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23.5.22

O direito aos cuidados no nosso envelhecimento

 Filipa Alves, opinião, in o Observador

Tendencialmente, a institucionalização deve ser a última das respostas a ser dada às pessoas idosas. Teremos de implementar novos conceitos, como aldeias seniores, que se distingam pelos serviços.

Em 2050, as pessoas com 65 anos ou mais vão representar 25 por cento da população que vive no nosso país. A Organização Mundial da Saúde tem alertado para esta alteração demográfica, semelhante noutros pontos da Europa, defendendo a necessidade de existirem mais cuidados integrados, uma orientação para a avaliação centrada na pessoa e o reforço dos cuidados primários. Outra prioridade é a redução do risco de declínio cognitivo e demência.

O envelhecimento ativo pode ser parte da solução, otimizando a capacidade intrínseca e a habilidade funcional da pessoa idosa. No entanto, exigem-se melhorias no acesso a diagnósticos, vacinas, medicamentos essenciais e tecnologias auxiliares.

O encorajamento e reforço da utilização do digital nos cuidados integrados é outro caminho, sendo necessário eliminar potenciais barreiras. Aqui, também entra em equação a própria sustentabilidade dos sistemas de saúde, que estiveram sob pressão acrescida durante a pandemia e viram em novas ferramentas uma resposta alternativa. Paralelamente, será importante desenvolver uma força de trabalho mobilizada, adequadamente treinada e com mais competências na área da geriatria e gerontologia. Público e privado são chamados a complementarem-se, em termos de recursos e na sua relação com os mecanismos de proteção social.

Mais do que nunca, viver mais significa viver melhor. E viver melhor é, à medida que o tempo passa, o exercício de fazer valer direitos e ter uma palavra a dizer sobre o nosso futuro. A participação ativa na sociedade também passa pelos cuidados que podemos (e devemos) escolher no nosso envelhecimento.

Recentemente, o interessante estudo Live and Work Well at Home, conduzido em quatro países europeus – Alemanha, Espanha, França e Itália –, concluiu que cerca de 60 por cento dos participantes cuidavam de um familiar idoso e 47 por cento tinham essa responsabilidade numa base diária. Não é de estranhar que 66 por cento dos inquiridos demonstrassem interesse em subscrever um serviço de apoio, considerando-o “altamente valioso”. Entre as necessidades identificadas, três saltavam à vista: cuidados ao domicílio (higiene e alimentação), saúde em casa (enfermagem e exames médicos), dispositivos de emergência (tecnologias, por exemplo, para detetar quedas).

Se há algo que a pandemia veio sublinhar é a importância da casa, enquanto centro da vida de cada um de nós. Um porto seguro, quando reunidas condições de habitabilidade, salubridade, enfim, dignidade. Portugal, que tem das maiores taxas de cuidados domiciliários informais da Europa, tarda em dar um salto. Porque estes cuidados domiciliários informais são, essencialmente, assegurados por familiares, sem formação e, por vezes, sem capacidade física ou mental para responder da melhor forma.

Tendencialmente, a institucionalização deve ser a última das respostas a ser dada às pessoas idosas. Desenraizá-las das suas comunidades tem um custo demasiado elevado, seja económico, seja social, seja da própria saúde, conforme está documentado em diversas investigações. No caso de ser necessário atuar, teremos de implementar novos conceitos, como aldeias sociais ou aldeias seniores – ofertas residenciais para idosos, que se distinguem pelos serviços que podem ir desde saúde, alimentação, até bem-estar e atividades desportivas. Em alguns casos, até podem ter uma componente de dinamização de concelhos despovoados.

O desafio é criar, cada vez mais, equipas multidisciplinares para planear estas respostas e políticas públicas. O relógio não para e, um dia, vamos querer usufruir daquilo que defendemos, hoje, em nome da dignidade de todos.
T

13.8.21

Lares de idosos, o novo negócio de milhões das multinacionais

Paulo Pena/Investigate Europe(texto) e Marco Neves Ferreira (Ilustração, a partir de imagem da Getty Images), in Público on-line

Cadeias de empresas internacionais estão a dominar a gestão dos lares de idosos na Europa. Fundos de investimentos em offshores ditam cortes nos serviços aos residentes, salários baixos a enfermeiras e auxiliares, ao mesmo tempo que pressionam os governos para subsidiar o sistema. Impõem uma gestão férrea, que gera lucros enormes. Mas a qualidade dos serviços sofre com isso. É um negócio de risco, para os fundos e para as sociedades envelhecidas.

Mickaelle Rigodon, Aljoscha Krause e Sonia Jalda trabalharam em lares de idosos, nas três maiores empresas multinacionais da Europa, em cidades muito distantes. Rigodon na Orpea de Auvergne, na França; Krause na Korian, em Lüneburg, na Alemanha; e Jalda na Domus Vi, em Vigo, Espanha.

Uma a uma, as suas histórias vão coincidindo. “Os residentes são tratados como peças numa fábrica, sempre com pressa. Muitos trabalhadores do lar desistem, porque não o suportam”, relata Rigodon sobre o Lar Anatole France, em Auvergne. “Tenho a sensação de que não estou a tratar as pessoas com dignidade, mas apenas à peça”, queixa-se Krause, enfermeiro da Haus an der Ilmenau em Lüneburg. “Estamos na mesma, ou pior, do que antes da pandemia”, acusa Jalda, enfermeira, em Vigo, acrescentando uma conclusão: “O modelo é puro negócio.”

Este trabalho, que a equipa de jornalistas europeus Investigate Europe (IE) começou em Março, procura traçar um retrato dessa situação comum, mas pouco conhecida, dos cuidados prestados à terceira idade por um pequeno conjunto de empresas multinacionais. O que encontrámos, de Portugal à Suécia, de Itália à Noruega, foi uma realidade semelhante: os lares de idosos estão subfinanciados e têm menos trabalhadores do que deviam. Contudo, uma parte cada vez maior das despesas governamentais em cuidados de saúde com idosos está a fluir para os cofres destas empresas transnacionais, que são um negócio crescente e muito lucrativo.

Investidores financeiros anónimos estão a assumir quotas cada vez maiores do negócio e estão a fugir aos impostos sobre os seus lucros, muitos deles obtidos com dinheiro público, transferindo as suas receitas para centros offshore. Empresas como a Orpea e a Domus Vi pressionam os seus trabalhadores, que reivindicam mais contratações e melhores salários. Os governos estão a falhar na definição de normas mínimas para a qualidade dos cuidados prestados aos idosos. E o relógio não pára. Em 1961, em Portugal havia 27 idosos por cada 100 jovens. Hoje há 159 por cada 100. Daqui por 50 anos serão 300, dizem as projecções oficiais.
Grandes lucros, grande dívida

A pandemia de covid-19 revelou uma parte do problema, que costuma estar oculta. Na Europa, 41% das mortes relacionadas com a doença provocado por aquele coronavírus ocorreram em lares de idosos. Em Espanha, Bélgica, França, Países Baixos, Eslovénia, Suécia e Reino Unido morreram 5% de todos os idosos residentes em lares, segundo o último relatório da International Long Term Care Policy Network, ou seja, um em cada 20 residentes.

Em Portugal, os dados oficiais revelam que 27% de todas as mortes atribuídas à pandemia ocorreram em lares. Vários trabalhos jornalísticos mostraram, nos últimos meses, a situação dramática vivida em alguns deles. O título da reportagem da jornalista Natália Faria mostra-o: “Essa coisa de se dizer ‘Não chores, vai ficar tudo bem’ não existe aqui.”

Em Espanha, na Itália, na Bélgica e no Reino Unido a Amnistia Internacional publicou relatórios sobre o “abandono” dos residentes em lares. Nesses relatórios, a lista de acusações é longa e grave: violação dos direitos humanos e do direito dos residentes à saúde, abandono dos idosos à morte, problemas estruturais, subfinanciamento e falta de pessoal.

Em 2019, antes de a pandemia chegar, um estudo da OCDE tinha suscitado preocupações sobre esses mesmos problemas estruturais nos cuidados aos idosos e concluído que havia “níveis de pessoal inadequados, má qualidade de trabalho e falta de qualificações, que põem em causa a qualidade dos cuidados e a segurança”.

Aparentemente imune a estas críticas, está a crescer a bom ritmo um negócio internacional de lares de idosos geridos por cadeias que dependem de uma intrincada engenharia financeira. Estas grandes empresas estão a comprar pequenos grupos nacionais, a concentrar posições e a impor uma forma de gestão que, segundo as dezenas de relatos que ouvimos — de clientes, familiares, trabalhadores e académicos — põe ainda mais em risco a qualidade dos cuidados prestados aos idosos.

De acordo com a investigação do IE, 30 empresas de private equity (capital privado) possuem 2834 lares na Europa com quase 200 mil lugares. De acordo com a base de dados Pflegemarkt.com e a investigação do IE, em Janeiro de 2021 os 28 principais operadores de lares na Europa são privados e gerem 5388 instalações com lugares para 455.559 residentes — quase tantos como os habitantes de Lisboa. Em 2017, os 25 maiores operadores de lares na Europa (entre eles, nessa altura, constavam três sem fins lucrativos) geriam uma capacidade de 369.132 lugares.

A Orpea é o maior operador da Europa com mais de 110.000 lugares em mais de 1000 instalações (incluindo algumas clínicas psiquiátricas e de reabilitação). Entre 2015 e 2020, a empresa aumentou a sua capacidade em 65%. Outras 25 mil camas estão a ser implantadas, incluindo mais de três mil em Portugal, onde a Orpea chegou em 2017, depois de ter criado uma empresa imobiliária em Lisboa, e já possui mais de 700 residentes, em nove lares.

