9.5.16

“Controlo abusivo” do Estado impede organizações de inovar no combate à pobreza

Natália Faria, in Público on-line

Entidades que operam no chamado “terceiro sector” queixam-se de intromissão excessiva do Estado e sustentam que “cantinas sociais” criam vícios e passividade. Estudo, que aponta o risco de a acção social ficar nas mãos de privados, é apresentado nesta segunda-feira.

“É de questionar se esta aposta particular em apoio alimentar não veio desvirtuar a atenção das organizações para uma medida que devia ser de emergência e que acabou por ser mais uma valência da instituição”, aponta o estudo

Os acordos de cooperação que o Estado estabelece com as organizações do chamado “terceiro sector” — que assegura a grande maioria das respostas sociais, como creches, lares, cuidados continuados ou equipamentos com pessoas com deficiência — cristalizam o funcionamento daquelas instituições e contribuem para o seu conservadorismo. “Em creches, ATL’s ou lares de idosos não há margem para se ir além das respostas já contratualizadas, o que leva a que as instituições fiquem limitadas às soluções standardizadas e sem capacidade de respostas adequada às novas realidades da pobreza”, critica o presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal (EAPN), o padre Agostinho Jardim Moreira.

“Esta forma de trabalhar não facilita a mobilidade nem a inovação na resposta aos problemas da pobreza em Portugal”, diz. “Em vez dos acordos de cooperação típicos, isto é, formatados”, que se destinam a financiar respostas muito específicas, um serviço de creche, ou lugar num centro de dia, por exemplo —, “o Estado devia estabelecer acordos atípicos com margem de inovação” nas respostas prestadas.

O presidente da EAPN recupera assim um dos alertas presentes no estudo O Impacto da Crise no Terceiro Sector que é apresentado nesta segunda-feira, em Santarém, e que procura medir o impacto da crise nas entidades que operam na área da acção social.

Cantinas criam “vícios”

O “excessivo controlo do Estado” do funcionamento destas instituições é outras das críticas presentes no relatório, que resulta da análise aos inquéritos feitos no ano passado, ou seja, um ano depois da saída da troika do país, a 341 organizações — de lares, a creches e jardins-de-infância, passando pela AMI, Banco Alimentar Contra a Fome, Cruz Vermelha, Fundação Montepio e Cáritas.

“Há um controlo abusivo e uma intromissão e uma fiscalização tais que leva a um triste sentimento de que, aos olhos do Estado, as instituições são sempre perversas e trabalham de má-fé”, acusa Jardim Moreira.

Há um controlo abusivo e uma intromissão e uma fiscalização tais que leva a um triste sentimento de que, aos olhos do Estado, as instituições são sempre perversas e trabalham de má-fé.

Reconhecendo a necessidade de controlo da aplicação dos dinheiros públicos, o presidente da EAPN aponta “pormenores que roçam o exagero”, na sua opinião: “As técnicas da Segurança Social que vão às instituições chegam a pedir para verificar as fichas de inscrição. E se, no decurso de um acordo, a instituição tem necessidade de deslocar uma técnica para outras funções que entretanto se tornaram necessárias, não consegue. Há uma excessiva fixidez de formulário que transforma as direcções em meras executoras das directrizes do Estado.”

A manutenção das “cantinas sociais”, criadas em 2012 por IPSS e misericórdias para garantir refeições aos mais pobres, a pedido do anterior Executivo, constitui outro dos motivos de preocupação. “É de questionar se esta aposta particular em apoio alimentar não veio desvirtuar a atenção das organizações para uma medida que devia ser de emergência e que acabou por ser mais uma valência da instituição”, aponta o relatório, onde perpassam críticas ao carácter “assistencialista” das cantinas.

O padre Jardim Moreira é mais contundente. E aconselha o actual Governo – que prolongou por mais seis meses o financiamento das 840 cantinas sociais existentes para ter tempo de avaliar o seu funcionamento – a repensar todo o modelo.

