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26.7.23

A Economia Social e o nosso futuro

José Pedro Gomes, opinião, in Público

Os desafios para a Economia Social, nomeadamente no interior do país, são enormes. O Estado tem que demonstrar que sabe isso, com planeamento e acções concretas.

A Economia Social desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Mas, afinal, o que é a Economia Social? Não é fácil conceptualizar ou delimitar.

A Economia Social, sendo apontada por alguns como uma designação controversa por aliar os termos economia e social, constitui um objecto de estudo cada vez mais abordado, sendo considerada sob designações muito diversificadas, não apenas em diferentes países, mas também, num mesmo país, tendo a União Europeia adoptado a designação de Economia Social.

No entanto, de acordo com o professor Rui Namorado (2009), este sector é constituído por “um conjunto vasto de organizações e de práticas que está longe de estar estabilizado e de ter um âmbito bem definido”, concorrendo entre si diversas expressões como economia social, economia solidária, terceiro sector, organizações não-lucrativas e outras, pelo que o debate é contínuo, não existindo de forma definitiva uma expressão unívoca.


Ainda segundo Rui Namorado, para o caso português, faz todo o sentido que, na actual conjuntura, se encare a economia solidária como uma expressão que, no essencial, é sinónima da economia social. As organizações que, em concreto, devem ser consideradas como fazendo parte da economia social são as cooperativas, mutualidades, fundações, misericórdias e diversos tipos de associações, e sob formas jurídicas específicas, sendo certo que algumas destas categorias se sobrepõem parcialmente, sendo-lhes atribuído pelo Estado diversos estatutos, sendo o mais relevante o de IPSS.

[...]

Em média, cada português é membro de duas entidades da Economia Social (20,5 milhões de cooperadores, associados ou irmãos). A Economia Social gera trabalho seguro, inclusivo e terá cerca de 300 mil pessoas ao seu serviço. O seu contributo para a igualdade de género é maior que o da Economia Nacional. A Economia Social é para todos (o seu principal utilizador, beneficiário ou cliente é o público em geral) e está presente em todo o país, com uma concentração mais significativa em Lisboa, Porto e Coimbra. Se pensarmos em NUTS II, na região Centro, teremos cerca de 19.000 entidades.


No interior do país, é fácil perceber o papel determinante desta economia, nomeadamente no apoio aos mais idosos. É também neste território que se sentem ainda mais e se enfrentam desafios únicos como a desertificação, o envelhecimento da população e a crescente dependência dos idosos que chegam às várias valências.


O envelhecimento da população resulta em idosos cada vez mais dependentes com necessidades cada vez mais complexas. Isso requer maior assistência em actividades diárias, cuidados de saúde especializados e atenção individualizada.


As instituições enfrentam, muitas vezes, limitações de recursos financeiros e infra-estruturas, o que dificulta a resposta às necessidades crescentes dos idosos. A crescente dependência referida exige maiores investimentos em recursos humanos, formação, tecnologia e infra-estruturas, sobrecarregando financeiramente as instituições.


O aumento da dependência dos idosos implica também um maior esforço sobre as equipas de cuidadores e profissionais de saúde. Essa sobrecarga pode levar ao desgaste profissional e à dificuldade em garantir um atendimento de qualidade e personalizado.

[...]
[...]

Obviamente que, neste sector, as práticas de gestão tendem a ser pouco estruturadas e muito conservadoras, também na orientação estratégica, e diversas formas de financiamento, como o estrangeiro, é subutilizado.

Tem-se concluído que menos de 1/5 das entidades criam oportunidades de promoção dos trabalhadores e de progressão na carreira, a Responsabilidade Social no sector carece de reconhecimento formal e a maioria das entidades da Economia Social dizem não medir o seu impacto.


Trata-se do bem-estar dos idosos. Trata-se da sustentabilidade das instituições valiosas da Economia Social. Com presciência, diga-se ainda: trata-se de todos nós


Tudo isso está registado e será verdade. Contudo, o modelo de funcionamento dos próprios lares, das Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas, não precisará também de mudar? Bem como o modelo de trabalho organizacional e o modelo de funcionamento de cuidados? Ou transformar-se-ão todos em autênticas Unidades de Cuidados Paliativos? Torna-se, portanto, essencial que o Estado cumpra o seu papel nesta matéria. Esse papel será o de interpretar os novos tempos e os novos problemas, dialogando mais e disponibilizando soluções e apoios rápidos, próximos e inovadores.


Programas de formação especializada, de reconhecimento e certificação, estímulos para parcerias, cooperação, empreendedorismo social, voluntariado e integração comunitária, incentivos concretos à inovação tecnológica. Novos benefícios fiscais e financiamentos específicos e adequados com critérios claros e indicadores de medição de impacto social, por exemplo, sem aleivosias e que permitam às instituições cumprir plenamente a sua missão social.

Os desafios para a Economia Social, nomeadamente no interior do país, são enormes. O Estado tem que demonstrar que sabe isso, com planeamento e acções concretas, porque a Economia Social faz a diferença e precisa de ter futuro.

Afinal, trata-se do bem-estar dos idosos. Trata-se da sustentabilidade das instituições valiosas da Economia Social. Com presciência, diga-se ainda: trata-se de todos nós.


Fontes: Inquérito ao Sector da Economia Social, Conta Satélite da Economia Social, INE, CASES

[artigo disponível na íntegra só para assinantes aqui]






9.6.23

Aos que trabalham nos lares

Luís Osório, in TSF

1.

Neste dia feriado, dia do Corpo de Deus, dia em que se celebra o corpo e o sangue de Jesus, penso em todas as pessoas que trabalham nos lugares mais difíceis.

Gente que leva os mortos para os pisos subterrâneos dos hospitais.

Gente que limpa a porcaria dos outros, que esvazia as fossas, que corre as cidades em cima de uma camioneta do lixo.

E também nos que trabalham como auxiliares e nos que tratam os nossos pais e avós nos lares.
2.

É neles e nelas que penso.

Mas deixa-me que trave um bocadinho nos lares. Tanto mal que se diz, tantos casos e tantos velhotes maltratados leva-nos a esquecer a maioria que faz um bom trabalho, os que se preocupam, os que oferecem uma nova vida a quem se está a despedir da que tem.

Não tenho nem nunca tive ninguém próximo num lar.

E isso não tem nada de valorativo. Poderia ter acontecido. Como me pode acontecer a mim - daqui a uns anos sei lá o que poderá acontecer, se estarei bem ou dependente, nenhum de nós sabe.

Mas conheço gente que tem os pais num lar e dilacera de culpa. Tantas vezes sem culpa alguma, na verdade, quem dilacera de culpa é, na maioria das vezes, quem não tem culpa alguma.
3.

Hoje é feriado e penso nas pessoas que trabalham nos lares.

Centenas de pessoas que trabalham nos lares de norte a sul.

Centenas de pessoas empenhadas em fazer o melhor possível e que tratam os nossos velhotes com o carinho que merecem.

Eu já os vi.

Fazem o que eu nunca conseguiria fazer.

Mudam-lhes as fraldas como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como se fosse simples alguém chegar ao fim da sua vida e estar assim exposto, humilhado, um morto em vida.

Mulheres que mudam as fraldas e põem creme para que os velhotes não assem.

Mulheres que se sacrificam até à exaustão para que os utentes não fiquem com escaras. Que mudam a cama várias vezes ao dia.

Há centenas de pessoas assim. Profissionais que fazem o que nós não conseguimos fazer com os nossos avós e pais.

É injusto que os esqueçamos.
4.

Nunca tive de visitar nenhum familiar a um lar. E não sei se acabarei a minha vida num lugar assim.

Mas sei algumas coisas. Os lugares do fim antes do fim são dramáticos. São lugares muitas vezes de solidão, lugares de sofrimento físico, lugares em que a memória fere tantas vezes mais do que o corpo gasto.

Mas apesar de tudo isso sei que há gente boa e que a esta hora está a dar a sopa à boca e que daqui a bocadinho, depois da novela, irá deitar, tapar e dizer boa-noite senhor Joaquim ou boa-noite querida Inês...

... ou qualquer coisa do género

... qualquer nome do género.

Este postal é para eles, todos eles. Gente inteira que faz o seu trabalho e que não merece ser confundida com o que não corre bem.

Que não merece todos os dias sentar-se cansada de um dia de trabalho (no lar e em casa) e ouvir que os lares em Portugal são uma desgraça.

Era isto.

Hoje é só isto.

28.3.23

No mundo fechado dos lares ilegais quem lucra não pode cuidar

 e 

Há centenas de residências clandestinas a operar, algumas com ordem de fecho de meses ou anos. “As pessoas preferem ser bem tratadas em lares ilegais do que maltratadas em lares legais.”

Do lado de fora, nada sugere a quem passa que a vivenda de telhado baixo, num bairro onde tantas outras casas de diferentes tamanhos se alinham por pacatos passeios, é na realidade uma residência para 12 pessoas vencidas pela idade, a imobilidade, a solidão, a demência.

A porta principal abre para um corredor estreito e escuro, que liga a um quarto pequeno com três camas, uma sala apertada na penumbra, onde, coladas umas às outras, estão nove pessoas sentadas no sofá e em três cadeiras com almofadas, umas a dormitar, de cabeça caída, outras acordadas, olhando sem interesse para a televisão.

Perderam a juventude e a independência e passam horas numa interminável espera: o levante, a higiene, o lanche da manhã ou da tarde, o almoço, e o jantar, para fecharem o dia, quase sempre, antes das 19h.

A cuidar das oito pessoas, com mais de 80 anos, neste piso de baixo, e de outras quatro enclausuradas no de cima, está uma auxiliar de avental, que não se abstém de abrir a casa a desconhecidos mesmo na ausência e sem autorização da patroa.

Quando, por lealdade, uma utente lhe assinala o dever de avisar a proprietária, a auxiliar de avental acede a pegar no telefone, e fá-lo com tranquilidade, como se no íntimo soubesse que este dia haveria de chegar, ao cabo de um mês em que as reportagens sobre lares licenciados ou clandestinos expuseram a falta de higiene e de cuidados mínimos. Um deles, na Lourinhã, recebeu ordem de fecho na sequência de uma peça na SIC. Outro, em Palmela, fechou com urgência depois de uma investigação da Polícia Judiciária, que recebeu uma denúncia presencial. Houve outros casos divulgados.

Minutos depois do telefonema, chega Vanda, a proprietária. Não quer dar o apelido nem dar entrevista. “Estamos só a conversar”, diz sem disfarçar o nervosismo. “Estou com o coração aos saltos”, desabafa sobre a inesperada visita.

Um lar legal tem de ser todo construído de raiz, assinala Vanda, que impõe como condição para conversar que nada identifique a casa que gere há "muitos anos". "Não há dinheiro para fazer essa obra de raiz, nem as pessoas têm dinheiro para pagar um local com outras instalações", continua. Aqui, uns pagam 550, outros 600 euros, garante.

Cai uma chuva miúda e as duas janelas pequenas têm os vidros fechados e as cortinas corridas na sala entranhada de um odor indefinido mas forte.

“Estamos muito bem aqui”, antecipa-se a mesma senhora que manifestou a sua lealdade à patroa. É a que está mais desperta e aparenta ser a mais esclarecida. Apoia-se, embora sentada, numa bengala, chegando-se à frente para melhor ser ouvida, como que assumindo esse papel de porta-voz das companheiras de residência.

Junto à cozinha, também exígua e de fraca luz, sobre um pequeno quadrado de mesa com uma toalha florida, a funcionária de avental barra manteiga em pão de forma e a que apressadamente junta uma bebida nuns copos de plástico, levando depois tudo num tabuleiro para a sala.

É hora do lanche, mas lá em cima, ao cimo de umas escadas de madeira escura, que contorna a pique a esquina da cozinha, estão dois homens e duas mulheres que nunca descem. Em cada um dos cerca de 15 degraus, íngremes, não cabem sequer duas pessoas.
No cimo sem poder descer

Nesse mundo dos quatro à parte, como que enclausurados, uma senhora acanha os braços no curto espaço de uma mesa pouco estável, e acompanha a imagem desfocada de uma pequena televisão cinzenta de outros tempos. Queria sair daqui? Responde que sim, mas pouco à vontade. A proprietária desvaloriza: “Essa senhora só quer ir à missa.”

A senhora de olhar triste e sem ponta de desmazelo já perdeu a conta aos dias que não vai à missa ou a qualquer outro lugar. A seu lado, está uma mulher como ela, mas mais velha, que parece não (querer) comunicar, e um senhor da mesma idade, agarrado a uma cama, limitado nos movimentos, mas que acena com a cabeça ao mesmo tempo que diz “boa tarde” com um sorriso. De costas para a porta em frente, junto à mesma escada, ergue-se a forma de um corpo posicionado de lado, envolto numa coberta branca.

Esta é apenas uma das muitas moradas que uma pessoa do bairro aponta como exemplo de casas onde habitam dez, 15 ou 20 velhos ao cuidado de não profissionais.