A Orpea está cotada em bolsa e o seu maior accionista é o Fundo Público de Pensões do Canadá (CPPIB, com 14,5%). O preço das acções mais do que duplicou desde 2015, enquanto o valor de mercado triplicava. Mas os números mostram outra coisa: a dívida financeira líquida da empresa é de quase 200% do capital. Servir os accionistas (distribuindo dividendos) e os credores (pagando juros pelos empréstimos) custou à Orpea 244 milhões de euros em 2019.

Os lucros de Portugal acabam em Jersey

A Domus Vi é o terceiro maior operador da Europa, com 355 residências e mais de 33 mil camas. Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. É uma cascata de empresas em França, Espanha, Portugal, Irlanda, Holanda e América Latina, que são detidas por outras no Luxemburgo que, por sua vez, dependem de um fundo financeiro na ilha de Jersey, no Canal da Mancha. Evan Mervyn Davies (ou Davies de Abersoch), um antigo ministro de Estado do último governo trabalhista britânico, é o presidente do Intermediate Capital Group plc, um “gestor global de activos alternativos em dívida privada, crédito e capital próprio” que gere o fundo (cujos proprietários não são conhecidos), que detém 55,5% da Domus Vi.

Mas trata-se apenas do começo da história. As descrições que nos são feitas pelas enfermeiras que ali trabalham, pelos residentes que ouvimos e pelos especialistas são a outra face dos resultados financeiros multimilionários destas empresas que lideram uma expansão vertiginosa. Nos últimos dias, a Domus Vi fez um aumento de capital de 333 milhões de euros. Incorporou três empresas que detinha em França numa única, pagando aos accionistas destas empresas uma valorização de 316% ao fim de três anos de investimento. Um novo fundo, Mérieux Equity Partners, passou a ser accionista da rede de lares, mas ainda se desconhece o valor da sua quota.

Em apenas quatro anos, este é o terceiro fundo de investimento a entrar na Domus Vi. Em Julho de 2017, o ICG em Jersey comprou a Domus Vi a outro fundo de private equity, PAI Partners. Foi um grande negócio. Apenas três anos antes o fundo PAI pagou 639 milhões de euros pela Domus Vi. O valor da empresa multiplicou-se por quatro, quando o vendeu ao ICG: 2,4 mil milhões de euros.

A Domus Vi, como a PAI Partners explica, foi uma “compra alavancada” (ou LBO, se quisermos seguir o acrónimo usado). Isto significa que o comprador não investe realmente o seu dinheiro na compra. A aquisição é feita utilizando uma quantidade significativa de dinheiro emprestado para fazer face ao custo. Os activos da empresa comprada são frequentemente utilizados como garantia para os empréstimos. De uma forma mais simples: quando comprou a Domus Vi, a ICG utilizou o dinheiro emprestado e pode ter dado os edifícios dos lares, por exemplo, como garantia ao banco.

O que este exemplo mostra — além da enorme valorização da empresa num curto período de tempo — é a rapidez com que estes fundos entram e saem de um sector em que o impacto social das decisões de gestão é muito mais delicado do que, por exemplo, numa start-up tecnológica.

Seria normal que uma empresa quadruplicasse de valor, em três anos, se apresentasse as características de uma high-tech — inovação tecnológica, possibilidade de crescimento —, mas num negócio como o dos lares de idosos não é essa a realidade.

Um estudo feito pelo grupo de reflexão independente CHPI na Grã-Bretanha estima que os lares privados obtêm lucros de mais de mil milhões de euros por ano, o que corresponde a cerca de 10% do volume de negócios. O autor deste estudo, Vivek Kotecha, explica-nos numa entrevista que as margens de lucro destes casos de que falamos “parecem desmesuradas, dado o risco que está envolvido no serviço prestado, e parecem gerar níveis de lucro realmente elevados face ao que deveria existir numa indústria de mão-de-obra intensiva” como esta.

Mas dentro das 11 empresas do grupo, que ligam a Geriavi espanhola (que é dona da operação Domus Vi em Portugal) ao fundo offshore de Jersey, existe uma engenharia financeira de filigrana. Uma investigação do jornal espanhol InfoLibre (nosso parceiro neste trabalho) revela os contornos de um negócio que esconde os lucros, impõe dívida às empresas reais (as que gerem os lares) e vive dos juros desses empréstimos entre as empresas do mesmo grupo, fugindo assim aos impostos.

Até 2020, a empresa espanhola Geriavi assinou com a empresa francesa que é o seu único accionista (DomusVi SAS) empréstimos no montante de 503 milhões. A Geriavi utiliza o dinheiro que pede emprestado à Domus Vi para a compra de residências em Espanha e Portugal. Ao devolver o dinheiro a França, através dos juros, está na prática a transferir uma grande parte dos seus lucros de exploração para a DomusVi SAS.

Em França está uma outra empresa do grupo, a Kervita, que lançou obrigações convertíveis de mais de 640 milhões de euros. Quem comprou esta dívida? Duas outras empresas do mesmo grupo, desta vez no Luxemburgo. A Topvita Investment Sàrl adquiriu 535,8 milhões de euros, a uma taxa de juro de 9,2%, e a Topvita Financing Sàrl outros 104,7 milhões de euros, a uma taxa de juro de 11%.

As normas internacionais de contabilidade utilizadas pelos auditores indicam que, dado tratar-se de transacções entre empresas do mesmo grupo, estes empréstimos deveriam ter sido subscritos a preços de mercado. Este preço de mercado seria o de uma obrigação semelhante mais dois pontos percentuais. Isto levaria a uma taxa de juro entre 3,5% e 4%. Nas operações europeias, um máximo de 5% poderia ser aceite, embora já seja muito acima do comum. Em nenhum caso, nem os 9,2% nem os 11% que foram praticados.

Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. Em cima, a unidade do Porto Nelson Garrido

Recapitulando: na base, a empresa que gere os lares (que são o negócio real do grupo de empresas) pede empréstimos a uma outra empresa do grupo, que por sua vez depende de outra sociedade financeira que se endivida, também ela em empresas dos mesmos donos, com juros muito mais altos dos que teria se fosse a um banco.

Adquirir dívida a uma taxa de juro de 11% só seria lógico se houvesse uma elevada probabilidade de incumprimento. Por outras palavras, se estivéssemos a lidar com rating equivalente a “lixo”. Mas, logicamente, a ICG não quer que uma empresa sua, a Kervita, emita dívida de “lixo”, com juros ao dobro do preço de mercado, e que esta fosse comprada por outras duas (Topvita) empresas suas, porque estaria a enganar-se a si própria.

A lógica da operação é diferente: cobrar juros de “onzeneiro” (era assim que se chamava o agiota do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, precisamente por cobrar 11% de juros sobre o dinheiro que emprestava) à Kervita faz com que esta empresa perca dinheiro, dentro do grupo – isto é, transfere os lucros da gestão dos lares para o Luxemburgo, através do pagamento de juros da dívida que contraiu.
Tudo isto é legal, mas será transparente?

A Kervita SAS é a empresa que consolida os resultados de mais de 200 filiais em França, Espanha e Portugal. Isto significa que todas as empresas do grupo são tributadas como se fossem uma só, de modo que os lucros de alguns lares são compensados pelas perdas de outros, reduzindo assim a factura fiscal. Todos os lares têm as suas contas, mas a única empresa responsável pelo imposto sobre as sociedades é a empresa-mãe que consolida as contas. Assim, a Kervita SAS poupou 22 milhões em 2019. Isto é algo perfeitamente legal, regulado de forma praticamente idêntica em todos os países da UE, mas na prática acaba por beneficiar grandes grupos com muitas filiais, porque é muito provável que algumas delas venham a ter prejuízos.

Como a Kervita é a empresa que teria de pagar impostos sobre os lucros de todo o grupo, o ICG impõe-lhe o pagamento daqueles juros exorbitantes que vimos para que possa declarar prejuízos. Em 2018, a Kervita teve um resultado financeiro negativo de 82,6 milhões de euros e em 2019 de 70,3 milhões. No total, 152,9 milhões serviram quase inteiramente para pagar os juros à Topvita Investment Sàrl e à Topvita Financing Sàrl.

Mas os lucros não ficam nas empresas Topvita, apesar de terem um regime fiscal muito atractivo no Luxemburgo. No mesmo dia 27 de Julho de 2017 que comprou a dívida da Kervita SAS francesa, a Topvita Investment Sàrl contraiu um empréstimo. A taxa de juro paga aos seus credores é também de 9,2% e essa dívida foi totalmente subscrita por sete empresas que são accionistas da Topvita Investment, directa ou indirectamente. O principal produto utilizado foram os chamados CPEC (“convertible preferred share certificates”), que são isentos de impostos no Luxemburgo. Também a Topvita Financing pediu empréstimos, em que paga a mesma taxa de juro de 11% que cobra à Kervita, dívida essa que também foi comprada na sua totalidade pelos seus accionistas.

Desta forma, o dinheiro que iniciou a sua viagem numa residência em Portugal, Espanha ou França, gerado pelas mensalidades pagas pelos idosos, sobe as últimas etapas da estrutura empresarial até chegar à empresa-mãe criada pelo ICG em Jersey.

Contactámos por quatro vezes a Domus Vi (quer em Espanha, quer na sede em França), nas últimas quatro semanas, para que comentasse esta descrição da sua estrutura empresarial. Não recebemos qualquer resposta.
Áustria e Noruega mudam as regras

Se os leitores resistiram a esta descrição sucinta da complexa engenharia financeira de um negócio de lares, talvez estejam curiosos para perceber se, apesar de tudo, funciona.

Há vários exemplos de negócios arriscados de fundos nos lares. Southern Cross e Four Seasons são dois desses casos de empresas gestoras de lares, financiadas por private equity, no Reino Unido, que entraram em colapso nos últimos anos. “O problema subjacente é que o financiamento por private equity está carregado de dívida... Isto não é exclusivo deste sector, mas claro que, obviamente, o impacto humano é maior neste sector”, sublinha John Spellar, deputado trabalhista, que há muito tempo tem alertado para o envolvimento do capital privado nos cuidados de saúde.

