que afastar as coisas que nos separam.

Falava do Erasmus como uma grande riqueza da civilização europeia, mas há quem diga que essa civilização está em risco com os últimos acontecimentos.
Estamos num momento de grande interrogação sobre o futuro, não vale a pena ter ilusões.

Partilha da ideia de que no fim-de-semana do acordo com a Grécia houve uma mudança radical no caminho europeu?
Houve certamente um terramoto. Como é que se reconstrói isto? Eu sou um europeísta convicto, acho que um país como o nosso tem que estar integrado o mais possível no centro das decisões europeias e não pode ser marginalizado. Está todo um edifício por completar no contexto do euro, no contexto do processo decisório, na sua – atrevo-me a dizer – democratização. Os povos não participam como poderiam e deveriam.

Há uma encruzilhada em que estamos. São também desafios de guerra e paz a prazo e por isso temos que fazer um esforço muito grande para fazer com que as pessoas possam acreditar que a construção europeia lhes traz qualquer coisa. Não podemos perder a perspectiva do conjunto e sobretudo países como o nosso têm que estar inseridos nisso. Depois, há outro lado sério: mais integração, mais crescimento, como é que é a relação entre uma coisa e outra, como é que é a relação com as contas públicas... Há pilares na construção do euro que ficaram por construir. Têm que ser completados rapidamente.

Colocou-se em causa o euro?
Foi muito duro. Não quero comentar o conteúdo, mas acho que foi uma coisa que não era previsível que pudesse acontecer desta maneira. Surpreendeu-me. O espírito fundacional [da União Europeia] precisa de ser renovado.

Se nos viramos para dentro, cada um por si – porque eu sou contra isto, tu és contra aquilo – isto tende a desaparecer. Não pode ser, isso para nós fará bastante falta. Sou a favor de instituições fortes, democráticas que possam ser aceites pelas opiniões públicas e que tragam esperança aos portugueses, aos espanhóis, aos italianos. Esta divisão Norte-Sul parece-me terrível, com consequências a prazo muitíssimo difíceis. Não podemos acreditar em duas ou três Europas.

Agora, com os nacionalismos, os muros que nascem na Hungria... Por muito menos, houve a suspensão da Áustria quando foi o senhor [Jörg] Haider [de extrema-direita] que ganhou as eleições. Compare com o muro de que ninguém fala. Nessa altura, condenou-se o senhor Haider. Hoje não: o senhor [Viktor] Orbán faz o seu muro.

Falta uma grande figura europeia capaz de congregar?
Acho que isto não é só figuras, é também pensamentos dominantes. Não pode haver um pensamento único. Do lado em que eu me incluo – antes dizia-se socialismo, agora diz-se social-democracia – essa renovação está por fazer. Mas dentro de um clima de construção porque há sempre várias soluções para um problema.