Os dias sucedem-se iguais, com ou sem visitas, agendadas quando alguns lares assim o definem, ou exigem, ou a qualquer hora, aqui na freguesia de Quinta do Conde, ou noutros visitados pelo PÚBLICO, e sem licença de funcionamento, nos distritos de Lisboa, Setúbal e Santarém. É comum procurar-se um sítio e serem indicados vários. Alguns fecharam por ordem do Instituto da Segurança Social, mas abriram numa morada próxima tendo como novo proprietário o registo de uma outra pessoa ou empresa.​

Na grande maioria, não está prevista fisioterapia de forma regular, mas antes uma ginástica a cargo das próprias auxiliares, nem actividades ou animação, e quando acontece é de forma informal e sem regularidade certa; não existe um contrato com enfermeiro, como dita a lei, e estes profissionais de saúde, como os médicos, são chamados pontualmente quando necessário.

O INEM e a Protecção Civil são contactados sempre que surge uma emergência, garantem os proprietários que aceitaram falar. Nos anos da pandemia, os lares recebiam visitas da Protecção Civil ou da Segurança Social, para operações de despiste de surtos de covid-19 ou (mais tarde) campanhas de vacinação. A regra era essa e nenhuma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) – legal e ilegal – ficava de fora. Mas essa atenção – que permitiu identificar muitos lares sem condições e determinar o seu encerramento – acabou no ano passado.

Nem em Salvaterra de Magos, Muge, Abrantes, Ereira, Loures, Fernão Ferro, Montijo, Palmela ou outros pontos de passagem no caminho aqui percorrido os lares têm visitas de acompanhamento regulares.

A lista que só até à semana passada estava disponível no site da Segurança Social e que assinalava “licenças e actos”, como licenças de utilização, com atribuição de alvará, aviso de caducidade de alvará, mas também as ordens de fecho, com ou sem aplicação de coimas, por incumprimento, de 20 mil euros (podendo ir até aos 40 mil euros), ocupava mais de 170 páginas no site. Eram mais de 850, com cada página a mostrar pelo menos cinco entradas. Nesta semana, essa informação deixou de estar disponível. Contactado, o Instituto da Segurança Social não responde se dispõe de uma estimativa do número de lares sem licença. Apenas informa que, de acordo com os dados mais recentes, "existem 2581 estruturas residenciais para pessoas idosas, das quais 894 são entidades de privados".

Lisboa e Porto foram, na lista dos 18 distritos, os dois onde mais lares foram encerrados com (respectivamente) 33% e 21% do total. Já em 2022, mais fechos (em proporção do total) aconteceram em Aveiro (19%) e Santarém (18%), passando Porto a representar 15% e Lisboa 12% do universo de estruturas residenciais sem condições. "A medida de encerramento sem carácter de urgência tem de ser acatada no máximo nos 30 dias úteis seguintes​", confirma o ISS, não revelando porém, apesar de questionado, quantos lares receberam ordem de fecho.

No pátio de mãos dadas

Num pequeno lar, na zona de Salvaterra de Magos, a cozinha com chão de pedra faz de sala onde sete homens e mulheres, que murmuram um imperceptível “bom dia”, fitam a parede ou a pequena televisão, presa no alto, nela abstraídos ou alheados dela. Nesta casa, onde o ar que se respira na zona dos quartos e da casa de banho indica que a única funcionária presente ainda se debate com as limpezas, há desordem de objectos deixados ao acaso num pequeno pátio, mas também há esperança aqui, onde um casal se senta de mãos dadas.

Por serem marido e mulher, beneficiam de um quarto só para eles com casa de banho privada. No resto, a casa está desmazelada mas limpa, e as paredes descascadas pela chuva circundam três ou quatro camas em quartos de pouco mais de 10 metros quadrados. As casas de banho, que servem mais de seis utentes, são apertadas e, embora tenham barras de ferro na sanita, não as têm no cubículo onde são dados os banhos não mais de uma ou duas vezes por semana.

“Gostamos de estar aqui. Está tudo a correr bem”, sorri Manuel, expondo desprevenido os dois únicos dentes. A fragilidade de Manuel na aparência e no discurso estende-se ao dono do espaço, que se curva e quase treme por não querer “nada disto nos jornais”.

Deixa fotografar os quartos, porque não tem “nada a esconder”, diz, mas exige que não seja revelado o seu nome ou a morada da residência. À porta, o aviso de encerramento que o Instituto da Segurança Social obriga a que fique visível por um período de 30 dias está tapado por uma folha branca colada com fitas adesivas pretas.

Nesta rua com casas mas sem gente – que apesar de estar a menos de 50 quilómetros de Lisboa poderia ser um quase fim de mundo –,​ serão ínfimas as probabilidades de uma fiscalização da Segurança Social para o cumprimento efectivo da ordem de fecho. Actualmente, e a nível nacional, existem 53 inspectores afectos às equipas responsáveis pela fiscalização de equipamentos sociais, responde o gabinete de imprensa do Instituto da Segurança Social.

E há 260 técnicos do Instituto da Segurança Social que também realizam as acções de acompanhamento.

Entrar só com autorização

Teria de haver denúncia e nem os bombeiros se dizem competentes para tal, agora que terminaram as visitas de despiste da covid a estas "casas particulares", onde só entram com autorização dos donos. Estas são pessoas que, por força das circunstâncias, abriram um lar: aprenderam da maneira mais dura quando, sem outras alternativas, se viram a cuidar dos próprios familiares doentes ou acamados; viram aqui uma oportunidade de negócio.

Pode haver vontade em ajudar o próximo, desempenhar um papel social, mas não está afastado o risco de eventuais falhas que possam advir do desconhecimento do rigor de cuidados exigidos em situações de grande fragilidade, como a ronda de água, com intervalos de tempo curtos, para prevenir a desidratação ou aliviar o peso do corpo, virando o acamado, várias vezes ao dia, para evitar escaras que podem infectar.

"Os lares ilegais são mal vistos, mas quando tive ordem de fecho, muitos familiares quiseram que eu continuasse a cuidar dos seus idosos"Maria do Carmo Rodrigues - proprietária de lares ilegais em Mouriscas e no Pego

“O importante é se eles comem, se tomam a medicação, se estão lavadinhos de manhã”, diz Maria do Carmo Rodrigues, que em Fevereiro fechou o seu lar em Mouriscas por ordem da Segurança Social, abrindo logo a seguir um no Pego, no mesmo concelho de Abrantes. Para ela, é tudo tão difícil que pondera, "em vez de um lar, abrir um alojamento local".

A residência do Pego, também em Abrantes, é uma alternativa temporária. À sua vivenda, agora fechada em Mouriscas, onde Maria do Carmo diz estar a fazer obras apesar de “ter tudo o que era necessário” para cuidar dos velhotes, primeiro veio a Guarda Nacional Republicana, a Segurança Social, depois a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

Houve uma denúncia, conta enquanto vai pedindo imperiais no café da aldeia onde todos se conhecem. “Há seis anos que estava a funcionar quando recebi a ordem de encerramento. Eu não sabia que tinha de ter uma licença.”

Há uma certa revolta nas palavras de Maria do Carmo Rodrigues quando diz que “a Segurança Social foi um bocadinho arrogante” quando veio, depois de uma denúncia que atribui, embora sem certezas, a familiares de um utente do seu lar, um senhor que tinha anemia e morreu no hospital. "Eu tinha três ou quatro caminhas num quarto e mesmo assim elas implicaram. Tinha dois quartos interiores e um quarto exterior, este sem janelas, e de onde os utentes podiam usar uma casa de banho também no exterior."

"Nunca ninguém se queixou"

"Durante a covid, vinham cá todos: Protecção Civil, Autoridade para as Condições do Trabalho e Segurança Social e nunca me fecharam o lar. Agora estou nas limpezas, a tapar uma parede, a pôr uma porta num quarto, a pôr as barras de ferro nos banhos, nas sanitas”, enumera. “Mais do que as instalações, o importante é serem bem cuidados.” E enfermeira? E médico? “Se eu vir que eles estão mal, eu própria chamo. Tenho uma médica do Centro de Saúde de Abrantes que faz esse biscate. E tinha uma enfermeira para tratar as feridas. Vinha uma vez por semana ou quando era preciso. Eu pago sem recibo. Agora, para ter licença, também querem que eu arranje uma animadora”, diz.

“Quando tive de fechar, tinha muita gente debilitada. Quis entregar as pessoas às famílias, para os colocarem noutros sítios, nos lares das misericórdias, já que os lares ilegais são tão mal vistos. Mas muitos familiares quiseram que eu continuasse a cuidar dos seus idosos. Diziam que preferiam ter a mãe, o pai, a tia ou a avó num lar ilegal, mas onde fossem bem tratados, do que tê-los num lar licenciado onde se calhar seriam mal tratados”, diz. “Nunca os entreguei às famílias, nunca ninguém se queixou."

As denúncias surgem frequentemente de ex-funcionárias descontentes com as precárias condições de trabalho; ou de familiares, quando estes se deparam com alguma situação preocupante envolvendo o idoso.

Nunca aconteceu a Ana Costa ser alvo de uma inspecção, visita da Segurança Social ou denúncia, diz a própria proprietária da empresa Prosas de Outono, que dá nome a dois lares dos quais é directora técnica. Um é misto; o outro só de senhoras acolhe 14 pessoas na localidade de Vale de Milhaços na freguesia de Corroios. Os quartos não cumprem a área determinada por lei para terem três ou quatro camas, nem a entidade tem uma avença com enfermeiro ou animador.

Para Ana Costa, essas são falsas questões. “As pessoas preferem ser bem tratadas em lares ilegais do que maltratadas em lares legais", diz. "Sempre que é preciso, vem o enfermeiro. E as auxiliares têm formação ou ganham experiência com os anos. Para ter um lar de qualidade, o principal é ter uma equipa profissional", continua.

Uma equipa que limpa quando está sujo, que trata quando vê que um idoso não está bem, que sabe monitorizar os sinais vitais, como a tensão arterial, a temperatura, a saturação do oxigénio ou a glicemia, enumera. "Para mim, o principal era que o Estado interviesse nas famílias. Este é um problema da sociedade, porque as famílias nem sempre visitam, nem sempre são vigilantes", considera.

O espaço é limpo, a sala espaçosa e os quartos arrumados e luminosos. A mensalidade oscila entre os 900 e os 1200 euros e ter uma licença custa muito dinheiro, queixa-se. "É preciso um projecto de arquitectura, e projectos para tudo o resto: para as telecomunicações, para a água e os esgotos, para a electricidade. E cada um destes pode custar 5000 euros."
“Estive três anos a viver sozinha desde que o meu marido morreu, e nunca me aconteceu nada. Se tenho que morrer, tanto morro em casa como aqui”Luísa (nome fictício) - utente do Lar Prosas de Outono

Elisabete (nome fictício) é a primeira a falar. Sente-se bem aqui, embora gostasse "muito de voltar para casa". Para isso, não tem remédio. “A minha casa está fechada, em Vale de Figueira” no distrito de Santarém, conta, antes de parar para ouvir nova pergunta. Repete-a, em forma de pergunta à auxiliar: “Que idade tenho?” Tem 86 anos, mas a aparência de uma mulher mais nova e um sorriso de quem leva os dias a pensar como era no passado. “Os meus filhos estão agora a viver no estrangeiro.”

Sentada à sua frente, Luísa, que também não dá o nome verdadeiro, sorri sem convicção. “Não estou bem nem mal. Podia não me doer os pés, não me doer os joelhos, não me doer o corpo. Há três semanas vim do hospital.” Tem 91 anos, e recebe a visita frequente dos filhos. “Eu queria voltar para casa, mas as minhas filhas não me querem sozinha. Eu vivia lá bem, com a bengala, andava, agarrava-me encostada à cómoda, chegava à cozinha e abria a luz”, diz confiante.

"Desde que o meu marido morreu, estive três anos assim e nunca me aconteceu nada. Ele era a minha companhia. Vivíamos felizes. Era só eu e ele. A saudade não tem cura.” Em minutos as lágrimas enchem-lhe os olhos. “Se tenho de morrer, tanto morro em casa como aqui.”

Em Mouriscas, distrito de Santarém, a dona de um lar que todos conhecem grita da janela que há muito tempo a sua casa não tem idosos e recusa abrir a porta. “São só familiares”, diz. “Ela diz sempre isso, que são familiares. Mas estão muitos idosos”, contrapõem pessoas na mercearia em frente que se interrogam sobre os motivos de este lar ainda não ter sido encerrado, apesar de uma ordem de encerramento de vários anos.

A dona, Celestina, diz já ter pago os 20 mil euros da contra-ordenação que herdou do tempo da sua mãe, quando a Segurança Social identificou em 2017 a falta de condições. A intimação na lista dos documentos da Segurança Social fala de “estabelecimento lucrativo”, mas não dá pistas sobre o ponto em que está o processo.

Contactadas pelo PÚBLICO, nem a Segurança Social nem a Procuradoria-Geral da República dizem dispor de dados sobre os proprietários que ficaram impedidos de exercer a actividade desde 2020. A PGR também não tem sistematizada a informação sobre os processos judiciais abertos nos últimos anos por maus-tratos ou negligência em lares. O mesmo acontece com proprietários de lares visados pelo crime de desobediência (por não acatarem a ordem de fecho).