Muitos pedem, por isso, controlos mais rigorosos e “uma regulamentação adequada”. Se os reguladores tiverem “poderes fortes”, sugere Jon Moulton, da empresa de private equity Better Capital, e as empresas estiverem em risco, “então o Estado pode avançar, com força”. “Pode tomar conta da empresa e pô-la sob administração protegida”, propõe Moulton.

Vários países europeus já começaram a prevenir o problema. O governo regional de Burgenland, na Áustria, estipulou por lei, em 2019, que todos os lares só podem ser explorados por empresas sem fins lucrativos a partir de 2024. Os cuidados de enfermagem fazem “parte dos serviços públicos — tal como os cuidados médicos, cuidados infantis e de educação”, diz-nos o conselheiro regional Leonhard Schneemann: “O princípio da maximização do lucro não tem lugar nesta área altamente sensível.”

Muitos municípios sociais-democratas da Noruega fizeram o mesmo. Após o fim dos contratos de concessão com os operadores privados dos lares, as cidades de Oslo, Bergen e Stavanger, por exemplo, não concederam prorrogações e assumiram elas próprias a gestão dos lares. As empresas são boas para a sociedade, “mas são perigosas quando gerem serviços deste tipo”, diz Robert Steen, vice-presidente da câmara de Oslo. “Em última análise, o seu principal objectivo é ganhar dinheiro para dar os proprietários, não é gerir serviços de saúde e cuidados ou contribuir para uma sociedade sustentável.”

A empresa sueca Attendo abandonou então completamente o mercado norueguês e a sua concorrente Norlandia alertou os seus accionistas para o “risco político” que corriam.
A diferença portuguesa

Ao contrário da generalidade dos países europeus, em Portugal o Estado não financia directamente os lares privados. A lei portuguesa, de 2012, manteve o financiamento estatal exclusivo para o “terceiro sector” sem fins lucrativos. Isso ajuda a explicar a ainda reduzida presença das grandes cadeias internacionais no país. Actualmente existem 2537 lares em Portugal, sendo 1677 do sector social e solidário, a maioria geridos e detidos pela Santa Casa da Misericórdia, com acordo de cooperação com o Estado (66%). Os restantes 733 são do sector privado (29%) e 133 são não lucrativos e não têm acordos de cooperação (5%).

Os 12 lares que a Orpea e a Domus Vi gerem em Portugal destinam-se, sobretudo, a clientes de rendimentos altos, que não têm qualquer comparticipação pública no pagamento das mensalidades. As mensalidades cobradas (de 1500 a 4000 euros, segundo as nossas fontes), por empresas multinacionais, têm como alvo um reduzido estrato social, e competem com marcas portuguesas já instaladas, como o Montepio.

Segundo os dados da Dun&Bradstreet, o volume de negócios do sector privado em Portugal era, em 2019, de 330 milhões de euros.

Até 2012, Portugal tinha uma lei muito rigorosa que proibia as casas de repouso com mais de 60 camas. Durante os anos da troika, em 2012, o Governo alterou esta lei e abriu uma nova oportunidade de mercado para lares de idosos, duplicando a capacidade permitida.

Como nos explica Rui Fontes, enfermeiro que gere um lar privado de pequena dimensão e é o presidente da Associação dos Amigos da Grande Idade, os estudos de viabilidade económica demonstram que a rentabilidade se consegue “a partir das 61 camas”. Por isso, um lar com 120 lugares pode ser um bom negócio. Mas por muitas expectativas que tivesse, de início, face à chegada de grandes grupos internacionais, elas foram “completamente goradas”.

“Estes grupos têm uma concepção de cuidados mais relacionada com fazer paredes bonitas do que com prestar cuidados com carinho. Há conforto, é claro, muita cor, muito vidro. Mas a qualidade nesta área não se ganha com a construção.” Perguntamos a Rui Fontes se o negócio imobiliário faz parte da estratégia das grandes empresas. “Este negócio é também imobiliário”, responde. “Normalmente, há uma empresa que faz a construção e depois vende-a a uma empresa que gere a operação. São empresas diferentes. A que gere a operação paga uma renda. Toda a operação está isenta de IVA.”

Isso faz com que, além dos cuidados com idosos, haja outro tipo de lucros possíveis na operação. Rui Fontes explica melhor: “Quando sou consultado por estes projectos, digo que o negócio é bom, porque, quando as portas abrem, o negócio é pago. A empresa gestora já contraiu uma dívida, ou uma hipoteca, para pagar o edifício. Uma vez que se trata de instalações sociais, pode-se construir em áreas restritas.”

Rui Fontes não defende a solução norueguesa ou a austríaca. É a favor de um mercado privado nos lares. “Não contesto a entrada destes grupos económicos privados – pelo contrário. O que eu contesto é que eles cobram 3000 euros a uma pessoa idosa que custa 1200, e já está a dar lucro. Por 3 mil euros, podem oferecer viagens de helicóptero aos utilizadores. Desta forma, eles ganham muito dinheiro. O montante cobrado é maior do que os cuidados que prestam.”

Uma opinião semelhante tem João Ferreira de Almeida, o presidente da Associação de Lares de Idosos, o grupo que representa os lares privados de pequena e média dimensão. “As grandes empresas internacionais concentram-se na importância da estrutura das propriedades. O nível de cuidados, por vezes, não corresponde às expectativas. Em alguns casos, têm uma perspectiva hoteleira. Mas não há realmente uma verdadeira avaliação da qualidade, o Estado só actua se houver queixas feitas pelos utentes ou pelas suas famílias.”

No fim de contas, continua Ferreira de Almeida, a qualidade é fácil de avaliar: “É o que faz uma empresa trabalhar neste sector: tenho uma menor redução de mortes, menos visitas ao serviço de urgência, tenho mais facilidade em preencher uma vaga.”

Rui Fontes insiste também nesse ponto. “Não existem dados públicos sobre a qualidade dos cuidados. A comunicação destes grupos multinacionais centra-se na qualidade das instalações, mas nada diz sobre a diminuição do consumo de medicamentos ou sobre a diminuição das visitas aos hospitais.”

O Governo garante que, durante a pandemia, visitou todos os lares do país. “As acções de acompanhamento técnico são efectuadas regularmente com o propósito de avaliar os serviços e cuidados prestados às pessoas beneficiárias das mesmas. Desde Março de 2020 foram feitas mais de 7140 visitas conjuntas de acompanhamento às instituições, incluindo ao sector lucrativo e a lares ilegais.”

Em outros países europeus é muito difícil encontrar bons exemplos de controlo de qualidade, por parte dos Estados, nos lares de idosos. Em toda a parte os inspectores estão com falta de pessoal. Para a região da Galiza, por exemplo, existem apenas sete inspectores, denuncia-nos a associação de trabalhadoras dos lares. A situação é ainda pior no Norte de Itália. “Sou responsável por 400 lares. Isso significa que teria de inspeccionar duas instalações todos os dias”, revela-nos o inspector-chefe da autoridade sanitária de Turim. “Além disso, também tenho de cuidar de instalações que foram recentemente abertas. Como é que se espera que eu gira isso?” A França reduziu efectivamente o número de inspectores, enquanto a necessidade aumenta, relata um antigo inspector. Para toda a França, diz-nos, existem agora apenas 200 peritos, muito poucos para os milhares de instalações no país. “A lógica da política é auto-regulação pelos operadores”, queixa-se.
Gestão vs qualidade?

Quase todos os relatos de trabalhadores, e ex-trabalhadores, de lares que recolhemos são concordantes: o sector tem muito menos trabalhadores do que precisa, e a política laboral das empresas multinacionais é férrea.

Depois de ouvirmos vários testemunhos sobre a forma como a Orpea reagia face aos trabalhadores que reivindicam melhores condições, chegou-nos às mãos uma sentença judicial de 2017 do Tribunal de Paris. Trata-se de uma queixa da central sindical CGT digna de uma série televisiva.

Queixa-se a central sindical de que a Orpea contratou três actores desempregados (um dos quais se viria a suicidar pouco depois) para trabalharem nos seus lares com uma finalidade específica: infiltrarem-se nas organizações dos trabalhadores e escreverem relatórios porme norizados sobre o que estavam a preparar. Os actores tinham sido contratados por uma empresa de “segurança económica”, a GSC SAS (que abriu falência pouco depois), e que terá seguido a mesma estratégia num outro caso, julgado em França em Março passado, envolvendo uma empresa sueca de mobiliário. O caso da CGT contra a Orpea não resultou em nenhuma condenação, porque os factos remontam a 2010, mas a CGT só fez a queixa em 2015 e, apesar de um inquérito da procuradoria ter sido iniciado, os juízes consideraram que os alegados crimes tinham prescritos.

Philippe Galais, um activista da CGT que trabalhou num lar Orpea durante 20 anos até se demitir, no ano passado, queixa-se: “Primeiro tiraram-me as funções de cuidador e desqualificaram-me profissionalmente. Depois disseram aos colegas para se afastarem de mim e fiquei isolado.” Uma antiga gerente de outro lar da Orpea, que nos pediu o anonimato por temer represálias, confirmou que foi especificamente instruída para usar estas tácticas de intimidação contra o pessoal.

Na Polónia, a empresa tentou livrar-se da presidente da comissão de trabalhadores de um lar na pequena cidade de Konstancin, perto de Varsóvia, em 2019. A enfermeira foi acusada de ter intimidado os seus colegas de trabalho. A Orpea não foi capaz de fornecer provas suficientes. Na Primavera deste ano, um tribunal laboral de Varsóvia anulou o despedimento. A empresa teve de reintegrar a enfermeira. Mas o efeito dissuasor mantém-se.