“Devem pensar se não estamos aqui a criar um vício e uma passividade nas pessoas, em vez de as ajudar na procura de uma solução para a vida”, aponta, sustentando que “as cantinas custaram mais dinheiro do que se os apoios fossem dados às famílias por via do Rendimento Social de Inserção”. Com uma agravante: “Há uma certa humilhação nisto de ter de ir comer ou de ir buscar a comida a uma cantina. E não é assim que se desperta a responsabilidade activa e a participação das pessoas.”

Um terço da IPSS perdem receitas

Quando o Programa de Emergência Social foi apresentado, no final de 2011, para “almofadar” o impacto social da crise, previa-se uma dotação de 50 milhões de euros para a criação de 942 cantinas sociais (existiam já 62). Esta medida surgiu em paralelo com um controlo muito mais apertado no acesso a prestações pecuniárias como o Rendimento Social de Inserção (RSI), o abono de família e o complemento solidário para idosos, cujos montantes diminuíram substancialmente. E as críticas ao carácter assistencialista das novas políticas de acção social perduram desde então.

Das 341 organizações inquiridas, 34,9% declararam um decréscimo acentuado no seu rendimento global. O estrangulamento financeiro deveu-se tanto à redução dos subsídios públicos como da comparticipação dos utentes.

Só no RSI, “verificou-se entre 2010 e 2013 uma redução de mais de 150 mil pessoas beneficiárias da medida”, exemplifica o relatório, para reiterar que tal redução, que se sentiu também nas prestações de desemprego e sociais de desemprego, conviveram com um agravamento generalizado da pobreza e da exclusão social.

A crise e as correspondentes medidas austeritárias, que fizeram disparar o desemprego e espalharam a pobreza a sectores até então imunes a ela, levaram a uma procura crescente de protecção social, numa altura em que as entidades que a garantem, a partir dos acordos de cooperação com o Estado, viram reduzidas as suas fontes de financiamento. Das 341 organizações inquiridas, 34,9% declararam um decréscimo acentuado no seu rendimento global.

O estrangulamento financeiro deveu-se tanto à redução dos subsídios públicos como da comparticipação dos utentes, segundo o relatório. Que aponta para a criação de um fundo de estabilidade que permita às organizações sobreviver a novos momentos de crise.

"Uma lógica de privatização da acção social”

Isto numa altura em que se assiste ao “contínuo crescimento do número de entidades lucrativas” que prestam serviços sociais. São já 30,5% das entidades proprietárias de equipamentos sociais, contabiliza o estudo, recuperando dados da Carta Social relativos a 31 de Dezembro de 2014.

A questão é que os equipamentos lucrativos da rede social cresceram 85% entre 2000 e 2010, contra um crescimento de 29% no caso das entidades não lucrativas, o que “contribui para a crescente afirmação do sector lucrativo enquanto provedor dos serviços sociais”.

“No Porto, a maior parte das respostas já são de cariz lucrativo”, segundo o padre Jardim Moreira, apontando os riscos de os mais pobres ficarem excluídos dos equipamentos sociais ou confinados a respostas de qualidade inferior. “As pessoas querem a sua comodidade, o seu quarto privativo [nos lares] e o estrangulamento financeiro leva a que as instituições não lucrativas não tenham condições para proporcionar essa qualidade. Isto leva a que, tal como nos hospitais, os privados sejam para os ricos e os públicos para os pobres.”

Se nada mudar, o país caminha “para uma lógica de privatização da acção social”, acusa ainda o presidente da EAPN. “Como não há dinheiro na Segurança Social, vai-se empurrando o problema com a barriga e deixando que tudo vá parar aos privados”, acrescenta, para concluir que a solução poderá passar por uma “discriminação positiva” dos equipamentos não lucrativos. Sob pena de muitas das “instituições mais débeis terem de fechar as portas”.