A parte de trás da casa de Celestina, conhecida na aldeia por Titina, dá para um logradouro, umas escadas e uma varanda, onde as ombreiras das janelas estão partidas e o telhado descaído, adivinhando-se a passagem de fortes correntes de ar em dias de maior frio ou vento. Antes de alguém fechar as cortinas por se aperceber de olhares indesejados, da rua é possível ver um velho com a barba por fazer, de pantufas e roupão, que olha pela janela, mas nada diz, sentado numa cama baixa, com pés de madeira, mantas enrodilhadas, no escuro. Desorientado, acabou de acordar ou prepara-se agora para se perder no torpor da sesta e do esquecimento.

3.2.22

Manuel Lemos assume liderança da Confederação de Economia Social

in Público on-line

Na tomada de posse, Manuel Lemos, eleito para um mandato de quatro anos, traçou como objectivo “reforçar o papel das organizações do sector social e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, mais equitativa e mais coesa, que promova a qualidade de vida e o desenvolvimento equilibrado do país”.

O presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) assumiu esta quarta-feira a liderança da Confederação Portuguesa de Economia Social (CPES), para “uma maior coesão e fortalecimento do sector da economia social”.

Na tomada de posse, em Lisboa, Manuel Lemos, eleito para um mandato de quatro anos, traçou como objectivo “reforçar o papel das organizações do sector social e contribuir para a coesão e fortalecimento da Economia Social, assim como para a construção de uma sociedade mais justa, mais equitativa e mais coesa, que assegure a dignidade e cidadania e promova a qualidade de vida e o desenvolvimento equilibrado do país”.

A CPES tem como objectivos a promoção e a defesa das organizações da Economia Social, representando o sector a nível nacional e internacional e posiciona-se como um parceiro social na concertação, na definição das políticas públicas e nas orientações estratégicas destinadas à Economia Social, refere uma nota enviada à agência Lusa.

Constituída em 2018, a CPES congrega as entidades representativas da Economia Social em Portugal, nomeadamente a UMP - União das Misericórdias Portuguesas, CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, CONFAGRI - Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola de Portugal, CPF - Centro Português de Fundações, CPCCRD - Confederação Portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto, UMP - União das Mutualidades Portuguesas, ANIMAR - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local, Confederação Cooperativa Portuguesa, CCRL e APM - Associação Portuguesa de Mutualidades.

Por seu turno, a União das Misericórdias Portuguesas é uma associação de âmbito nacional, criada em 1976 “para orientar, coordenar, dinamizar e representar as Misericórdias, defendendo os seus interesses e organizando actividades de interesse comum”.

Enquanto promotora da economia social, “a UMP tem pautado a sua actuação pelo diálogo entre as Misericórdias e os diversos parceiros institucionais, participando activamente na definição e execução de políticas públicas sociais, com o objectivo de assegurar respostas sociais e de saúde que contribuam para o desenvolvimento de uma rede de apoio para o bem-estar da população”, acrescenta a nota.

13.8.21

Lares de idosos, o novo negócio de milhões das multinacionais

Paulo Pena/Investigate Europe(texto) e Marco Neves Ferreira (Ilustração, a partir de imagem da Getty Images), in Público on-line

Cadeias de empresas internacionais estão a dominar a gestão dos lares de idosos na Europa. Fundos de investimentos em offshores ditam cortes nos serviços aos residentes, salários baixos a enfermeiras e auxiliares, ao mesmo tempo que pressionam os governos para subsidiar o sistema. Impõem uma gestão férrea, que gera lucros enormes. Mas a qualidade dos serviços sofre com isso. É um negócio de risco, para os fundos e para as sociedades envelhecidas.

Mickaelle Rigodon, Aljoscha Krause e Sonia Jalda trabalharam em lares de idosos, nas três maiores empresas multinacionais da Europa, em cidades muito distantes. Rigodon na Orpea de Auvergne, na França; Krause na Korian, em Lüneburg, na Alemanha; e Jalda na Domus Vi, em Vigo, Espanha.

Uma a uma, as suas histórias vão coincidindo. “Os residentes são tratados como peças numa fábrica, sempre com pressa. Muitos trabalhadores do lar desistem, porque não o suportam”, relata Rigodon sobre o Lar Anatole France, em Auvergne. “Tenho a sensação de que não estou a tratar as pessoas com dignidade, mas apenas à peça”, queixa-se Krause, enfermeiro da Haus an der Ilmenau em Lüneburg. “Estamos na mesma, ou pior, do que antes da pandemia”, acusa Jalda, enfermeira, em Vigo, acrescentando uma conclusão: “O modelo é puro negócio.”

Este trabalho, que a equipa de jornalistas europeus Investigate Europe (IE) começou em Março, procura traçar um retrato dessa situação comum, mas pouco conhecida, dos cuidados prestados à terceira idade por um pequeno conjunto de empresas multinacionais. O que encontrámos, de Portugal à Suécia, de Itália à Noruega, foi uma realidade semelhante: os lares de idosos estão subfinanciados e têm menos trabalhadores do que deviam. Contudo, uma parte cada vez maior das despesas governamentais em cuidados de saúde com idosos está a fluir para os cofres destas empresas transnacionais, que são um negócio crescente e muito lucrativo.

Investidores financeiros anónimos estão a assumir quotas cada vez maiores do negócio e estão a fugir aos impostos sobre os seus lucros, muitos deles obtidos com dinheiro público, transferindo as suas receitas para centros offshore. Empresas como a Orpea e a Domus Vi pressionam os seus trabalhadores, que reivindicam mais contratações e melhores salários. Os governos estão a falhar na definição de normas mínimas para a qualidade dos cuidados prestados aos idosos. E o relógio não pára. Em 1961, em Portugal havia 27 idosos por cada 100 jovens. Hoje há 159 por cada 100. Daqui por 50 anos serão 300, dizem as projecções oficiais.
Grandes lucros, grande dívida

A pandemia de covid-19 revelou uma parte do problema, que costuma estar oculta. Na Europa, 41% das mortes relacionadas com a doença provocado por aquele coronavírus ocorreram em lares de idosos. Em Espanha, Bélgica, França, Países Baixos, Eslovénia, Suécia e Reino Unido morreram 5% de todos os idosos residentes em lares, segundo o último relatório da International Long Term Care Policy Network, ou seja, um em cada 20 residentes.

Em Portugal, os dados oficiais revelam que 27% de todas as mortes atribuídas à pandemia ocorreram em lares. Vários trabalhos jornalísticos mostraram, nos últimos meses, a situação dramática vivida em alguns deles. O título da reportagem da jornalista Natália Faria mostra-o: “Essa coisa de se dizer ‘Não chores, vai ficar tudo bem’ não existe aqui.”

Em Espanha, na Itália, na Bélgica e no Reino Unido a Amnistia Internacional publicou relatórios sobre o “abandono” dos residentes em lares. Nesses relatórios, a lista de acusações é longa e grave: violação dos direitos humanos e do direito dos residentes à saúde, abandono dos idosos à morte, problemas estruturais, subfinanciamento e falta de pessoal.

Em 2019, antes de a pandemia chegar, um estudo da OCDE tinha suscitado preocupações sobre esses mesmos problemas estruturais nos cuidados aos idosos e concluído que havia “níveis de pessoal inadequados, má qualidade de trabalho e falta de qualificações, que põem em causa a qualidade dos cuidados e a segurança”.

Aparentemente imune a estas críticas, está a crescer a bom ritmo um negócio internacional de lares de idosos geridos por cadeias que dependem de uma intrincada engenharia financeira. Estas grandes empresas estão a comprar pequenos grupos nacionais, a concentrar posições e a impor uma forma de gestão que, segundo as dezenas de relatos que ouvimos — de clientes, familiares, trabalhadores e académicos — põe ainda mais em risco a qualidade dos cuidados prestados aos idosos.

De acordo com a investigação do IE, 30 empresas de private equity (capital privado) possuem 2834 lares na Europa com quase 200 mil lugares. De acordo com a base de dados Pflegemarkt.com e a investigação do IE, em Janeiro de 2021 os 28 principais operadores de lares na Europa são privados e gerem 5388 instalações com lugares para 455.559 residentes — quase tantos como os habitantes de Lisboa. Em 2017, os 25 maiores operadores de lares na Europa (entre eles, nessa altura, constavam três sem fins lucrativos) geriam uma capacidade de 369.132 lugares.

A Orpea é o maior operador da Europa com mais de 110.000 lugares em mais de 1000 instalações (incluindo algumas clínicas psiquiátricas e de reabilitação). Entre 2015 e 2020, a empresa aumentou a sua capacidade em 65%. Outras 25 mil camas estão a ser implantadas, incluindo mais de três mil em Portugal, onde a Orpea chegou em 2017, depois de ter criado uma empresa imobiliária em Lisboa, e já possui mais de 700 residentes, em nove lares.

A Orpea está cotada em bolsa e o seu maior accionista é o Fundo Público de Pensões do Canadá (CPPIB, com 14,5%). O preço das acções mais do que duplicou desde 2015, enquanto o valor de mercado triplicava. Mas os números mostram outra coisa: a dívida financeira líquida da empresa é de quase 200% do capital. Servir os accionistas (distribuindo dividendos) e os credores (pagando juros pelos empréstimos) custou à Orpea 244 milhões de euros em 2019.

Os lucros de Portugal acabam em Jersey

A Domus Vi é o terceiro maior operador da Europa, com 355 residências e mais de 33 mil camas. Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. É uma cascata de empresas em França, Espanha, Portugal, Irlanda, Holanda e América Latina, que são detidas por outras no Luxemburgo que, por sua vez, dependem de um fundo financeiro na ilha de Jersey, no Canal da Mancha. Evan Mervyn Davies (ou Davies de Abersoch), um antigo ministro de Estado do último governo trabalhista britânico, é o presidente do Intermediate Capital Group plc, um “gestor global de activos alternativos em dívida privada, crédito e capital próprio” que gere o fundo (cujos proprietários não são conhecidos), que detém 55,5% da Domus Vi.

Mas trata-se apenas do começo da história. As descrições que nos são feitas pelas enfermeiras que ali trabalham, pelos residentes que ouvimos e pelos especialistas são a outra face dos resultados financeiros multimilionários destas empresas que lideram uma expansão vertiginosa. Nos últimos dias, a Domus Vi fez um aumento de capital de 333 milhões de euros. Incorporou três empresas que detinha em França numa única, pagando aos accionistas destas empresas uma valorização de 316% ao fim de três anos de investimento. Um novo fundo, Mérieux Equity Partners, passou a ser accionista da rede de lares, mas ainda se desconhece o valor da sua quota.

Em apenas quatro anos, este é o terceiro fundo de investimento a entrar na Domus Vi. Em Julho de 2017, o ICG em Jersey comprou a Domus Vi a outro fundo de private equity, PAI Partners. Foi um grande negócio. Apenas três anos antes o fundo PAI pagou 639 milhões de euros pela Domus Vi. O valor da empresa multiplicou-se por quatro, quando o vendeu ao ICG: 2,4 mil milhões de euros.

A Domus Vi, como a PAI Partners explica, foi uma “compra alavancada” (ou LBO, se quisermos seguir o acrónimo usado). Isto significa que o comprador não investe realmente o seu dinheiro na compra. A aquisição é feita utilizando uma quantidade significativa de dinheiro emprestado para fazer face ao custo. Os activos da empresa comprada são frequentemente utilizados como garantia para os empréstimos. De uma forma mais simples: quando comprou a Domus Vi, a ICG utilizou o dinheiro emprestado e pode ter dado os edifícios dos lares, por exemplo, como garantia ao banco.

O que este exemplo mostra — além da enorme valorização da empresa num curto período de tempo — é a rapidez com que estes fundos entram e saem de um sector em que o impacto social das decisões de gestão é muito mais delicado do que, por exemplo, numa start-up tecnológica.

Seria normal que uma empresa quadruplicasse de valor, em três anos, se apresentasse as características de uma high-tech — inovação tecnológica, possibilidade de crescimento —, mas num negócio como o dos lares de idosos não é essa a realidade.

Um estudo feito pelo grupo de reflexão independente CHPI na Grã-Bretanha estima que os lares privados obtêm lucros de mais de mil milhões de euros por ano, o que corresponde a cerca de 10% do volume de negócios. O autor deste estudo, Vivek Kotecha, explica-nos numa entrevista que as margens de lucro destes casos de que falamos “parecem desmesuradas, dado o risco que está envolvido no serviço prestado, e parecem gerar níveis de lucro realmente elevados face ao que deveria existir numa indústria de mão-de-obra intensiva” como esta.

Mas dentro das 11 empresas do grupo, que ligam a Geriavi espanhola (que é dona da operação Domus Vi em Portugal) ao fundo offshore de Jersey, existe uma engenharia financeira de filigrana. Uma investigação do jornal espanhol InfoLibre (nosso parceiro neste trabalho) revela os contornos de um negócio que esconde os lucros, impõe dívida às empresas reais (as que gerem os lares) e vive dos juros desses empréstimos entre as empresas do mesmo grupo, fugindo assim aos impostos.