A empresa está a agir de forma semelhante na Alemanha. Embora o administrador da filial alemã nos assegure que não tem problemas com a organização dos seus empregados, a empresa está a instaurar vários processos contra os presidentes de duas comissões de trabalhadores em Bremen e na Baixa Saxónia, a fim de impor a sua “demissão sem pré-aviso”. Alega-se que falsificaram documentos e que isso representa uma fraude na gestão do tempo de trabalho. As acusações são “completamente falsas” e “uma tentativa de criminalizar as comissões [de trabalhadores] da empresa”, contesta o advogado de Bremen Michael Nacken. No final de Abril, um juiz de Bremen arquivou dois dos casos por falta de provas. Mas a Orpea ameaçou, na sala de audiências, exercer represálias . O advogado da empresa anunciou que estavam a ponderar “vigilância completa” dos membros da comissão de trabalhadores durante o horário de trabalho, com a ajuda de uma agência de detectives.

A Orpea repetiu o mesmo padrão quando o Sindicato do Serviço Público Europeu (EPSU) tentou criar o Conselho de Trabalhadores Europeu. A direcção “obstruiu e atrasou sistematicamente esta medida, apesar de ser um direito legal dos trabalhadores elegerem tal representação a nível europeu”, relata o secretário sindical Guillaume Durivaux, que supervisionou o estabelecimento da EPSU.
Represálias na Galiza

Nestas grandes empresas que têm filiais por toda a Europa, a relação tensa com os trabalhadores, ou os sindicatos, parece ser um padrão. Na Domus Vi, o relato chega-nos de bem perto.

Entrevistamos Maribel Barreiro, 54 anos, enquanto ela se senta, com a perna direita repousada numa cadeira, com talas a todo o comprimento. Rompeu o ligamento lateral da perna no dia 3 de Junho, quando escorregou e caiu, enquanto mudava de roupa no vestiário, molhado, do lar de Vigo da Domus Vi. “Agora tenho de passar o dia em casa com a perna em talas, sem a poder dobrar…”

O acidente não foi, para ela, uma consequência normal de um dia de trabalho. Barreiro era secretária da direcção do lar, quando este era público. Sempre foi membro da comissão de trabalhadoras. Quando a Domus Vi ganhou a concessão, dada pelo governo da Galiza (ali e noutros 31 lares da região autónoma, e 140 em toda a Espanha), Maribel Barreiro foi despromovida. “Puseram-me a trabalhar no armazém, a descarregar pesos que eu não posso carregar, de 600 quilos, a puxar os carros de carga. Fiquei com um problema nas costas e tive de pôr baixa médica e fazer fisioterapia.”

Com Sonia Jalda, que era enfermeira no mesmo lar, fundou a Trega, a primeira associação de trabalhadoras de lares em Espanha. No caso de Jalda, a pressão da empresa foi um pouco diferente. “A primeira coisa que a Domus Vi fez quando chegou foi pedir-nos uma reunião. A mim chegaram a perguntar-me se queria trabalhar só de segunda a sexta e só no turno da manhã, e quanto queria ganhar. Enganaram-se na pessoa...”

Sonia Jalda saiu da empresa depois de sofrer um acidente de trabalho. “Estou reformada por invalidez. Pedi à comissão médica que me deixasse voltar a trabalhar, mas não me deixaram. Dou aulas na universidade pública de Pontevedra, mas estar reformada é muito duro. Amo a minha profissão.”

Todas estas queixas laborais ajudam-nos a perceber uma parte do problema. Estas grandes empresas de lares cortam nos custos para aumentarem os seus lucros. É normal, num bom negócio. Todavia, há uma subtileza importante a ter em conta. Na experiência de Heinz Rothgang, professor de Cuidados e Segurança da Terceira Idade na Universidade de Bremen, e dos seus colegas, os custos de pessoal em lares bem geridos representam cerca de 70% do rendimento da empresa. As empresas líderes de mercado como a Orpea e a Korian, por seu lado, gastam apenas 50% a 55%, de acordo com os seus balanços mais recentes. Isto só é possível “se pagarem abaixo das tabelas e mantiverem a quota de trabalhadores qualificados ao nível mais baixo legalmente previsto”, diz Harry Fuchs, professor de Ciências Administrativas e especialista de longa data em financiamento de cuidados.

Remi Boyer, chefe dos recursos humanos do Grupo Korian, em Paris, nega que assim seja. “Isso pertence ao passado”, assegura-nos. “Os custos de pessoal estão agora a subir para 58% e continuam a crescer”, afirma Boyer, na entrevista que nos deu. Não há forma de verificar se isso está, de facto, a acontecer.

Erik Hamann, dirigente da Orpea Alemanha, também considera irrelevante a leitura sobre a baixa percentagem de custos de pessoal no volume de negócios da sua empresa. “Apenas temos mais volume de negócios do que outros.” Garante que a sua empresa oferece salas de conforto e outros serviços adicionais, “pelos quais os [seus] residentes pagam mais”. No entanto, a empresa não fundamenta se isso significa que as despesas de pessoal são perto dos 70% recomendados. As histórias do pessoal e dos residentes em casas Orpea levantam dúvidas.

Foi através de uma queixa de funcionários que as autoridades descobriram uma realidade grave num lar Orpea em Kirchberg, na Áustria. De acordo com o relatório do governo, as instalações não cumpriam a proporção mínima exigida de pessoal. Os residentes foram “sistematicamente levados para situações de incontinência”, porque não foi realizada qualquer formação sanitária, constataram os auditores. Os pacientes foram também simplesmente entubados, em vez de serem encorajados a beber. O inspector escreveu sobre um “risco grave para a vida dos residentes” e “cuidados perigosos”. No caso de um residente de 93 anos, cuja necessidade de cuidados tinha sido mal avaliada durante anos, o inspector refere um “desastre desumanizador”.

Os prestadores de cuidados na filial suíça da Orpea Senevita têm experiências semelhantes. Aí, “as condições de trabalho são bastante medíocres em comparação com outros lares e o quadro de pessoal é escasso”, diz Samuel Burri, co-responsável do sector da enfermagem no sindicato Unia.

Os resultados do inquérito aos empregados da Orpea realizado pela cientista social britânica Jane Lethbridge revela que “há um problema constante de falta de pessoal” em muitas das instalações do grupo. Na Alemanha, em Espanha e na Itália, um quarto da mão-de-obra está empregada apenas numa base temporária. Além disso, o grupo adiciona frequentemente trabalhadores administrativos, de limpeza e outros ao pessoal de enfermagem, a fim de cumprir os requisitos legais. “Isto mascara a extensão da falta de pessoal dos trabalhadores de enfermagem”, revela Lethbridge.
Queixas em Portugal

Em plena pandemia, um destes grupos privados contactou Rui Fontes com um pedido urgente, “para saber como contratar, de um momento para o outro, 30 enfermeiros”. Com uma condição: “A ganhar 7 euros à hora. Eu sou enfermeiro e disse: ‘Ou mudam isso ou não conseguem enfermeiros nenhuns…’”

Enquanto gestor de um lar privado, Rui Fontes é muito crítico da regulação sobre o sector. “As empresas cumprem a lei, que é muito permissiva. A lei não define horas de trabalho, número de médicos em função do número de utentes. Define apenas um enfermeiro por cada 20; num lar de 120 utentes isso significa seis enfermeiros, ou seja, um enfermeiro por turno. Um enfermeiro por turno para 120 pessoas é difícil de se entender e difícil de manter bons cuidados de saúde.”

Para a associação Amigos da Grande Idade a conclusão é clara: “A mobilidade de pessoal não deixa haver qualidade. Há auxiliares que trabalham quatro horas e são substituídos. É um modelo de gestão de pessoal quase de escravatura.”

José Manuel Canavarro, professor de Psicologia na Universidade de Coimbra e ex-governante do PSD, tem sido consultado por alguns destes grupos internacionais que se instalaram em Portugal. Prefere olhar para o problema de outra forma, mais positiva. “Esta é uma actividade que é semelhante às antigas indústrias, porque dá emprego a pessoas com baixas qualificações. E há uma taxa grande de emprego feminino. Empregam pessoas que teriam grande dificuldade em encontrar outros empregos.”

A associação galega de trabalhadoras de lares conhece os casos de várias portuguesas que trabalham do lado de lá da fronteira. Contudo, em Portugal não há nenhuma organização parecida. Contactámos repetidamente os sindicatos do sector (serviços sociais) e o sindicato da hotelaria (que representa as auxiliares), mas nenhuma destas estruturas quis comentar a situação laboral no sector, ou fornecer-nos os contactos de sindicalistas que trabalham em lares geridos por multinacionais.

O Governo, através do Instituto da Segurança Social, revela-nos que “foram recebidas cinco denúncias e duas reclamações” de familiares e utentes dos 12 lares geridos pela Orpea e pela Domus Vi em Portugal. Uma destas queixas está ainda a ser investigada e prende-se com a falta de recursos. A maioria das queixas tem que ver com a falta de enfermeiros e de pessoal.

De acordo com a OCDE, os Estados da UE, bem como a Grã-Bretanha, Noruega e Suíça contribuem com mais de 220 mil milhões de euros por ano para os cuidados com idosos. Os próprios utentes pagam mais de 60 mil milhões de euros dos seus próprios bolsos. E este valor está a aumentar todos os anos. “O rápido envelhecimento da população em toda a Europa será o maior motor de crescimento do mercado dos lares de idosos a longo prazo”, diz a consultora de gestão Knight Frank, elogiando o contínuo boom do sector.

De acordo com estimativas da Comissão Europeia, o custo dos cuidados a longo prazo na Europa mais do que duplicará dos actuais 1,7% para 3,9% do PIB em 2070. Isto torna o negócio completamente à prova de crise, explica Matthias Gruß, especialista para o sector do Verdi, o sindicato alemão do sector. “É um negócio muito atractivo para os investidores, porque existe um fluxo de caixa seguro.”

É isso que torna este assunto tão relevante para nós, os principais “activos” desta história de negócios.

Investigate Europe é uma equipa de jornalistas de 11 países que investiga conjuntamente temas de relevância europeia e publica em meios de comunicação social de toda a Europa.

Para além do PÚBLICO, os meios de comunicação social parceiros desta investigação incluem: Der Tagesspiegel (Alemanha), Mediapart (França), Telex (Hungria), Aftenbladet e Bergens Tidende (Noruega), Dagens Nyheter (Suécia), EfSyn (Grécia), Il Fatto Quotidiano (Itália), Open Democracy (Reino Unido), Gazeta Wyborcza (Polónia), Falter (Áustria), Trends (Bélgica), Republik (Suíça), FTM (Países Baixos).

Contribuíram ainda para esta investigação: Wojciech Cieśla, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Attila Kálmán, Nikolas Leontopoulos, Anne Jo Lexander, Maria Maggiore, Stavros Malichudis, Sigrid Melchior, Leïla Miñano, Paulo Pena, Elisa Simantke, Nico Schmidt e Harald Schumann, bem como Eelke van Ark (Follow the Money), Manuel Rico (InfoLibre), Gerlinde Poelsler (Falter), Jef Poortmans (Trends), Philipp Albrecht (Republik).

O projecto é apoiado pelos seus leitores através de doações e pela Fundação Schöpflin, a Fundação Rudolf Augstein, a Fundação Fritt-Ord, a Open Society Initiative for Europe, a Fundação Adessium, a Fundação Reva e David Logan, e a Fundação Cariplo.

Saiba mais sobre a investigação, e encontre material extra e entrevistas, aqui.


23.7.21

Aldeia das Tipuanas. Toda a liberdade que um lar tradicional não dá

Liliana Carona, in RR

Dezoito idosos vivem de forma completamente autónoma, com apoio de retaguarda, na Aldeia das Tipuanas, um projeto social e inclusivo da Associação “Os Pioneiros” de Mourisca do Vouga, concelho de Águeda. Em vésperas de se assinalar o primeiro Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, a Renascença foi conhecer um projeto diferente.
À entrada da Aldeia das Tipuanas, uma árvore de crescimento rápido dos climas tropicais que deu nome àquele lugar de liberdade e de idosos independentes, dentro das limitações de cada um.

Para Silvério Miranda, de 62 anos, o sabor da liberdade é feito de pequenas coisas, como poder ouvir música alto e bom som. É ele também o responsável pelos moinhos que abundam no local, feitos de embalagens que iriam para o lixo. “Até ver não tenho razão de queixa, tenho sempre o rádio ligado até às 4h00 da manhã”, diz com um sorriso estampado no rosto.

O projeto das casinhas autónomas, desenvolvido pela Associação “Os Pioneiros”, surgiu há cerca de oito anos. Alexandra Alves, 48 anos, é a diretora técnica da associação fundada em 1986 e que presta apoio à terceira idade com um centro de convívio, centro de dia, serviço de apoio domiciliário, lar e a aldeia sénior (casinhas autónomas).

“Parece uma aldeia em ponto pequenino, onde se criam todas as dinâmicas de uma aldeia normal, as redes de vizinhança”, diz Alexandra Alves, enquanto aponta para as dez moradias, todas ocupadas e com lista de espera.

“Há muita procura porque, cada vez mais, a saída dos mais novos para o litoral deixa as zonas interiores vazias e as pessoas de idade, mas com alguma autonomia e com capacidade de decidir sobre o seu dia a dia, começam a sofrer de solidão e aqui estão autónomas, mas têm um apoio de retaguarda”, observa a diretora técnica.

“Como vimos, um utente vai de chave na mão, vai sair de carro. Tem autonomia para decidir o seu dia a e a sua rotina, mas contam com uma estrutura de retaguarda, enquanto que nos lares que nós conhecemos não estariam integrados, os nossos lares, são cada vez mais uma estrutura muito semelhante a uma unidade de cuidados paliativos, continuados”, lamenta a responsável.

Preços variam conforme os rendimentos

A resposta das casinhas não tem qualquer tipo de acordo com a Segurança Social, funciona unicamente às custas da associação, onde, sublinha Alexandra Alves, “calculam-se as rendas das casas em função dos rendimentos das pessoas que para cá vêm, de forma a ser uma aldeia inclusiva, com preços que rondam entre os 120 e os 800 euros, dependendo se querem partilhar casa ou não. Pode estar um casal, duas mulheres ou só uma pessoa”, explica.

Henrique Almeida, 81 anos, vai sair de carro. Desde o dia 15 de janeiro que o antigo operário fabril vive na Aldeia das Tipuanas.

“Para já, este é dos melhores lares que há, acho que não há outro igual”, comenta. Independentes, mas com apoio de retaguarda. Susana Tomás, 43 anos, técnica de serviço social e coordenadora das casinhas autónomas, não perde de vista os 18 utentes.

“Alguns precisam de apoio na alimentação, na higiene da casa, na própria higiene, eles contratualizam o tipo de serviço que precisam, o tratamento da roupa por exemplo, há senhoras que querem tratar da roupa delas, ou fazer a própria comida”, esclarece Susana, acrescentando que o projeto “é uma continuidade da sua anterior casa, permite-lhes fazer uma transferência de uma forma suave”, defende.

Ali, numa espécie de pequena aldeia, não falta piscina nem jardins verdejantes. António Alves, um soldador metalúrgico de 82 anos, encontrou há oito anos o ambiente perfeito para dar asas à criatividade.

“Faço quadros para pendurar na parede, com cápsulas de café, cortiça, tenho mais de 500 feitos e também crucifixos, tenho os trabalhos todos no tablet”, mostra, enaltecendo o apoio prestado na aldeia.

“Faz de conta que estamos em nossa casa, estamos completamente independentes. Toda a liberdade, quando preciso de alguma coisa, peço, desde cortiça, bogalhos, arame”, conclui António, na varanda de uma casinha ladrilhada, a trabalhar em mais uma peça de arte.

Na casinha ao lado está a vizinha Georgina Bastos, 78 anos. A costureira tem saudades de casa, mas sabe que ali tem todo o apoio de que precisa.

“O meu filho não me deixa estar sozinha em casa, diz que é perigoso, mas esta casa é limpinha, praticamente nova, e temos de nos adaptar. É jeitosinha pronto, tem o lavatório, casa de banho completa, temos o que é indispensável para viver”, considera Georgina.

Os preços por casinha rondam entre os 120 e os 800 euros, conforme o rendimento dos moradores, mas com a garantia de terem uma casa portuguesa e com ginástica ao ar livre, ao som da Amália Rodrigues.

25.1.21

Beneficiários de complemento solidário para idosos estão a diminuir com a pandemia

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Aumento da mortalidade conjugar-se-á com medo de recorrer aos serviços em plena crise pandémica para solicitar aquela prestação social de apoio aos mais pobres

As oscilações eram pequenas desde Abril de 2017. Andava nos 165 mil ou um pouco acima o número de beneficiários de complemento solidário para idosos (CSI), um apoio pecuniário destinado aos mais pobres. Com o anúncio da propagação de covid-19, o número foi baixando até aos 161 mil em Dezembro de 2020.

Como diz o sociólogo Fernando Diogo, dois aspectos podem explicar esta alteração: mais pessoas a sair do programa e menos pessoas a entrar. “A mortalidade que estamos a ter – quer covid, quer não covid – pode ter um impacto, mas haverá um outro factor covid, que é o medo”, analisa.

Tem direito a CSI qualquer pessoa com 66 anos e cinco meses com um rendimento anual inferior a 5258,63 euros (9202,60 euros, se for um casal). Os interessados têm de requerer, fazendo uma prova de recurso que exige entrega de uma multiplicidade de documentos. O valor a receber é a diferença entre o seu rendimento anual e aquele valor.

Muitos idosos mal saem de casa desde Março. “Podem tratar online? Talvez possam, mas estamos a falar de idosos, os menos familiarizados com essa possibilidade e os que agora mais temem ir aos serviços”, diz aquele professor da Universidade dos Açores, que há anos se dedica à investigação sobre pobreza.

Uma vez obtido o CSI, um idoso sai da medida se morrer, for para a prisão, emigrar ou tiver um repentino aumento de recursos. E, a esse nível, o que há é um excesso de mortalidade (covid e não covid) que afecta sobretudo as pessoas com mais de 80 anos.

Esta medida foi criada em 2005 para retirar os idosos da pobreza. E, com efeito, a pobreza naquela faixa etária baixou de forma sustentada entre 2006 (25.5%) e 2012 (14.7%). Isso acabou com a crise da dívida e as alterações introduzidas em 2012: o valor de referência recuou, deixando de acompanhar o limiar da pobreza.

Uma inversão da tendência

Em 2015, o PS prometeu repor o valor de referência do CSI no montante anual de 5022 euros, que vigorava em 2012. Depois de 5 anos consecutivos sem actualizações positivas, o valor subiu em 2016, 2017, 2018 e 2019, alcançando os actuais 5258,63 euros. Em diversas ocasiões, até por pressão do Bloco de Esquerda, a Segurança Social recebeu ordens para dizer aos potenciais beneficiários como e onde requerer CSI.

Olhando para a tabela actualizada pela Segurança Social esta quarta-feira, é preciso recuar a Janeiro de 2017 para encontrar o número de beneficiários na casa dos 161 mil. Em Abril daquele ano, estava nos 165 mil. Em Julho nos 166 mil. Em Novembro regressou aos 165 mil. E tem estado aí ou acima.

Houve um pequeno incremento em Janeiro de 2018 (166 mil), regressando de imediato aos 165 mil. Em Maio, o número de beneficiários tornou a subir (166 mil) e o mesmo aconteceu em Junho (167 mil), mantendo-se assim até Novembro. Nessa altura, voltou a baixar um pouco (166 mil), ficando nessa casa até Janeiro de 2019. Durante um ano inteiro, permaneceu nos 165 mil.