Até 2020, a empresa espanhola Geriavi assinou com a empresa francesa que é o seu único accionista (DomusVi SAS) empréstimos no montante de 503 milhões. A Geriavi utiliza o dinheiro que pede emprestado à Domus Vi para a compra de residências em Espanha e Portugal. Ao devolver o dinheiro a França, através dos juros, está na prática a transferir uma grande parte dos seus lucros de exploração para a DomusVi SAS.

Em França está uma outra empresa do grupo, a Kervita, que lançou obrigações convertíveis de mais de 640 milhões de euros. Quem comprou esta dívida? Duas outras empresas do mesmo grupo, desta vez no Luxemburgo. A Topvita Investment Sàrl adquiriu 535,8 milhões de euros, a uma taxa de juro de 9,2%, e a Topvita Financing Sàrl outros 104,7 milhões de euros, a uma taxa de juro de 11%.

As normas internacionais de contabilidade utilizadas pelos auditores indicam que, dado tratar-se de transacções entre empresas do mesmo grupo, estes empréstimos deveriam ter sido subscritos a preços de mercado. Este preço de mercado seria o de uma obrigação semelhante mais dois pontos percentuais. Isto levaria a uma taxa de juro entre 3,5% e 4%. Nas operações europeias, um máximo de 5% poderia ser aceite, embora já seja muito acima do comum. Em nenhum caso, nem os 9,2% nem os 11% que foram praticados.

Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. Em cima, a unidade do Porto Nelson Garrido

Recapitulando: na base, a empresa que gere os lares (que são o negócio real do grupo de empresas) pede empréstimos a uma outra empresa do grupo, que por sua vez depende de outra sociedade financeira que se endivida, também ela em empresas dos mesmos donos, com juros muito mais altos dos que teria se fosse a um banco.

Adquirir dívida a uma taxa de juro de 11% só seria lógico se houvesse uma elevada probabilidade de incumprimento. Por outras palavras, se estivéssemos a lidar com rating equivalente a “lixo”. Mas, logicamente, a ICG não quer que uma empresa sua, a Kervita, emita dívida de “lixo”, com juros ao dobro do preço de mercado, e que esta fosse comprada por outras duas (Topvita) empresas suas, porque estaria a enganar-se a si própria.

A lógica da operação é diferente: cobrar juros de “onzeneiro” (era assim que se chamava o agiota do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, precisamente por cobrar 11% de juros sobre o dinheiro que emprestava) à Kervita faz com que esta empresa perca dinheiro, dentro do grupo – isto é, transfere os lucros da gestão dos lares para o Luxemburgo, através do pagamento de juros da dívida que contraiu.
Tudo isto é legal, mas será transparente?

A Kervita SAS é a empresa que consolida os resultados de mais de 200 filiais em França, Espanha e Portugal. Isto significa que todas as empresas do grupo são tributadas como se fossem uma só, de modo que os lucros de alguns lares são compensados pelas perdas de outros, reduzindo assim a factura fiscal. Todos os lares têm as suas contas, mas a única empresa responsável pelo imposto sobre as sociedades é a empresa-mãe que consolida as contas. Assim, a Kervita SAS poupou 22 milhões em 2019. Isto é algo perfeitamente legal, regulado de forma praticamente idêntica em todos os países da UE, mas na prática acaba por beneficiar grandes grupos com muitas filiais, porque é muito provável que algumas delas venham a ter prejuízos.

Como a Kervita é a empresa que teria de pagar impostos sobre os lucros de todo o grupo, o ICG impõe-lhe o pagamento daqueles juros exorbitantes que vimos para que possa declarar prejuízos. Em 2018, a Kervita teve um resultado financeiro negativo de 82,6 milhões de euros e em 2019 de 70,3 milhões. No total, 152,9 milhões serviram quase inteiramente para pagar os juros à Topvita Investment Sàrl e à Topvita Financing Sàrl.

Mas os lucros não ficam nas empresas Topvita, apesar de terem um regime fiscal muito atractivo no Luxemburgo. No mesmo dia 27 de Julho de 2017 que comprou a dívida da Kervita SAS francesa, a Topvita Investment Sàrl contraiu um empréstimo. A taxa de juro paga aos seus credores é também de 9,2% e essa dívida foi totalmente subscrita por sete empresas que são accionistas da Topvita Investment, directa ou indirectamente. O principal produto utilizado foram os chamados CPEC (“convertible preferred share certificates”), que são isentos de impostos no Luxemburgo. Também a Topvita Financing pediu empréstimos, em que paga a mesma taxa de juro de 11% que cobra à Kervita, dívida essa que também foi comprada na sua totalidade pelos seus accionistas.

Desta forma, o dinheiro que iniciou a sua viagem numa residência em Portugal, Espanha ou França, gerado pelas mensalidades pagas pelos idosos, sobe as últimas etapas da estrutura empresarial até chegar à empresa-mãe criada pelo ICG em Jersey.

Contactámos por quatro vezes a Domus Vi (quer em Espanha, quer na sede em França), nas últimas quatro semanas, para que comentasse esta descrição da sua estrutura empresarial. Não recebemos qualquer resposta.
Áustria e Noruega mudam as regras

Se os leitores resistiram a esta descrição sucinta da complexa engenharia financeira de um negócio de lares, talvez estejam curiosos para perceber se, apesar de tudo, funciona.

Há vários exemplos de negócios arriscados de fundos nos lares. Southern Cross e Four Seasons são dois desses casos de empresas gestoras de lares, financiadas por private equity, no Reino Unido, que entraram em colapso nos últimos anos. “O problema subjacente é que o financiamento por private equity está carregado de dívida... Isto não é exclusivo deste sector, mas claro que, obviamente, o impacto humano é maior neste sector”, sublinha John Spellar, deputado trabalhista, que há muito tempo tem alertado para o envolvimento do capital privado nos cuidados de saúde.

Muitos pedem, por isso, controlos mais rigorosos e “uma regulamentação adequada”. Se os reguladores tiverem “poderes fortes”, sugere Jon Moulton, da empresa de private equity Better Capital, e as empresas estiverem em risco, “então o Estado pode avançar, com força”. “Pode tomar conta da empresa e pô-la sob administração protegida”, propõe Moulton.

Vários países europeus já começaram a prevenir o problema. O governo regional de Burgenland, na Áustria, estipulou por lei, em 2019, que todos os lares só podem ser explorados por empresas sem fins lucrativos a partir de 2024. Os cuidados de enfermagem fazem “parte dos serviços públicos — tal como os cuidados médicos, cuidados infantis e de educação”, diz-nos o conselheiro regional Leonhard Schneemann: “O princípio da maximização do lucro não tem lugar nesta área altamente sensível.”

Muitos municípios sociais-democratas da Noruega fizeram o mesmo. Após o fim dos contratos de concessão com os operadores privados dos lares, as cidades de Oslo, Bergen e Stavanger, por exemplo, não concederam prorrogações e assumiram elas próprias a gestão dos lares. As empresas são boas para a sociedade, “mas são perigosas quando gerem serviços deste tipo”, diz Robert Steen, vice-presidente da câmara de Oslo. “Em última análise, o seu principal objectivo é ganhar dinheiro para dar os proprietários, não é gerir serviços de saúde e cuidados ou contribuir para uma sociedade sustentável.”

A empresa sueca Attendo abandonou então completamente o mercado norueguês e a sua concorrente Norlandia alertou os seus accionistas para o “risco político” que corriam.
A diferença portuguesa

Ao contrário da generalidade dos países europeus, em Portugal o Estado não financia directamente os lares privados. A lei portuguesa, de 2012, manteve o financiamento estatal exclusivo para o “terceiro sector” sem fins lucrativos. Isso ajuda a explicar a ainda reduzida presença das grandes cadeias internacionais no país. Actualmente existem 2537 lares em Portugal, sendo 1677 do sector social e solidário, a maioria geridos e detidos pela Santa Casa da Misericórdia, com acordo de cooperação com o Estado (66%). Os restantes 733 são do sector privado (29%) e 133 são não lucrativos e não têm acordos de cooperação (5%).

Os 12 lares que a Orpea e a Domus Vi gerem em Portugal destinam-se, sobretudo, a clientes de rendimentos altos, que não têm qualquer comparticipação pública no pagamento das mensalidades. As mensalidades cobradas (de 1500 a 4000 euros, segundo as nossas fontes), por empresas multinacionais, têm como alvo um reduzido estrato social, e competem com marcas portuguesas já instaladas, como o Montepio.

Segundo os dados da Dun&Bradstreet, o volume de negócios do sector privado em Portugal era, em 2019, de 330 milhões de euros.

Até 2012, Portugal tinha uma lei muito rigorosa que proibia as casas de repouso com mais de 60 camas. Durante os anos da troika, em 2012, o Governo alterou esta lei e abriu uma nova oportunidade de mercado para lares de idosos, duplicando a capacidade permitida.

Como nos explica Rui Fontes, enfermeiro que gere um lar privado de pequena dimensão e é o presidente da Associação dos Amigos da Grande Idade, os estudos de viabilidade económica demonstram que a rentabilidade se consegue “a partir das 61 camas”. Por isso, um lar com 120 lugares pode ser um bom negócio. Mas por muitas expectativas que tivesse, de início, face à chegada de grandes grupos internacionais, elas foram “completamente goradas”.

“Estes grupos têm uma concepção de cuidados mais relacionada com fazer paredes bonitas do que com prestar cuidados com carinho. Há conforto, é claro, muita cor, muito vidro. Mas a qualidade nesta área não se ganha com a construção.” Perguntamos a Rui Fontes se o negócio imobiliário faz parte da estratégia das grandes empresas. “Este negócio é também imobiliário”, responde. “Normalmente, há uma empresa que faz a construção e depois vende-a a uma empresa que gere a operação. São empresas diferentes. A que gere a operação paga uma renda. Toda a operação está isenta de IVA.”

Isso faz com que, além dos cuidados com idosos, haja outro tipo de lucros possíveis na operação. Rui Fontes explica melhor: “Quando sou consultado por estes projectos, digo que o negócio é bom, porque, quando as portas abrem, o negócio é pago. A empresa gestora já contraiu uma dívida, ou uma hipoteca, para pagar o edifício. Uma vez que se trata de instalações sociais, pode-se construir em áreas restritas.”

Rui Fontes não defende a solução norueguesa ou a austríaca. É a favor de um mercado privado nos lares. “Não contesto a entrada destes grupos económicos privados – pelo contrário. O que eu contesto é que eles cobram 3000 euros a uma pessoa idosa que custa 1200, e já está a dar lucro. Por 3 mil euros, podem oferecer viagens de helicóptero aos utilizadores. Desta forma, eles ganham muito dinheiro. O montante cobrado é maior do que os cuidados que prestam.”

Uma opinião semelhante tem João Ferreira de Almeida, o presidente da Associação de Lares de Idosos, o grupo que representa os lares privados de pequena e média dimensão. “As grandes empresas internacionais concentram-se na importância da estrutura das propriedades. O nível de cuidados, por vezes, não corresponde às expectativas. Em alguns casos, têm uma perspectiva hoteleira. Mas não há realmente uma verdadeira avaliação da qualidade, o Estado só actua se houver queixas feitas pelos utentes ou pelas suas famílias.”

No fim de contas, continua Ferreira de Almeida, a qualidade é fácil de avaliar: “É o que faz uma empresa trabalhar neste sector: tenho uma menor redução de mortes, menos visitas ao serviço de urgência, tenho mais facilidade em preencher uma vaga.”

Rui Fontes insiste também nesse ponto. “Não existem dados públicos sobre a qualidade dos cuidados. A comunicação destes grupos multinacionais centra-se na qualidade das instalações, mas nada diz sobre a diminuição do consumo de medicamentos ou sobre a diminuição das visitas aos hospitais.”

O Governo garante que, durante a pandemia, visitou todos os lares do país. “As acções de acompanhamento técnico são efectuadas regularmente com o propósito de avaliar os serviços e cuidados prestados às pessoas beneficiárias das mesmas. Desde Março de 2020 foram feitas mais de 7140 visitas conjuntas de acompanhamento às instituições, incluindo ao sector lucrativo e a lares ilegais.”

Em outros países europeus é muito difícil encontrar bons exemplos de controlo de qualidade, por parte dos Estados, nos lares de idosos. Em toda a parte os inspectores estão com falta de pessoal. Para a região da Galiza, por exemplo, existem apenas sete inspectores, denuncia-nos a associação de trabalhadoras dos lares. A situação é ainda pior no Norte de Itália. “Sou responsável por 400 lares. Isso significa que teria de inspeccionar duas instalações todos os dias”, revela-nos o inspector-chefe da autoridade sanitária de Turim. “Além disso, também tenho de cuidar de instalações que foram recentemente abertas. Como é que se espera que eu gira isso?” A França reduziu efectivamente o número de inspectores, enquanto a necessidade aumenta, relata um antigo inspector. Para toda a França, diz-nos, existem agora apenas 200 peritos, muito poucos para os milhares de instalações no país. “A lógica da política é auto-regulação pelos operadores”, queixa-se.
Gestão vs qualidade?