Em Janeiro de 2020, o CSI chegava a 165.073 pessoas. Em Fevereiro, quando já só se falava em covid-19, recuou para 164.799. E foi baixando, devagarinho, até chegar aos 161.314 em Dezembro de 2020.

Estes dados contrariam a expectativa de que esta prestação chegaria a mais idosos, tirando-os da pobreza. Nas últimas eleições legislativas, o PS prometeu recuperar o papel original do CSI, puxando o valor de referência para cima do limiar da pobreza (6014 euros em 2019). Essa promessa está por cumprir, embora conste nos princípios da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza em preparação. Introduziu outras medidas que aumentam o universo, como a eliminação do impacto do rendimento dos filhos no 2º e no 3º escalão de rendimento (manteve-se no 4º).

Há mais mulheres (116 mil) do que homens (49 mil) a receber CSI. Tiveram carreiras contributivas curtas ou mínimas, uma vez que não conta o trabalho doméstico e prestação de cuidados informais a crianças, deficientes de todas as idades e idosos.

23.11.20

"Pedalar sem Idade" leva idosos do Porto a passear num sofá com rodas

André Manuel Gomes e Sara Gerivaz, in DN

Os idosos e as pessoas com necessidades especiais são o público-alvo do projeto, mas qualquer um pode participar, como utente ou voluntário. Para mais informações contacte o 916 614 056 ou porto@pedalarsemidade.pt.

30.8.19

Portugal sem preparação para a doença mental na terceira idade

Rafael Marchante, in SicNotícias

Aviso é da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria que indica ainda que é preciso definir como vai ser usado o Serviço Nacional de Saúde.

A Sociedade Portuguesa de Psiquiatria avisa que Portugal não está preparado para a doença mental na terceira idade, sobretudo na questão das demências, e considera que nos 40 anos do SNS se devia tornar esta área uma real prioridade.
Na véspera do arranque do Congresso Mundial de Psiquiatria, que começa em Lisboa na quarta-feira, o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental indica que os serviços de saúde portugueses "não estão preparados para o que já está a acontecer e para o que aí vem" ao nível do problema das demências.

Em entrevista à agência Lusa, Pedro Varandas recorda o "problema demográfico" de Portugal, com uma população envelhecida e que terá uma forte carga de doença mental.

"A nossa pirâmide demográfica está completamente invertida. Devemos estar já muito preocupados com o que ainda não está a ser feito para preparar os tempos vindouros", afirmou à Lusa.


O psiquiatra entende que se trata de um "problema sério", que precisa de respostas a várias questões: "Como cuidar destas pessoas? Com que dinheiro e com que recursos? Como apoiar as famílias?".
O vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria indica ainda que é preciso definir como vai ser usado o Serviço Nacional de Saúde e de que forma será feita a articulação com a rede de lares existente, que tem de estar preparada para prestar cuidados de qualidade.

Para Pedro Varandas, trata-se de uma área que "precisa de recursos", mas que não são pesados do ponto de vista financeiro.

"São recursos exequíveis e não são largas centenas de milhares de euros. É necessário sobretudo investimento em recursos humanos. Não é uma área que exige grande peso tecnológico. O que exige é organização e implementação", sustentou.
O psiquiatra recorda que Portugal tem na área maternoinfantil e no combate à toxicodependência dois grandes "exemplos de sucesso, até mundial", que deviam servir de impulso para tornar a área da saúde mental uma prioridade.

"Agora, 40 anos depois do início do SNS, devíamos pegar na saúde mental como o novo caso de sucesso", sugere.

Pedro Varandas entende que já chegou o tempo de passar da teoria à prática, deixando apenas de dizer que a saúde mental deve ser uma prioridade e passando efetivamente a tornar a área uma prioridade nacional.

Os cuidados de saúde mental na terceira idade são um dos grandes temas a abordar no Congresso Mundial de Psiquiatria, que decorre em Lisboa entre quarta-feira e sábado e onde são esperados cerca de quatro mil participantes e peritos.
Além do planeamento em saúde mental, o Congresso vai debruçar-se sobre várias áreas clínicas da saúde mental, como as psicoses ou o suicídio. Serão ainda abordados temas ligados à ética, ao estigma da doença mental e aos direitos dos doentes.

18.3.19

A “ventoleta” viaja no tempo para combater o isolamento na terceira idade

André Vieira, in Público on-line

O Pedalar Sem idade está em mais de 40 países e ao Porto chegou em Novembro do ano passado. Os responsáveis por esta iniciativa que proporciona passeios de bicicleta a idosos e a crianças com necessidades educativas especiais pretendem alargar o projecto a outras zonas do país.

“Gosto de ver as ruas largas e estas casas bonitas”, não se cansa de repetir senhor José, como é tratado no Lar de Terceira Idade do Centro Geriátrico Comunitário Quintinha da Conceição, onde vive há três anos, enquanto passeia pela marginal da Foz do Douro.

Tem 78 anos e é apenas a segunda vez que ali passeia. Não é do Porto, nasceu e viveu toda a vida numa aldeia do concelho de Cinfães, no distrito de Viseu, antes de se mudar para aquele lar da Maia.

Este passeio fá-lo de bicicleta, embora não precise sequer de pedalar. Responsável por essa tarefa está Vítor Massa, um dos voluntários do projecto Pedalar Sem Idade, que desde Novembro do ano passado chegou ao Porto para que idosos e crianças com necessidades educativas especiais possam sentir e conhecer a cidade ao sabor do vento, sobre rodas e sem pressas.
Fazem-no à boleia da “ventoleta” – nome escolhido para o veículo de três rodas –, com espaço para três pessoas, a contar com o condutor.

No dia em que o PÚBLICO seguiu um dos dois percursos existentes, Maria Luísa, 86 anos, dividia o espaço frontal da bicicleta, reservado para os passageiros, com o senhor José. Não é a primeira vez que se instala naquela espécie de poltrona com rodas. Numa das experiências escolheu visitar o Parque da Cidade. Desta vez, sugeriu que se explorasse a marginal da Foz. Ninguém se opôs.
Com a ajuda de um dispositivo eléctrico, “fundamental nas subidas”, Vítor Massa pedala em direcção àquela zona nobre da cidade, banhada pelo Atlântico. Não há nuvens a esconder o sol, mas há uma brisa marítima à prova de calor. Antes de partirem, José e Maria Luísa preparam-se para temperaturas menos agradáveis. Os edredons fornecidos pelos voluntários ajudam a atenuar o frio.

Da Trafaria à Costa da Caparica, pedalam-se arribas e vilas piscatórias
Uma viagem no tempo
Do Edifício Transparente, colado a Matosinhos, seguem para uma zona da cidade mais do que familiar para Maria Luísa. Escolheu como destino a Foz precisamente para recordar os tempos em que ali viveu – “uma vida inteira”.
Foi para ali que se mudou, “ainda moça”, para trabalhar na casa de uma família abastada. Saiu de Santo Tirso para trabalhar como cozinheira. Estes pedaços da sua vida são contados uma conversa a três, entre a própria, o senhor José e o cicerone.

“Estas viagens servem também como uma espécie de viagem no tempo. Em todas as visitas fico a conhecer um pouco mais da vida das pessoas que aproveitam para contar episódios da sua vida”, diz Vítor Massa enquanto pedala.

O meu grão de areia para salvar o planeta
É o próprio que desencadeia a troca de palavras. Fá-lo para que esta viagem não seja apenas um passeio para as vistas, mas também uma oportunidade para que os utilizadores do serviço possam sociabilizar.

Vai intercalando perguntas entre o senhor José e Maria Luísa. Fala-se sobre uma Foz que já não existe, em que os passeios entre namorados eram feitos de forma mais recatada no Passeio Alegre, na altura, aparentemente mais distante da Baixa do Porto, de onde o eléctrico que seguia em direcção a Matosinhos partia, com paragem naquela freguesia portuense.
Era de eléctrico que Maria Luísa ia até ao Mercado de Matosinhos comprar os ingredientes para as várias refeições que preparava diariamente. “Eram refeições completas com entradas, prato de peixe, prato de carne e sobremesa. Todos os dias assim, ao almoço e ao jantar”, recorda.

Luxos que o senhor José não tinha na aldeia de Cinfães que o viu nascer. Não tinha luxos, mas tinha que sobrasse para justificar o trabalho diário de sol-a-sol no campo. Era pastor e tratava do gado. Já não desempenha essa função – está reformado –, mas diz ainda ter algumas cabeças de gado na terra.

Espinho tem uma nova rota por pratos de peixe e histórias ao pé do mar
São cerca de 45 minutos de viagem. Pára-se para mirar o mar – que Maria Luísa conhece tão bem e que o senhor José poucas vezes viu –, para apreciar a vista que o olhar alcança ou para recordar o Forte de São Francisco Xavier, que todos os que ali seguem chamam pelo nome que todos os portuenses convencionaram como sendo o oficioso – Castelo do Queijo.
De regresso à base de onde partiram, onde já espera outro grupo, vindo do mesmo lar, reúne-se consenso entre a dupla que acaba de chegar do passeio: “É para repetir”.
É a pessoas que vivem a maior parte do dia num lar como o que serve de residência para estes dois utentes que os responsáveis por esta iniciativa querem chegar, mas não só. Desde que arrancaram o projecto, já transportaram aproximadamente 180 pessoas. Querem chegar a mais e em mais sítios.

Projecto está em 40 países
Foi para isso que o Rotary Club Porto Portucale, de acordo com o presidente da instituição, Luís Castro, decidiu trazer este projecto, que já funciona em 40 países, para Portugal. Explica-nos que chega ao Porto por sugestão de Sílvia Freitas, afiliada do Rotary, após ter assistido a uma apresentação do Cycling Without Age na Dinamarca, onde nasce a iniciativa.