Quase todos os relatos de trabalhadores, e ex-trabalhadores, de lares que recolhemos são concordantes: o sector tem muito menos trabalhadores do que precisa, e a política laboral das empresas multinacionais é férrea.

Depois de ouvirmos vários testemunhos sobre a forma como a Orpea reagia face aos trabalhadores que reivindicam melhores condições, chegou-nos às mãos uma sentença judicial de 2017 do Tribunal de Paris. Trata-se de uma queixa da central sindical CGT digna de uma série televisiva.

Queixa-se a central sindical de que a Orpea contratou três actores desempregados (um dos quais se viria a suicidar pouco depois) para trabalharem nos seus lares com uma finalidade específica: infiltrarem-se nas organizações dos trabalhadores e escreverem relatórios porme norizados sobre o que estavam a preparar. Os actores tinham sido contratados por uma empresa de “segurança económica”, a GSC SAS (que abriu falência pouco depois), e que terá seguido a mesma estratégia num outro caso, julgado em França em Março passado, envolvendo uma empresa sueca de mobiliário. O caso da CGT contra a Orpea não resultou em nenhuma condenação, porque os factos remontam a 2010, mas a CGT só fez a queixa em 2015 e, apesar de um inquérito da procuradoria ter sido iniciado, os juízes consideraram que os alegados crimes tinham prescritos.

Philippe Galais, um activista da CGT que trabalhou num lar Orpea durante 20 anos até se demitir, no ano passado, queixa-se: “Primeiro tiraram-me as funções de cuidador e desqualificaram-me profissionalmente. Depois disseram aos colegas para se afastarem de mim e fiquei isolado.” Uma antiga gerente de outro lar da Orpea, que nos pediu o anonimato por temer represálias, confirmou que foi especificamente instruída para usar estas tácticas de intimidação contra o pessoal.

Na Polónia, a empresa tentou livrar-se da presidente da comissão de trabalhadores de um lar na pequena cidade de Konstancin, perto de Varsóvia, em 2019. A enfermeira foi acusada de ter intimidado os seus colegas de trabalho. A Orpea não foi capaz de fornecer provas suficientes. Na Primavera deste ano, um tribunal laboral de Varsóvia anulou o despedimento. A empresa teve de reintegrar a enfermeira. Mas o efeito dissuasor mantém-se.

A empresa está a agir de forma semelhante na Alemanha. Embora o administrador da filial alemã nos assegure que não tem problemas com a organização dos seus empregados, a empresa está a instaurar vários processos contra os presidentes de duas comissões de trabalhadores em Bremen e na Baixa Saxónia, a fim de impor a sua “demissão sem pré-aviso”. Alega-se que falsificaram documentos e que isso representa uma fraude na gestão do tempo de trabalho. As acusações são “completamente falsas” e “uma tentativa de criminalizar as comissões [de trabalhadores] da empresa”, contesta o advogado de Bremen Michael Nacken. No final de Abril, um juiz de Bremen arquivou dois dos casos por falta de provas. Mas a Orpea ameaçou, na sala de audiências, exercer represálias . O advogado da empresa anunciou que estavam a ponderar “vigilância completa” dos membros da comissão de trabalhadores durante o horário de trabalho, com a ajuda de uma agência de detectives.

A Orpea repetiu o mesmo padrão quando o Sindicato do Serviço Público Europeu (EPSU) tentou criar o Conselho de Trabalhadores Europeu. A direcção “obstruiu e atrasou sistematicamente esta medida, apesar de ser um direito legal dos trabalhadores elegerem tal representação a nível europeu”, relata o secretário sindical Guillaume Durivaux, que supervisionou o estabelecimento da EPSU.
Represálias na Galiza

Nestas grandes empresas que têm filiais por toda a Europa, a relação tensa com os trabalhadores, ou os sindicatos, parece ser um padrão. Na Domus Vi, o relato chega-nos de bem perto.

Entrevistamos Maribel Barreiro, 54 anos, enquanto ela se senta, com a perna direita repousada numa cadeira, com talas a todo o comprimento. Rompeu o ligamento lateral da perna no dia 3 de Junho, quando escorregou e caiu, enquanto mudava de roupa no vestiário, molhado, do lar de Vigo da Domus Vi. “Agora tenho de passar o dia em casa com a perna em talas, sem a poder dobrar…”

O acidente não foi, para ela, uma consequência normal de um dia de trabalho. Barreiro era secretária da direcção do lar, quando este era público. Sempre foi membro da comissão de trabalhadoras. Quando a Domus Vi ganhou a concessão, dada pelo governo da Galiza (ali e noutros 31 lares da região autónoma, e 140 em toda a Espanha), Maribel Barreiro foi despromovida. “Puseram-me a trabalhar no armazém, a descarregar pesos que eu não posso carregar, de 600 quilos, a puxar os carros de carga. Fiquei com um problema nas costas e tive de pôr baixa médica e fazer fisioterapia.”

Com Sonia Jalda, que era enfermeira no mesmo lar, fundou a Trega, a primeira associação de trabalhadoras de lares em Espanha. No caso de Jalda, a pressão da empresa foi um pouco diferente. “A primeira coisa que a Domus Vi fez quando chegou foi pedir-nos uma reunião. A mim chegaram a perguntar-me se queria trabalhar só de segunda a sexta e só no turno da manhã, e quanto queria ganhar. Enganaram-se na pessoa...”

Sonia Jalda saiu da empresa depois de sofrer um acidente de trabalho. “Estou reformada por invalidez. Pedi à comissão médica que me deixasse voltar a trabalhar, mas não me deixaram. Dou aulas na universidade pública de Pontevedra, mas estar reformada é muito duro. Amo a minha profissão.”

Todas estas queixas laborais ajudam-nos a perceber uma parte do problema. Estas grandes empresas de lares cortam nos custos para aumentarem os seus lucros. É normal, num bom negócio. Todavia, há uma subtileza importante a ter em conta. Na experiência de Heinz Rothgang, professor de Cuidados e Segurança da Terceira Idade na Universidade de Bremen, e dos seus colegas, os custos de pessoal em lares bem geridos representam cerca de 70% do rendimento da empresa. As empresas líderes de mercado como a Orpea e a Korian, por seu lado, gastam apenas 50% a 55%, de acordo com os seus balanços mais recentes. Isto só é possível “se pagarem abaixo das tabelas e mantiverem a quota de trabalhadores qualificados ao nível mais baixo legalmente previsto”, diz Harry Fuchs, professor de Ciências Administrativas e especialista de longa data em financiamento de cuidados.

Remi Boyer, chefe dos recursos humanos do Grupo Korian, em Paris, nega que assim seja. “Isso pertence ao passado”, assegura-nos. “Os custos de pessoal estão agora a subir para 58% e continuam a crescer”, afirma Boyer, na entrevista que nos deu. Não há forma de verificar se isso está, de facto, a acontecer.

Erik Hamann, dirigente da Orpea Alemanha, também considera irrelevante a leitura sobre a baixa percentagem de custos de pessoal no volume de negócios da sua empresa. “Apenas temos mais volume de negócios do que outros.” Garante que a sua empresa oferece salas de conforto e outros serviços adicionais, “pelos quais os [seus] residentes pagam mais”. No entanto, a empresa não fundamenta se isso significa que as despesas de pessoal são perto dos 70% recomendados. As histórias do pessoal e dos residentes em casas Orpea levantam dúvidas.

Foi através de uma queixa de funcionários que as autoridades descobriram uma realidade grave num lar Orpea em Kirchberg, na Áustria. De acordo com o relatório do governo, as instalações não cumpriam a proporção mínima exigida de pessoal. Os residentes foram “sistematicamente levados para situações de incontinência”, porque não foi realizada qualquer formação sanitária, constataram os auditores. Os pacientes foram também simplesmente entubados, em vez de serem encorajados a beber. O inspector escreveu sobre um “risco grave para a vida dos residentes” e “cuidados perigosos”. No caso de um residente de 93 anos, cuja necessidade de cuidados tinha sido mal avaliada durante anos, o inspector refere um “desastre desumanizador”.

Os prestadores de cuidados na filial suíça da Orpea Senevita têm experiências semelhantes. Aí, “as condições de trabalho são bastante medíocres em comparação com outros lares e o quadro de pessoal é escasso”, diz Samuel Burri, co-responsável do sector da enfermagem no sindicato Unia.

Os resultados do inquérito aos empregados da Orpea realizado pela cientista social britânica Jane Lethbridge revela que “há um problema constante de falta de pessoal” em muitas das instalações do grupo. Na Alemanha, em Espanha e na Itália, um quarto da mão-de-obra está empregada apenas numa base temporária. Além disso, o grupo adiciona frequentemente trabalhadores administrativos, de limpeza e outros ao pessoal de enfermagem, a fim de cumprir os requisitos legais. “Isto mascara a extensão da falta de pessoal dos trabalhadores de enfermagem”, revela Lethbridge.
Queixas em Portugal

Em plena pandemia, um destes grupos privados contactou Rui Fontes com um pedido urgente, “para saber como contratar, de um momento para o outro, 30 enfermeiros”. Com uma condição: “A ganhar 7 euros à hora. Eu sou enfermeiro e disse: ‘Ou mudam isso ou não conseguem enfermeiros nenhuns…’”

Enquanto gestor de um lar privado, Rui Fontes é muito crítico da regulação sobre o sector. “As empresas cumprem a lei, que é muito permissiva. A lei não define horas de trabalho, número de médicos em função do número de utentes. Define apenas um enfermeiro por cada 20; num lar de 120 utentes isso significa seis enfermeiros, ou seja, um enfermeiro por turno. Um enfermeiro por turno para 120 pessoas é difícil de se entender e difícil de manter bons cuidados de saúde.”

Para a associação Amigos da Grande Idade a conclusão é clara: “A mobilidade de pessoal não deixa haver qualidade. Há auxiliares que trabalham quatro horas e são substituídos. É um modelo de gestão de pessoal quase de escravatura.”

José Manuel Canavarro, professor de Psicologia na Universidade de Coimbra e ex-governante do PSD, tem sido consultado por alguns destes grupos internacionais que se instalaram em Portugal. Prefere olhar para o problema de outra forma, mais positiva. “Esta é uma actividade que é semelhante às antigas indústrias, porque dá emprego a pessoas com baixas qualificações. E há uma taxa grande de emprego feminino. Empregam pessoas que teriam grande dificuldade em encontrar outros empregos.”

A associação galega de trabalhadoras de lares conhece os casos de várias portuguesas que trabalham do lado de lá da fronteira. Contudo, em Portugal não há nenhuma organização parecida. Contactámos repetidamente os sindicatos do sector (serviços sociais) e o sindicato da hotelaria (que representa as auxiliares), mas nenhuma destas estruturas quis comentar a situação laboral no sector, ou fornecer-nos os contactos de sindicalistas que trabalham em lares geridos por multinacionais.

O Governo, através do Instituto da Segurança Social, revela-nos que “foram recebidas cinco denúncias e duas reclamações” de familiares e utentes dos 12 lares geridos pela Orpea e pela Domus Vi em Portugal. Uma destas queixas está ainda a ser investigada e prende-se com a falta de recursos. A maioria das queixas tem que ver com a falta de enfermeiros e de pessoal.

De acordo com a OCDE, os Estados da UE, bem como a Grã-Bretanha, Noruega e Suíça contribuem com mais de 220 mil milhões de euros por ano para os cuidados com idosos. Os próprios utentes pagam mais de 60 mil milhões de euros dos seus próprios bolsos. E este valor está a aumentar todos os anos. “O rápido envelhecimento da população em toda a Europa será o maior motor de crescimento do mercado dos lares de idosos a longo prazo”, diz a consultora de gestão Knight Frank, elogiando o contínuo boom do sector.

De acordo com estimativas da Comissão Europeia, o custo dos cuidados a longo prazo na Europa mais do que duplicará dos actuais 1,7% para 3,9% do PIB em 2070. Isto torna o negócio completamente à prova de crise, explica Matthias Gruß, especialista para o sector do Verdi, o sindicato alemão do sector. “É um negócio muito atractivo para os investidores, porque existe um fluxo de caixa seguro.”

É isso que torna este assunto tão relevante para nós, os principais “activos” desta história de negócios.

Investigate Europe é uma equipa de jornalistas de 11 países que investiga conjuntamente temas de relevância europeia e publica em meios de comunicação social de toda a Europa.

Para além do PÚBLICO, os meios de comunicação social parceiros desta investigação incluem: Der Tagesspiegel (Alemanha), Mediapart (França), Telex (Hungria), Aftenbladet e Bergens Tidende (Noruega), Dagens Nyheter (Suécia), EfSyn (Grécia), Il Fatto Quotidiano (Itália), Open Democracy (Reino Unido), Gazeta Wyborcza (Polónia), Falter (Áustria), Trends (Bélgica), Republik (Suíça), FTM (Países Baixos).

Contribuíram ainda para esta investigação: Wojciech Cieśla, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Attila Kálmán, Nikolas Leontopoulos, Anne Jo Lexander, Maria Maggiore, Stavros Malichudis, Sigrid Melchior, Leïla Miñano, Paulo Pena, Elisa Simantke, Nico Schmidt e Harald Schumann, bem como Eelke van Ark (Follow the Money), Manuel Rico (InfoLibre), Gerlinde Poelsler (Falter), Jef Poortmans (Trends), Philipp Albrecht (Republik).

O projecto é apoiado pelos seus leitores através de doações e pela Fundação Schöpflin, a Fundação Rudolf Augstein, a Fundação Fritt-Ord, a Open Society Initiative for Europe, a Fundação Adessium, a Fundação Reva e David Logan, e a Fundação Cariplo.

Saiba mais sobre a investigação, e encontre material extra e entrevistas, aqui.


26.1.21

“A miséria de um velho não interessa a ninguém”

Carmen Garcia, in Público on-line

Há tempos uma amiga perguntava-me porque é que gosto tanto de “velhos”. E a verdade é que não sei explicar. Mas acho que os vejo quase como livros que falam e respiram, cheios de histórias para nos contar, assim os queiramos ouvir.

Ensinaram-me há muitos anos, numa aula de Enfermagem Médico-Cirúrgica, que o primeiro sinal de alerta relativo à nossa respiração é o momento em que começamos a aperceber-nos dela. E é nesse ponto, quando a respiração deixa de ser um processo natural e começa a implicar um esforço, que sabemos que alguma coisa errada se passa. Hoje, muitos anos depois, olho para ela, tão pequenina e frágil, com o rosto marcado por rugas e cheio de pêlos que nunca mais ninguém tirou, e lembro-me dessas palavras. Será que esta doente, com nome de menina perdida no país das maravilhas, percebeu o momento em que os pulmões lhe começaram a falhar?

De repente tomo consciência que não sei quase nada sobre ela e abro a pasta que lhe repousa à cabeceira. Não sei exactamente porque o faço, uma vez que os escassos ciclos respiratórios por minuto indicam que a hora da partida se aproxima. Ainda assim, folheio a pasta laranja e descubro-lhe o nome completo, o subsistema de saúde e o contacto do filho. Encontro também uma tabela muito básica com a hora e dosagem da medicação habitual e umas análises com mais de dois anos. Como já devia esperar, fico a saber pouco mais que nada. E o que é verdadeiramente triste é que este é o normal nos doentes que chegam de lares, reduzidos a pastas de arquivo com informação demasiado sintetizada, muitas vezes desactualizada, e quase sempre paupérrimas no que realmente importa: quem é de facto aquela pessoa e quais as ocorrências de saúde relevantes dos últimos meses.

Já escrevi muitas vezes sobre a institucionalização de idosos e creio ser mais ou menos do conhecimento geral que defendo uma reformulação completa do modelo de funcionamento dos lares portugueses. O ponto é que, sempre que abordo esta questão, acabo a sentir-me uma espécie de Santo António a pregar aos peixes. É como se, salvo algumas e honrosas excepções, ninguém estivesse verdadeiramente preocupado com a forma como tratamos os nossos mais velhos. E situações que enlouqueceriam a maioria das pessoas se acontecessem na creche dos filhos parecem ser quase desculpáveis no lar onde residem pais ou avós.

Pensemos, por exemplo, no caso dos idosos amarrados a cadeirões e cadeiras de rodas, com as tão famosas imobilizações que servem, segundo é transmitido às famílias, para prevenir quedas e acidentes (nunca se dizendo, é claro, que a esmagadora maioria dos estudos prova que a contenção física não só não reduz o risco de acidentes de forma significativa como é um atentado à integridade do imobilizado, esteja ou não orientado). Aceitaríamos nós ver os nossos filhos imobilizados nas creches para evitar acidentes? Pois… “Mas os idosos são mais frágeis e uma fractura nestas idades tem consequências que não terá durante a infância”, dirão alguns. E eu concordo. É por isso que é necessário, com urgência, voltar a calcular os rácios profissionais/utentes que, ao contrário do esperado, são piores agora do que em 1989.

A esperança média de vida aumentou muito nos últimos anos e é negligente ignorar que o perfil dos utentes a residir nestas instituições também. Cada vez mais os idosos apresentam múltiplas patologias e a esmagadora maioria encontra-se polimedicada. O grau de dependência de quem procura este tipo de apoio também aumentou o que fez com que, cada vez mais, os lares se tornassem mais parecidos com pequenas unidades de saúde do que com simples estruturas residenciais. E é por isso que é urgente que se legisle no sentido de tornar obrigatório que os lares tenham enfermeiro nas instalações 24 horas por dia, sendo que, e nunca pensei escrever isto, seria também importante recuarmos 25 anos e voltarmos ao rácio de um enfermeiro por cada dez utentes, pelo menos em lares onde haja utentes muito dependentes, em vez do actual (e perigoso) rácio de um enfermeiro para cada 20.

Mas as mudanças a realizar não devem ficar por aqui. Numa altura em que vivemos numa sociedade em que tudo é informatizado, não faz sentido que não exista um qualquer software informático transversal a todos os lares, com campos de preenchimento obrigatório e auditorias frequentes, e ao qual seja possível aceder através do Serviço Nacional de Saúde. Só esta mudança facilitaria a vida dos profissionais de uma maneira que poucos imaginam. É que quem trabalha neste meio sabe a quantidade de tempo despropositada que os profissionais de saúde perdem em telefonemas com familiares e instituições, em busca de informação clínica relevante que, não raras vezes, nunca chega a aparecer.

Outro ponto importante passa pela necessidade de aumentar a formação dos profissionais de lares. Na minha opinião que, neste caso, é a de quem conhece o terreno, faria todo o sentido que se criassem equipas distritais multidisciplinares que assegurassem pelo menos duas formações anuais em cada lar. Nessas formações deveriam tratar-se temas práticos como o posicionamento dos utentes para evitar o aparecimento de úlceras de pressão e a manipulação de cateteres urinários, mas também deveriam ser abordadas outras questões, mais complexas, muito em défice nos lares portugueses. Um bom exemplo é a infantilização constante do idoso que, aos 80 anos, tem de ouvir coisas como “Vá lá, só mais uma colherzinha de sopinha”, tal como eu digo ao meu filho de dois.

De inspecções então prefiro nem falar. Tenho só a esperança de que um dia alguém perceba que inspecções que acontecem com aviso prévio nunca vão produzir o objectivo desejado. E esse objectivo tem necessariamente de passar pela melhoria dos cuidados prestados, o aumento do conforto e o respeito absoluto pela individualidade, escolhas e desejos daqueles que já foram novos um dia.

Há tempos uma amiga perguntava-me porque é que gosto tanto de “velhos”. E a verdade é que não sei explicar. Mas acho que os vejo quase como livros que falam e respiram, cheios de histórias para nos contar, assim os queiramos ouvir. É por isso que não suporto ouvir que os idosos são como as crianças. Como é que se compara um livro em branco com uma história quase completa?

A situação de pandemia que vivemos expôs ao país as fragilidades que quem trabalha ou trabalhou em lares conhece há demasiado tempo. E tudo o que espero é que, quando a tempestade acalmar, e depois de pagarmos essas fragilidades com centenas de mortos, saibamos que muitas vezes é preciso destruir para voltar a erguer melhor e mais forte. Há muito trabalho a fazer nos lares portugueses. Muito mais do que alguma vez conseguirei resumir em sete mil caracteres.

Victor Hugo escreveu, em Os Miseráveis, que “a miséria de um velho não interessa a ninguém”. E eu quero muito que ele esteja errado. Mais que não seja porque seja-nos a vida favorável e todos lá chegaremos. Pela minha parte, garanto que estou disponível para dar o corpo a esta luta. Só não agora – porque agora vou voltar para a cabeceira da Alice, dar-lhe a mão e acompanhá-la nos últimos minutos deste lado. Sou enfermeira. E comigo ninguém parte sozinho.

14.12.20

Ordem de fecho recebida por 90 lares desde Março em linha com anos anteriores

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Ainda há 184 processos em curso, o que poderá ter impacto nos dados globais, mas para já não se pode falar num pico. Em 2018, a Segurança Social mandou fechar 109 lares. No ano anterior, 133.

Para já, o número de lares de idosos com ordem de encerramento não se está a distanciar do habitual. Desde o início da pandemia de covid-19, 90 receberam tal indicação, 23 com carácter de urgência.

Os dados foram avançados pelo Jornal de Notícias este domingo. Entre Março e Novembro, foram identificados 565 lares de idosos a funcionar sem licença. A Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social concluiu processos referentes a 381. Tinha ainda em curso 184.

Recuperando dados dos anos anteriores, não se detecta qualquer pico. No ano passado, por esta altura, a Segurança Social tinha mandado fechar as portas de 93 lares. Em 2018, fez isso com 109. No ano anterior, com 133. Em 2016, tinham sido 88. E em 2015 outros 92.

Esse total de 90 encerramentos não é real”, reitera João Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso. “A larga maioria são ordens de encerramento voluntário em 30 dias. Em muitos casos nem são cumpridas.”

Os cenários podem ser muito diversos. Acontece as anomalias serem menores, não representarem qualquer perigo para quem lá reside. Alguns até têm boas condições, mas perdem-se em detalhes burocráticos e funcionam sem licenciamento. Conforme o caso, os inspectores podem só passar um auto de contra-ordenação ou dar um prazo para corrigir as anomalias identificadas ou encerrar voluntariamente. Também acontece depararem-se com situações que põem em causa a saúde e a segurança dos residentes e aí dão ordem de encerramento com carácter de urgência e à retirada imediata dos idosos.

Com efeito, nem sempre a ordem é acatada. De Março a Novembro, a Segurança Social remeteu para o Ministério Público 39 denúncias de crime de desobediência referentes a lares que receberam ordem de encerramento e se mantiveram a funcionar.

Cuidar de quem trabalha nos lares de idosos


“Não é muito habitual”, comenta aquele dirigente associativo. “Parece que passou a ser mais frequente. Ainda bem que assim é. A denúncia de crime de desobediência tem de ser feita, embora não resolva o principal problema, que é não encerrarem.”

O comum é estes casos irem chegando aos serviços através de denúncia. Com a pandemia, o risco acrescido que o coronavírus representa para os idosos e a incógnita sobre a realidade destes lares, a Segurança Social decidiu tomar uma atitude proactiva.

Em Abril, o Instituto da Segurança Social lavrou um protocolo e envolveu diversas entidades, com forte participação das comissões municipais de Protecção Civil, presididas pelos presidentes de câmara. Tinham de identificar estas estruturas para que tal informação fosse prestada à saúde e às forças de segurança.

Há lares que foram sinalizados por surtos que obrigaram os responsáveis a pedir ajuda. A maior parte, porém, decorre de acções de fiscalização desenvolvidas pelas forças de segurança, pela protecção civil e pelas autoridades de saúde.

municípios que viram duplicar ou mesmo triplicar a lista. Santarém é, talvez, o caso mais conhecido. A Segurança Social julgava haver ali 17 lares ilegais. Com este esforço conjunto, a lista num instante chegou aos 42.

O que justifica a existência de lares clandestinos? Um conjunto de circunstâncias, responde Lino Maia, presidente da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade. “Por um lado, é falta de lugares – há muito mais procura do que oferta”, começa por dizer. Por outro, há o preço. “Muitas vezes, podem praticar preços mais convidativos porque escapam a um conjunto de exigências. As famílias recorrem a estes lares porque fica mais barato.”

Abriram em Outubro as candidaturas ao PARES 3.0, um programa de construção e requalificação de equipamentos sociais, incluindo lares. É o maior investimento de sempre no alargamento da rede de respostas sociais, com uma dotação de 110 milhões de euros. Destina-se apenas a instituições do sector social.

As candidaturas decorrem até ao fim de Dezembro. “É provável que haja bastantes candidaturas, mas para fazer um lar ou aumentar a capacidade de um lar há que ter meios próprios”, lembra Lino Maia. "Haverá sempre candidaturas a alargamento da capacidade, mas não certamente a corresponder à necessidade.” Parece-lhe que as circunstâncias não são as melhores. A pandemia trouxe um “agravamento de custos”. A disponibilidade financeira não é igual ao que era.

20.5.20

Ordem quer lares de idosos dirigidos por enfermeiros

Milene Marques, in JN

A Ordem dos Enfermeiros quer que as direções técnicas dos lares de idosos sejam entregues aos enfermeiros e está a preparar uma proposta nesse sentido para a alteração da lei.
O anúncio foi feito pela bastonária Ana Rita Cavaco, na tarde desta terça-feira, durante o webinar que assinalou o Dia Internacional do Enfermeiro, sob o tema "Os enfermeiros e os desafios para a saúde".
Morreram 450 idosos infetados em lares desde o início do surto

Nesta pandemia, "ficou a nu a situação dos nossos idosos em Portugal. As pessoas preferem não ir para lares, mas sobretudo para estes lares como os temos hoje organizados. A lei e as estruturas estão completamente desadequadas. As direções técnicas dos lares têm que estar entregues aos enfermeiros", defendeu Ana Rita Cavaco. "Queremos ter lares diferentes de há 30 anos. Hoje as pessoas estão mais dependentes, têm muito mais doenças e precisam de muitos mais cuidados", disse.