O clube pôs mãos à obra, lançou uma campanha de crowdfunding, da qual resultou a angariação de 3500 euros. Cada bicicleta destas, adquiridas na Dinamarca, custa 8 mil euros. O montante restante foi financiado pela boa vontade de alguns membros do Rotary e do cidadão comum. Não há qualquer apoio estatal ou privado, além do referido.

Mais rotas para mais gente
Falta agora criar mais rotas e para mais gente, afirma Vítor Massa, um dos 12 pilotos voluntários. Vítor tem 59 anos – o piloto mais velho tem 78 -, e durante 30 anos foi director financeiro na banca. Hoje é consultor, na mesma área. Todas as semanas dedica umas horas a esta causa, que pretende ver alargada a outras áreas e a outras cidades. Lisboa será uma das cidades para onde pretendem seguir. Na semana em que o PÚBLICO conheceu o projecto estava agendada uma viagem piloto na capital. Como no Porto, as viagens serão gratuitas.

Prioridade é também combater o isolamento nas grandes cidade: “De acordo com um levantamento feito recentemente, existem nos bairros sociais do Porto cerca de 2500 idosos isolados. É a esses que também queremos chegar”. Para isso precisam de adquirir mais bicicletas, objectivo que o clube, nesta fase, está a tentar atingir.
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16.2.17

Sim, há sexo e do bom depois dos 80

Rosa Ruela, in Visão

Leia este artigo a ouvir em repeat a canção Eu Sei Que Vou Te Amar, de Tom Jobim. Também pode ser nas versões de Caetano Veloso ou de Creuza com Vinicius de Morais. Importante é confirmar que a atividade sexual é possível até com 80 ou mais anos. E tem impacto na qualidade de vida, na saúde física e no bem-estar subjetivo

Não fomos nós que inventámos. O que vai ler parte de uma análise que um psicólogo social e uma enfermeira fizeram dos resultados de um inquérito sobre relações sexuais, incluído no English Longitudinal Study of Ageing (ELSA, dados recolhidos junto de uma amostra representativa da população do Reino Unido com 50 anos até mais de 90).

O principal objetivo de David Lee, investigador na Universidade de Manchester, e Josie Tetley, também professora universitária, era o de perceber se o sexo é importante para a saúde e o bem-estar geral dos mais velhos. Para isso tinham de varrer desde logo um estereótipo – o de que nem elas nem eles querem saber dos prazeres de cama, um trabalho facilitado pelo Inquérito sobre Relações Sexuais, realizado pelo ELSA a mais de 7 mil pessoas, entre 2012 e 2013.

Já se esperava que as mulheres se queixassem de falta de líbido e da secura vaginal, e que os homens estivessem sobretudo preocupados com as dificuldades de ereção. Mas, além de responderem com cruzinhas a uma série de perguntas, os participantes tinham espaço livre para comentários finais. E foi aí que surgiram as informações mais surpreendentes.

Para começar, os investigadores constataram que, apesar de a atividade sexual ir se alterar com o avançar dos anos, a relação amorosa pode continuar satisfatória e recompensadora. Escreveu uma mulher de 60-69 anos: “Para mim e o meu parceiro, a motivação para embarcarmos numa atividade sexual juntos (além dos beijos e das carícias) diminuiu bastante depois da menopausa, mas isso não nos preocupa!” E um homem, com mais de 80 anos, contou: “Eu e a minha mulher dormimos na mesma cama, beijamo-nos e abraçamo-nos antes de adormecer. Gostamos muito da companhia um do outro.”

Quanto ao equilíbrio nas relações sexuais, as diferenças entre os sexos são notórias, independentemente da idade. Elas referem mais vezes sentirem-se “obrigadas”, e eles reportam com maior frequência que não têm os mesmos gostos e aversões das suas parceiras. Mas, seja com mais ou menos vontade, o sexo continua a acontecer, lê-se.

“Penso que o sexo é muito importante para ter uma vida feliz, independentemente da idade. Na verdade, quando estamos a fazer amor podemos ter a idade que queremos, não nos sentimos velhos.” (Mulher, 70-79 anos)

“Estou extremamente contente com a relação sexual que tenho com a minha mulher, e muito satisfeito por, apesar da idade, o sexo para ambos continuar a ser tão bom como sempre foi.” (Homem, 70-79 anos)

Com a idade, o sexo não tem de ser obrigatoriamente sinónimo de penetração. Mas se estão ambos interessados em manter a qualidade da relação amorosa, tudo corre bem até na cama, concluiu-se ao ler o que escreveu, separadamente, um casal:
“Sempre tive uma relação sexual satisfatória com o meu maravilhoso e querido marido, mas com a idade, e em parte por causa dos medicamentos, a nossa atividade sexual foi-se esvanecendo aos poucos. Mas ainda mostramos afeto com frequência – ou seja, todos os dias, a toda a hora.” (Mulher, 70-79 anos)

“Se estamos mesmo apaixonados pela nossa parceira, não temos vontade ou sequer pomos a hipótese de ter relações sexuais com outra pessoa. E eu e a minha mulher estamos ainda tão apaixonados como estávamos quando casámos.” (Homem, 80+ anos)

A grande novidade, notam os investigadores, é que ter a perceção de que a vida sexual é boa leva a uma sensação de bem-estar e que esse bem-estar subjetivo tem, por sua vez, implicações diretas na saúde física. Há lá desculpa melhor?

20.7.16

Saiba quais são os dois distritos com mais idosos a viverem sozinhos

in Visão Solidária

Os cerca de 300 militares da GNR envolvidos na operação "Censos Sénior 2016" sinalizaram 43 322 idosos em todo o país que vivem sozinhos, isolados ou em situação de vulnerabilidade


Quase oito mil idosos moram sozinhos ou isolados em Viseu e na Guarda, os distritos do país com mais pessoas nestas condições, segundo dados da operação "Censos Sénior 2016" divulgados.

Tal como em 2015, Viseu é o distrito com o maior número de casos, onde foram sinalizados pelos militares da GNR 4 113 idosos a viverem nestas condições, mais 358 do que no ano anterior.

Já no distrito da Guarda foram sinalizados 3 870 idosos que vivem sozinhos ou isolados, mais 634 do que em 2015, referem os dados da operação, que decorreu entre 1 e 30 de abril em todo o país. Em terceiro lugar surge o distrito de Vila Real, com 3 455 idosos sinalizados.

Segundo os dados, os distritos do Porto e de Lisboa foram os que registaram menos pessoas que vivem sozinhas ou isoladas, com 1 134 e 972 idosos sinalizados, respetivamente.

Os distritos que registaram o maior aumento de idosos a viver nestas condições foram Braga, que passou de 1 647 em 2015 para 3 022 em 2016 (45%), Leiria, que subiu de 882 para 1 380 (40%) e Faro, que aumentou de 1 977 para 3 048 (35%).

Os cerca de 300 militares da GNR envolvidos na operação "Censos Sénior 2016" sinalizaram 43 322 idosos em todo o país que vivem sozinhos, isolados ou em situação de vulnerabilidade, mais 4 106 em relação ao ano anterior (9,4%).

A GNR adianta que continuará, ao longo ano, a acompanhar os idosos sinalizados, realizando visitas regulares às suas residências, no sentido de promover mais ações de sensibilização e fazer uma avaliação da sua segurança.

20.6.16

“Um país amigo do idoso é aquele que o ouve”

in Expresso

Brasileiro descendente de portugueses, foi investigador e professor na Universidade de Oxford e dirigiu entre 1995 e 2008 o programa global da Organização Mundial de Saúde (OMS). Alexandre Kalache, médico epidemiologista de 70 anos especialista em questões de envelhecimento, em entrevista ao Expresso

“Solidariedade é a palavra que melhor rima com longevidade” é um dos lemas defendidos por Alexandre Kalache, médico epidemiologista de 70 anos especialista em questões de envelhecimento. Brasileiro descendente de portugueses, foi investigador e professor na Universidade de Oxford e dirigiu entre 1995 e 2008 o programa global da Organização Mundial de saúde (OMS). O mentor das Cidades Age-Friendly e consultor da HelpAge Internacional afirmou em entrevista telefónica ao Expresso que o preconceito em relação aos idosos é global e não é novo. Otimista, advertindo os idosos a gritar bem alto, como ele, pelos seus direitos e a bater-se por um envelhecimento ativo e participativo. “Somos a geração dos movimentos dos anos 60, da pílula, virámos a mesa. Como é que vou ser um velhinho como o meu pai ou avô?”, questiona.

A esperança média de vida não para de aumentar. É uma conquista ou um problema?
O facto de as pessoas estarem a viver mais é uma conquista civilizacional. A nível mundial, entre 2000 e 2050 vamos dobrar o número de pessoas idosas. O que sabemos de Portugal é que será um dos três países do mundo mais envelhecidos em 2050. O que carateriza a evolução da longevidade em Portugal é que era um dos países mais jovens entre 1970 e 75. Pouco antes de entrar para a União Europeia era o país mais jovem da altura.

E vamos de mal a pior, já que temos a segunda taxa de natalidade mais da Europa...
Não quero dizer que estejam mal. Portugal avançou muito. Se estivesse como há 50 anos, diriam que estavam mal. Viver mais é maravilhoso. Prefere morrer cedo? Claro que não. O desafio é saber que políticas são necessárias, sustentáveis e realistas face ao nível económico do país. Estamos diante de uma crise prolongada que afetou e continua a afetar muito o vosso país. Não é o envelhecimento que é um problema, é a falta de políticas.