Em 2017 em Portugal, mais de dois terços das pessoas com 65 anos ou mais de idade, que recebiam cuidados de longa duração, estavam institucionalizadas, segundo dados apresentados por Abel Paiva, professor da Escola Superior de Enfermagem do Porto. Numa investigação sobre "o melhor cuidado para si, se um dia experimentar dependência no autocuidado", 48,6% dos inquiridos responderam que preferiam ficar em casa se houvesse condições e 11,4% optavam por ficar em casa independentemente de estarem ou não reunidas as condições.
Visitas a lares de idosos podem ser retomadas a partir de dia 18

Para a bastonária dos Enfermeiros não se pode desperdiçar a "oportunidade de mudança", nesta altura de pandemia, para se investir também nos cuidados de saúde primários, que "precisam de equipas disponíveis 24 horas por dia". Para isso diz que é necessário "mudar mentalidades" no país e priorizar o financiamento dos cuidados de saúde primários, com mais dinheiro, "em vez dos bancos".

13.5.20

Os voluntários que tiveram de entrar para a linha da frente nos lares

in o Observador

O Covid-19 alterou as rotinas dos lares, não só devido aos casos positivos entre idosos, mas também porque afastou funcionários de funções e tiveram de ser voluntários a entrar para a linha da frente.

A pandemia de covid-19 alterou as rotinas dos lares, não só devido aos casos positivos entre os idosos, mas também porque afastou funcionários de funções e tiveram de ser voluntários a entrar para a ‘linha da frente’.
Mara Carneiro tem 23 anos e, como voluntária, ajudou a cuidar dos utentes infetados com o novo coronavírus no Lar Nossa Senhora da Veiga, em Foz Côa (Guarda). Esta estudante de Educação Social de Paços de Ferreira esteve 15 dias seguidos a cuidar dos idosos e a colaborar na higienização dos espaços comuns da instituição.

“Vivíamos o tempo que passámos no lar a cuidar dos idosos e nem nos lembrávamos que estávamos a lidar com pessoas infetadas pela covid-19, apesar de se tratar de uma doença altamente contagiosa”, salientou a voluntária.
Já Ana Rita Carvalho, de 22 anos, foi de Vila Nova de Gaia para Foz Côa e trabalhou com espírito de missão para ajudar a cuidar de “quem mais precisava” em tempo de pandemia.


“Não hesitei em ajudar a cuidar dos idosos deste lar, porque sabíamos que o maior risco associado à covid-19 estava neste tipo de equipamento social. Não ficámos de braços cruzados e decidimos ajudar quem mais precisava de cuidados em tempo de pandemia, tanto os infetados como os não infetados”, relatou.

Pelo lar de Foz Côa passaram 44 voluntários de todo o país e, neste momento, ainda estão 11 na instituição. Para o provedor da Misericórdia de Foz Côa, António Morgado, se não fossem estes voluntários, a instituição teria de recorrer à proteção civil distrital ou local, já que não havia capacidade para cuidar dos idosos. “Todos os voluntários demonstram uma dedicação extrema e solidária no tratamento dos idosos. Só temos de elogiar todo o comportamento e o espírito de entrega destes jovens voluntários”, concretizou o responsável.

Tânia Fernandes, aluna do terceiro ano da licenciatura em enfermagem na Universidade do Minho é voluntária num lar de idosos de Arcos de Valdevez, onde o surto do novo coronavírus registou vários casos de infeção e causou a morte, segundo os últimos dados, a seis utentes. Com a experiência adquirida noutras ações de voluntariado, a estudante não hesitou quando, em abril, a Câmara daquele concelho do distrito de Viana do Castelo abriu inscrições ‘online’ para o Banco Local de Voluntariado. Aos 21 anos, o desejo de ajudar foi mais forte do que “o receio de ficar infetada ou de levar o vírus para o seio familiar”.

“Se esta pandemia ocorresse dentro de uns anos, eu já estaria na linha da frente enquanto enfermeira. Neste caso, embora ainda não esteja a desempenhar essas funções, estou exposta a um risco com o qual vou lidar diariamente no futuro”, referiu.
Para Tânia Fernandes, as 12 horas de voluntariado no lar, uma das opções que escolheu quando se inscreveu na bolsa de voluntariado, a par do apoio a crianças com necessidades especiais, vão ser “muito importantes no futuro”. “Neste momento, estou a viver a história e a oportunidade de ter uma visão diferente de quando somos meros estudantes. Estar do outro lado e ver os profissionais de saúde em ação e aprender com eles é algo impagável e uma experiência muito enriquecedora”, apontou.

O presidente da Câmara de Arcos de Valdevez explicou que a colocação dos voluntários é feita em articulação entre a autarquia e as instituições particulares de solidariedade social que necessitam de recursos humanos.

Lar em Alverca não conseguiu reunir condições para ter voluntários
Contudo, nem sempre o recurso ao voluntariado é possível, como aconteceu na Misericórdia de Alverca, onde em abril foram registados mais de 60 casos positivos de covid-19, entre os quais 18 funcionários. Segundo contou à Lusa o presidente da Misericórdia de Alverca, João Gaspar Simões, a instituição do concelho de Vila Franca de Xira, no distrito de Lisboa, tentou junto de algumas plataformas de voluntários encontrar pessoas que pudessem ajudar nesta fase.

Mas, acabaram por verificar que para acionar essa solução seria necessário preencher determinadas condições que “a instituição, que estava num caos”, naquele momento não conseguia assegurar, como alojamento para os voluntários. “Depende da articulação entre entidades públicas para dar casa a essas pessoas durante um determinado período de tempo, com determinadas condições e isso não é fácil”, afirmou João Gaspar Simões.
Por isso, a solução para a Misericórdia de Alverca encontrar recursos humanos passou por uma parceria com a Segurança Social, que ativou um protocolo que tinha sido feito com a Cruz Vermelha.

“Os recursos humanos que temos hoje são recursos humanos enviado pela Cruz Vermelha através da Segurança Social, mas são pessoas que estão a ser pagas”, disse o responsável, salientando que o facto de serem remuneradas em nada retira o “espírito de missão” que demonstram.

Assim, voluntários no sentido ‘estrito’ do termo, neste momento a Misericórdia de Alverca tem apenas uma pessoa, “que já trabalhou há muitos anos” na instituição e que se ofereceu para ajudar neste período mais difícil.

4.5.20

Cuidar em tempo de pandemia

Claudio Carvalho, in Público on-line

Para que se promova e garanta uma cultura organizacional que valorize o cuidado centrado na pessoa, muito há para melhorar, partindo da parca fatia orçamental canalizada, a fraca avaliação da qualidade de serviços e bem-estar e a deficitária especialização em cuidados e empowerment e formação de equipas (principalmente num segmento profissional, como auxiliares de acção directa).

Várias fontes indicam-nos que Portugal está a passar por um cenário demográfico sem precedentes, onde enverga a quinta posição enquanto país mais envelhecido do mundo, precedido por Finlândia, Grécia, Itália e Japão. Partindo do pressuposto que o quantitativo de pessoas com mais de 65 anos está a aumentar e com maior propensão para a comorbilidade, quando o envelhecimento e um surto pandémico, como o do novo coronavírus, se combinam, tendem a ser vistos como extremamente problemáticos.

Considerando a heterogeneidade das pessoas mais velhas que vivem em resposta social como as Estruturas Residenciais Para Pessoas Idosas, torna-se imperativo a criação de estratégias geradoras de bem-estar, como a elaboração ou adaptação de espaços devidamente articulados, a criação e manutenção de uma equipa multidisciplinar, a valorização e respeito pela pessoa na garantia da sua autonomia e, sobretudo, a conservação ou geração de relacionamento e criação de laços empáticos. Um role de mecanismos que contemplam uma filosofia de cuidados defendida por Carl Rogers, intitulada person-centred care (abordagem centrada na pessoa). Ademais, a evidência científica aponta que, além de melhorarem a vida das pessoas institucionalizadas, as acções centradas na pessoa estão também associadas a efeitos positivos na equipa de profissionais, nos domínios da satisfação e capacidade de atendimento individualizado, redução de stress e burnout.

Mas como desenvolver esta abordagem em tempos de pandemia, quando aos nossos idosos residentes em resposta social é imputada a possibilidade de receberem visitas dos seus familiares, acrescendo a escassez do afecto e o peso da finitude? E onde muitos dos profissionais saem para trabalhar com medo e sem garantia alguma que não retomam infectados a suas casas, correndo o risco de infectar os seus familiares?

Tendo em conta que a abordagem centrada na pessoa se pode constituir como uma filosofia cuja implementação se torna exigente, soma-se ainda uma conjuntura social e económica sem precedentes que contribui para um exponencial incremento de lacunas e vicissitudes no seio das respostas afectas ao terceiro sector.

Ainda que o terceiro sector não tenha sido pensado em caso de pandemia, poder-se-á constatar que, mesmo de forma hercúlea e no limiar das suas capacidades financeiras, as instituições produzem esforços e sinergias na garantia de uma prestação de cuidados de qualidade, prevenindo, porventura, um cenário de contágio, como servem de exemplo:

- a capacidade de realizar novos testes à covid-19;
- a elaboração de planos de contingência, ainda que sem competências para tal;
- a consciencialização face à problemática do coronavírus;
- a confecção de máscaras de protecção individual com apoio de iniciativas da sociedade civil;
- a adaptação das estratégias de comunicação com familiares das pessoas institucionalizadas, através de chamadas telefónicas ou videochamada, por forma a esbater o peso da saudade;
- o incentivo à utilização de competências remanescentes fazendo com que a pessoa se sinta útil;
- a elaboração de actividades significativas no reconhecimento da personalidade e escolhas da pessoa;
- conservação das rotinas espirituais e religiosas, agora através da emissão de rádio ou televisão;
- e a capacidade de saber escutar e suportar a pessoa, tendo em conta o impacto que uma crise pandémica possa espoletar, como o medo, desconforto e nervosismo.

Para que, efectivamente, se promova e garanta uma cultura organizacional que valorize o cuidado centrado na pessoa, muito há para melhorar, partindo da parca fatia orçamental canalizada, a fraca avaliação da qualidade de serviços e bem-estar e a deficitária especialização em cuidados e empowerment e formação de equipas (principalmente num segmento profissional, como auxiliares de acção directa).

A própria gestão e insuficiência de recursos humanos e respectivos turnos, quer por força de eventuais baixas médicas ou por forçosa necessidade dos profissionais permanecerem em casa para cuidar dos seus filhos, ou o aconselhamento por parte do governo às instituições de poderem recorrer a bolsas de voluntariado face à carência de recursos humanos, o que não permite apenas observar a desvalorização na criação de valor daqueles que se formam em prestação de cuidados no seio do IEFP e outras entidades, como nos conduz a um pensamento perverso de que qualquer pessoa pode ou tem competências técnicas para cuidar dos nossos idosos, constituem também uma panóplia de desafios para uma melhor intervenção.


28.4.20

Lares de idosos: há utentes “a desistir da vida” e funcionários marginalizados por colegas e familiares

Natália Faria (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografia), in Público on-line

O custo da pandemia nos lares de idosos vai muito para além das mortes por covid-19. Há demências a agravar-se, declínios cognitivos e utentes que, sentindo-se abandonados pelos familiares, desistem de viver. Os funcionários que cuidam dos infectados contam, a medo, que os restantes colegas passaram a evitá-los. Nalguns casos, a própria família fechou-lhes as portas.

A gata amarela que se passeia pelos corredores do Lar Dra. Leonor Beleza, em Santo Tirso, é hoje o único resquício de normalidade na instituição. “Tudo o que contribuía para um ambiente familiar e de casa desapareceu: o lar tornou-se frio e distante”, lamenta Ana Luísa Carvalho, coordenadora desta estrutura criada em 1986 pela Santa Casa da Misericórdia, para acolher utentes com grandes dependências. Aos estragos causados pelo novo coronavírus (que infectou 28 funcionários e 44 utentes, dos quais sete morreram), soma-se a preocupação pela deterioração mental e cognitiva dos que recuperaram ou que nem chegaram a ser infectados.



“O declínio é evidente. Há utentes que deixaram de permitir a colocação de próteses dentárias, porque deixaram de reconhecer os funcionários, outros que deixaram de se alimentar e aos quais tivemos que colocar sondas. Faltam-lhes as rotinas, as visitas dos familiares e muitas das actividades que promovíamos para os estimular”, resume.

Mal escondidas pela máscara, as olheiras em torno dos olhos de Ana Luísa acusam muito cansaço. Esta psicóloga está a trabalhar 12 a 16 horas por dia, desde que, no dia 16 de Março, foi detectado o primeiro caso de contágio num dos colaboradores da instituição.

Ana Luísa Carvalho, psicóloga e coordenadora do Lar drª Leonor Beleza, onde, num universo de 93 utentes, 44 foram infectados

“Tomámos cedo a decisão de não retirar nenhum utente daqui. São pessoas muito frágeis, alguns dos quais só com a deslocação teriam falecido”, explica. Mas, com uma equipa drasticamente reduzida, foi difícil garantir os cuidados necessários aos utentes. Entre a coordenação geral dos trabalhos, a procura por máscaras, testes, viseiras e batas que não se encontravam no mercado, o atendimento telefónico dos familiares que começaram a ligar, aflitos, Ana Luísa deu por si a dar banho e comida aos utentes, a mudar-lhes fraldas.

De uma hora para a outra, o lar fechou-se sobre si próprio, sem que do lado de lá da Linha SNS alguma voz se prontificasse a ajudar. “O primeiro doente suspeito esteve sete dias à espera de ser testado”, recorda. E garante que, sem os pequenos gestos heróicos dos funcionários do lar, “sem a parte humana que os levou a dedicarem-se aos utentes, muitos mais teriam morrido”. É uma ideia que há-de repetir variadas vezes, sublinhando que, num corpo de 67 funcionários com uma média de idades perto dos 60 anos, e entre os quais abundavam os motivos para se resguardarem em casa (por serem imunodepressivos, terem familiares doentes ou pais idosos, por exemplo), “todos quiseram ajudar”. “Aliás, entre os 28 que acabaram por ficar infectados, muitos queriam continuar aqui. Tivemos que lhes explicar que, em termos éticos, isso não era possível.”

A gata "Beleza" foi a única referência dos utentes que se manteve inalterada

Ana Luísa Carvalho deixou de ver a filha, para acautelar o risco de contágio. Mas, durante esta pausa que faz no seu gabinete, lembra que a batalha que estão a travar vai muito para além do combate ao contágio. E é uma batalha que está, em grande parte, perdida. “Estamos a conseguir salvar as pessoas e a protegê-las em termos de saúde, mas elas nunca mais vão ser o que eram. Temos demências que se estão a agravar imenso”, nota.

A factura da covid-19 já vai muito acima dos sete utentes que morreram com a doença. “Termos perdido sete pessoas, neste universo total de 93 utentes, é uma vitória, mas sinto que vamos perder muitos mais, porque estamos a vê-los todos os dias a desistir da vida.”

Salvar estes doentes, maioritariamente idosos, do contágio implica expô-los a muitos outros perigos não tão evidentes, mas cujos efeitos são igualmente letais: “Muitos sentem que a família os abandonou, por mais que tentemos explicar-lhes o que se passa lá fora. Mas eles não vêem as lojas fechadas, as ruas vazias. E o facto de terem deixado de reconhecer as funcionárias, por causa das máscaras, das batas e das viseiras, ou simplesmente por terem tido que mudar de quarto, desorganiza-os.”

Na fase inicial do contágio, o lar não conseguia comprar equipamento de protecção

E porque alguns dos utentes “só reagem à gata”, que é o único ser vivo que se passeia pelo lar dispensando máscara e viseira, os funcionários incluíram no seu rol de tarefas desinfectar-lhe as patas sempre que a vêem. É que a gata tornou-se exímia em contornar as toalhas embebidas em desinfectante que foram colocadas no chão, à entrada de cada divisória. Como todas as portas foram abertas, para minimizar o risco de contágio por via do toque nas maçanetas, Beleza – assim se chama a gata – sobe e desce os pisos, sem distinguir entre os que acolhem infectados e os restantes.

Medo e portas fechadas

As autoridades sanitárias acordaram tarde para a realidade dos lares de idosos ou dependentes. A directora-geral da Saúde, Graça Freitas, revelou, quinta-feira, que das 820 mortes registadas até àquele dia, 327 foram de utentes de lares. São quase 40%, numa proporção que, de resto, é ainda maior noutros países. E, neste lar, parece confirmar-se aquilo que a União das Misericórdias Portuguesas e a Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social têm repetido: a situação dos lares foi inicialmente descurada, nomeadamente pelo Ministério da Saúde, que concentrou os esforços nos hospitais. Só no sábado é que o ministério publicou um despacho que prevê que o acompanhamento clínico dos utentes dos lares passe a ser feito pelos médicos e enfermeiros dos centros de saúde.

No início da pandemia, quando os funcionários deste lar suspeitaram do primeiro caso de contágio num dos utentes, na Linha SNS 24 recusaram prescrever o teste. “Ele tinha períodos de febre e tosse e foi imediatamente isolado. Mas só ao fim de sete dias conseguimos fazer nós o teste, a expensas próprias, porque sabíamos que não podíamos continuar à espera do SNS numa estrutura que era um rastilho para a doença”, recorda outra psicóloga da instituição, Sara Almeida e Sousa, mencionando os “dias tenebrosos” em que havia 93 utentes vulneráveis para proteger e “não havia testes nem máscaras nem viseiras nem gel desinfectante que se pudessem comprar nem um delegado de Saúde” que se disponibilizasse a ir ao local.

Quando a Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso conseguiu, finalmente, arranjar no mercado os testes para fazer a despistagem, a expensas próprias, constatou que havia os referidos 44 utentes e 28 colaboradores infectados. Por essa altura, em obediência ao respectivo plano de contingência, já os familiares dos utentes estavam impedidos de entrar. Para colmatar as falhas de pessoal, as equipas passaram a fazer turnos de 12 horas. “No início, houve pessoas com vinte e tal anos de experiência a entrar em pânico e a fugir. Peguei em quatro das funcionárias mais antigas e mais experientes, que já tinham tratado doentes com sida, e disse-lhes: ‘Alguém vai ter de continuar aqui’. Chorámos todos, mas era preciso reagir”.

E reagiram. Os utentes infectados foram transferidos para o piso superior, os elevadores desligados. A passagem de turno passou a ser feita por telefone e com recurso ao livro de ocorrências. O telefone do lar tocava ininterruptamente sem que ninguém o atendesse, porque a prioridade era outra. “Cheguei a estar até às 2h a devolver chamadas de familiares. A primeira coisa que lhes dizia era ‘respire fundo’, porque já sabia que aquele filho ou marido ou irmão tinha estado dois ou três dias a tentar telefonar”, recorda a coordenadora.

Quando recebeu o segundo teste negativo, a ajudante de lar Adelaide Babo, 44 anos, apressou-se a regressar aos "seus" utentes

Aos funcionários que ficaram e àqueles que vieram de outras valências da Santa Casa foi pedido que lavassem a bata todos os dias em casa, a 60 graus. À entrada, passaram a tomar banho e a medir a temperatura, num procedimento que se repete várias vezes ao dia. Vencido o medo, tiveram de superar o desconforto de terem de alimentar e lavar idosos estando tolhidos por máscaras, viseiras, protectores de cabeça e batas descartáveis em cima da bata normal.

Mas o pior nem foi isso. O pior foi que, nas ruas da cidade, dentro do próprio lar e até das respectivas famílias, muitos destes funcionários começaram a ser encarados como leprosos. “Uma das funcionárias, que mandei para casa por ter estado em contacto com alguém positivo, veio para trás, a chorar, porque o marido e a filha não a deixaram entrar em casa”, recorda Ana Luísa Carvalho. “Quando tentámos telefonar-lhes, a filha tinha desligado o telefone. E o marido alegou que, se ela tinha sido contagiada aqui, tínhamos de lhe arranjar um quarto para ela dormir”.

Rosa Costa, ajudante de lar, 62 anos, ainda não se habituou a ver vazia a cama da "sua utente".

Vestiários esvaziam-se quando chegam “os dos infectados”

Noutro caso, um marido passou a recusar a comida que a mulher fazia em casa, com medo de ser contagiado. “E houve ainda uma colaboradora que veio pedir-nos que falássemos com a filha porque, caso contrário, ela nunca a deixaria utilizar a casa de banho”, prossegue a psicóloga. “Todos os funcionários foram marginalizados. O isolamento que sentimos, para além de tudo o que estávamos a viver dentro do lar, foi uma coisa inimaginável.” E ainda é. A estigmatização começa, aliás, dentro do próprio lar. “Os colegas dos outros pisos, se nos virem chegar aos vestiários, desaparecem logo, ou não chegam a entrar”, confirma Adelaide Babo, uma ajudante de lar com 44 anos que foi contagiada e que, entretanto, já pôde regressar ao trabalho, precisamente “no piso dos infectados”.

“É urgente pensarmos em novos tipos de alojamento colectivo”

Há várias lições a tirar da forma como a covid-19 tem feito vítimas dentro dos lares de idosos, alerta o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares. Quando a poeira desta pandemia assentar – acrescenta -, uma das prioridades deverá ser criar na orgânica governamental uma estrutura dedicada a encarar de frente a forma como se envelhece em Portugal. “Tal como existe uma secretaria de Estado para a Juventude, terá de existir uma para os idosos”, exorta este responsável, para sustentar que, num país em acelerado processo de envelhecimento demográfico, “é urgente começar a pensar em novos tipos de alojamento colectivo”.

“Não é possível continuarmos a ter lares para oitenta pessoas ou mais. E também não é possível continuarmos a ignorar a quantidade de lares clandestinos que temos no país e onde vemos idosos depositados na cave ou na garagem”, constata o provedor, desafiando a sociedade a dar “um grito de cidadania” e a exigir investimentos sérios em soluções residenciais mais próximas do modelo de co-housing. “Cada pessoa tem direito a um quarto e a uma sala e pode partilhar os serviços comuns, de convívio, restauração e lavandaria”, exemplifica, dizendo-se convicto de que esta exigência se imporá também porque o perfil dos idosos está em clara mudança. “Estão a tornar-se muito mais exigentes do ponto de vista cultural”, sublinha, aproveitando para apontar “o subfinanciamento crónico deste sector” e as responsabilidades partilhadas “por todos os partidos que só se aproximam dos lares na proximidade de eleições”.

No corredor da ala masculina, Adelaide conta que a única dificuldade respiratória que sentiu foi quando o resultado do teste de despistagem foi positivo. “Fiquei aflita não por mim, mas pela minha família e pelos utentes. Gosto muito deles.” A máscara e a viseira que lhe escondem o rosto deixam perceber o sorriso quando confessa que a primeira pessoa a quem ligou a contar que o resultado do segundo teste tinha sido negativo foi à coordenadora do lar. “Nem esperei para contar ao meu marido. Queria era voltar a trabalhar”.

E ainda hoje, tantos dias passados a trabalhar entre idosos infectados, acontece-lhe pôr-se a chorar. “Fico sempre admirada e contente ao ver como eles estão a ficar melhor. No primeiro dia do regresso ao trabalho, voltei toda contente para casa porque a D. Célia conseguiu segurar-se muito bem sozinha no banho. Para a idade que têm, os heróis são eles”, assegura.

Na ala feminina do mesmo “piso de infectados”, Rosa Costa, de 62 anos, que também já se habitou a ver o vestiário esvaziar-se, como que por magia, quando chega a sua vez de se preparar para regressar a casa, garante que o que lhe dói é olhar para a cama deixada vaga pela utente a que se tinha habituado a chamar sua. “Quem, como eu, trabalha aqui há 30 anos, cria uma família cá dentro. E há alguns a que nos apegamos mais”, desculpa-se.

Vale-lhe a constatação de que, na sua maioria, os infectados estão a recuperar. Cinco deles, aliás, já voltaram ao “piso normal”. Deverá ser, em breve, o caso da utente que vemos sentada a uma mesa, muito compenetrada, de rádio e auscultadores na cabeça. “Foi uma das que foram para o hospital e que julgávamos que não conseguiria dar a volta. Tem 91 anos. Mas, como vê, está óptima. E voltou a ouvir a música de que gosta”, alegra-se.

Transferida de um infantário para o lar, Maria de Fátima, 59 anos, sente agora que está onde é mais precisa.

No corredor, Phil Collins canta Take a look at me now. Mesmo sabendo que o que a esperava eram lágrimas, Augusta Silva, outra “ajudante de lar” que, aos 61 anos, tinha já “metido os papéis” para a reforma, antecipou o regresso de férias ao trabalho quando a pandemia começou a somar vítimas dentro do lar. “Não vou esconder que me assustava isto tudo, até porque tenho uma filha com paralisia cerebral e um marido com diabetes”, reconhece. Mas deu a volta ao medo. Agora, não entra em casa sem primeiro tomar banho num WC exterior e vestir um pijama lavado. Passou a comer sozinha. Nas folgas, senta-se com a família, mas numa ponta afastada da mesa. “Também não ando muito chegada ao homem”, brinca, preparando-se para retomar a distribuição das refeições pelos quartos.

Maria de Fátima, que a esta hora está já a limpar a copa do lar, passou a dormir na sala. Com 54 anos e um marido diabético, trabalhava num infantário da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso que entretanto recorreu ao lay-off. Quando foi requisitada para o lar, chorou o dia todo. “Vir das crianças para aqui foi uma mudança radical”, justifica-se.

“Num dos dias, o nervoso era tanto que não parou de sangrar do nariz”, recorda a coordenadora. A agora “ajudante de lar” não nega. Mas garante que, ao fim dos primeiros dias “a fazer tudo o que viesse à rede”, se apercebeu da importância de estar ali. “Os idosos precisam de nós. Precisam de nós para sobreviver. E, quando chegar a nossa vez, como vai ser?...”