Sem dinheiro é difícil encontrar soluções...
Então o problema é a falta de dinheiro. Se as pessoas idosas pudessem contribuir mais para a sociedade, certamente haveria maior retorno de dinheiro. Se o idoso tem mais energia, mais saúde e pode continuar a contribuir, tem direito a participar da sociedade. Em vez de ser um peso morto, ele será pelo contrário um fator de desenvolvimento económico.

Defende políticas de envelhecimento ativo. Em países onde o mercado de emprego em queda, essa concorrência não será um fator de tensão entre novos e velhos?
Pode ser, se as políticas adotadas não forem feitas com sensibilidade. A natureza do trabalho para idosos e jovens não é a mesma. Um mecânico de automóveis que parou de aprender há 20 anos, quando lhe bastava saber de mecânica e não aprendeu eletrónica, já perdeu o emprego. O que aconteceu é não houve investimento para que esse trabalhador fosse produtivo. Produtividade hoje depende essencialmente de duas coisas: saúde e conhecimento. Na saúde dos portugueses melhoraram tanto que a expetativa de vida deu um salto tal que está mais alta do que a média europeia. Se ao mesmo tempo tivesse investido mais nos idosos, fazendo com que os profissionais liberais ou operários tivessem reciclado ou adquirido mais conhecimentos, seriam todos mais produtivos, gerando mais emprego, riqueza e mais respostas para a crise económica. Um investimento para todo o grupo de adultos, e não só para o idoso.

Numa entrevista, referiu que os brasileiros são preconceituosos em relação aos mais velhos. Em Portugal, tivemos um governando que chamou aos reformados peste grisalha. Como se combate essa discriminação?
Não é só o brasileiro que é preconceituoso. Eu sou um privilegiado porque o meu trabalho é internacional, só na OMS estive 13 anos, e hoje, como consultor, a cada mês estou num continente diferente. Todos os países, todas as sociedades são preconceituosas em relação aos idosos. Não é de hoje. Cícero há dois mil anos, já analisava o preconceito na sociedade romana. O que está acontecendo de diferente? Antigamente os idosos não passavam de 4 a 5% da população e eram sociedades mais conservadoras, de família. Havia respeito pelos mais velhos porque tinham um poder económico e morriam cedo. Não tinham anos e anos de potencial, dependência de familiares, não desenvolviam doenças de senilidade, como o Alzheimer, morriam antes...

E tinham as mulheres da família para cuidarem deles.
Não chegavam a ser uma carga tão grande como hoje. E, claro, havia outro suporte familiar. As famílias tinham 12 filhos, comum em Portugal. Sei disso porque o meu avô, que nasceu no Porto, tinha 13 irmãos e irmãs. O problema do idoso era, por isso, fácil de resolver, pois quando ficavam doentes a medicina não tinha muito a fazer. E se não morriam rápido, tinham sempre uma mulher ou muitas na família para cuidarem deles, até porque a maioria não ingressara no mundo do trabalho remunerado. Hoje, tudo mudou. A família é menor, as mulheres estão no trabalho, os idosos chegam aos 70, 80, 90 ou mais anos. Então temos de reformular a forma de pensar as nossas sociedades.

E qual é o rumo?
Ontem, 15 de junho, foi o dia internacional da prevenção dos maus-tratos, abandono e abuso de idosos. Hoje em Coimbra, na conferência para pessoas interessadas nestas questões, perguntei: quantos de vocês sabem que ontem foi o dia da prevenção do abuso contra idosos? Só cinco pessoas em 200 levantaram o braço. Ou seja, não as pessoas não estão informadas ou sensibilizadas para o problema dos idosos, e não falo só de abuso físico mas psicológico. São pessoas com direito a participar integralmente na sociedade.

Segundo dados do 'Censos Sénior 2016', Portugal triplicou o número de idosos a viver sozinhos, isolados e vulneráveis. São mais de 43 mil. Como se atenua o problema da solidão?
O setor público vai ter de estimular mais a criação de centros de dia e os cuidados primários. É preciso identificar os problemas, inclusive de depressão e solidão, através de programas intergeracionais. Existe um potencial enorme a nível tecnológico. Vou dar um exemplo banal mas criativo do que se pode fazer. Há centros no Brasil de crianças e jovens que têm mentores para aprender inglês com idosos que vivem nos EUA. Sabem inglês, têm tempo, e são tutoras através de skype. Beneficiam os estudantes brasileiros e beneficiam os idosos que nem os conhecem pessoalmente mas sentem-se úteis, ao mesmo tempo que combatem a solidão. Há mil formas de se compensar o contato humano direto que antes acontecia numa família tradicional. São tempos que não virão mais. Não adianta a gente ficar se lamentando, nem lembrando que antigamente a vóvozinha era assim e assado. Antigamente é passo, temos é que pensar o presente com os instrumentos de hoje. Temos de ser criativos numa sociedade em que um de cada três pessoas tem mais de 65 anos, quando antes era um em cada 10.

Que modelos de sucesso de envelhecimento ativo podemos copiar para termos qualidade de vida até tarde?
Primeiro quero reagir ao uso do verbo copiar. Nenhum país pode ser copiado, pois cada um tem a sua cultura e, sobretudo, cada um tem o seu nível de desenvolvimento. Não adianta Portugal copiar o modelo da Suécia ou Dinamarca porque eles são muito mais ricos e têm experiências culturais próprias de um conceito de bem estar social próprios. Até certo ponto, Portugal tenta copiar esse conceito de estado de bem estar social do norte da Europa. A medicina ou a saúde globalizada, como temos hoje, teve um tremendo impacto positivo para idosos. Porém, temos de respeitar o nível económico do país. Portugal envelheceu muito mais rápido com muito menos riqueza. Se for tentar fazer o que a Dinamarca faz vai ser inviável e insustentável. Temos de pegar boas ideias e sermos criativos a adaptá-las ao contexto do Brasil, Portugal ou da Guiné Bissau, quer às suas caraterísticas, como aos seus recursos...

Escassos...
Nenhum país é tão pobre que não possa envelhecer com dignidade, e nenhum país é tão rico que não possa aprender com comparações internacionais. Uma das coisas que precisámos estimular no Brasil, e julgo que em Portugal, é estimular mais pesquisa gerontológica para obter um saber mais apropriado ao nosso contexto. Segundo, ter e dar mais possibilidade aos idosos de se expressarem. Isso é que está na base de um país amigo do idoso. Ele é o protagonista. Ninguém entende mais sobre o envelhecimento do que quem o experimentou. E, no entanto, políticos e investigadores tentam adivinhar. Aí a premissa é: nada para nós sem nós. Nós temos de ter voz, o nosso papel, o nosso protagonismo. Se nos derem a oportunidade de sermos ouvidos, vamos ter muita ideia boa para ser aproveitada. Este é o princípio da OMS, onde comecei o projeto cidade-amiga do idoso com 33 cidades. Hoje são 1800 em todo o mundo. Um movimento que se tornou viral exatamente com base no princípio de baixo para cima. Ouvindo e dando protagonismo a quem envelheceu.

Envelhecer é mais fácil para os homens ou mulheres?
Muito mais fácil para os homens. A sociedade foi feita para e pelos homens. Ainda falta muito para as mulheres terem uma participação de igualdade. Quem cuida maioritariamente é a mulher e quem é maioritariamente cuidado é o homem. E quem mais deixa de ser cuidada? A mulher, que quando precisa não tem mais a família. Em geral é ela que fica viúva e não ele. E quando o homem fica viúvo, consegue mais facilmente se casar de novo para ter alguém que cuide dele. Estamos a décadas de se poder dizer que homens e mulheres envelhecem da mesma forma.

O que acha do termo terceira idade?
Não gosto. Colocar em compartimentos dificulta. O que é a terceira idade? Não sei o que é a primeira e a segunda. Terceira idade é colocar todos os maiores de 65 anos na tal da terceira idade? Então eu estou no mesmo caixote que a minha mãe que tem 98 anos e sofre de Alzheimer, com necessidades muito diferente das minhas. Eu estou aprendendo com ela, me inspirando nela. O meu trabalho tem um norte guiado por ela.

Vive consigo?
Vivemos a um quarteirão de distância. Ela envelheceu no apartamento no Rio, em Copacabana, onde morou desde que casou há 73 anos. Mas sou privilegiado porque tenho condições de a manter em casa com cuidados 24 horas por dia. Também porque tenho irmãos. Mas é uma exceção e estou preocupado por saber como as mulheres que não têm filhos em condições económicas para os manter em casa na ausência de instituições de longa permanência e de qualidade. Como resolver o problema do envelhecimento com dependência e penúria é o desafio grande.

O Estado tem de ser o cuidador?
Não tem outro jeito. Não tem outra solução. Um Estado moderno tem de ser um Estado solidário. Solidariedade é a palavra que melhor rima com longevidade.

Hoje teme-se mais a velhice ou a morte?
Temos uma herança cristã, católica e romana. Ainda não resolvemos nas nossas cabeças o desafio da morte. A morte é como se fosse a falência. Um médico que permite que um paciente morra é como se estivesse falindo. A ênfase é em curar, cuidar. Ainda estamos engatinhando no sentido de termos uma atitude mais adequada aquilo que é inevitável. O importante é ter qualidade até ao fim, enquanto houver vida.

Considera-se idoso?
Tenho 70 anos. Claro que sou idoso, mas um idoso ciente dos meus direitos, ativo, gritando alto. Fui da primeira geração que criou o termo adolescência, que não existia como conceito antes da II Guerra Mundial. Fomos nós os baby boomers numerosos, com mais saúde e nível de educação mais alto que fizemos os movimentos estudantis nos anos 60, que virámos a mesa, que tomámos pílula e usamos métodos anticoncecionais, que controlámos a nossa sexualidade e reprodução. Somos os que estão envelhecendo. Como é que vou ser um velhinho igual ao meu pai ou meu avô? Vou ser diferente. Fui um adolescente, hoje sou um gerontolescente muito ciente dos meus direitos.