13.8.21

Lares de idosos, o novo negócio de milhões das multinacionais

Paulo Pena/Investigate Europe(texto) e Marco Neves Ferreira (Ilustração, a partir de imagem da Getty Images), in Público on-line

Cadeias de empresas internacionais estão a dominar a gestão dos lares de idosos na Europa. Fundos de investimentos em offshores ditam cortes nos serviços aos residentes, salários baixos a enfermeiras e auxiliares, ao mesmo tempo que pressionam os governos para subsidiar o sistema. Impõem uma gestão férrea, que gera lucros enormes. Mas a qualidade dos serviços sofre com isso. É um negócio de risco, para os fundos e para as sociedades envelhecidas.

Mickaelle Rigodon, Aljoscha Krause e Sonia Jalda trabalharam em lares de idosos, nas três maiores empresas multinacionais da Europa, em cidades muito distantes. Rigodon na Orpea de Auvergne, na França; Krause na Korian, em Lüneburg, na Alemanha; e Jalda na Domus Vi, em Vigo, Espanha.

Uma a uma, as suas histórias vão coincidindo. “Os residentes são tratados como peças numa fábrica, sempre com pressa. Muitos trabalhadores do lar desistem, porque não o suportam”, relata Rigodon sobre o Lar Anatole France, em Auvergne. “Tenho a sensação de que não estou a tratar as pessoas com dignidade, mas apenas à peça”, queixa-se Krause, enfermeiro da Haus an der Ilmenau em Lüneburg. “Estamos na mesma, ou pior, do que antes da pandemia”, acusa Jalda, enfermeira, em Vigo, acrescentando uma conclusão: “O modelo é puro negócio.”

Este trabalho, que a equipa de jornalistas europeus Investigate Europe (IE) começou em Março, procura traçar um retrato dessa situação comum, mas pouco conhecida, dos cuidados prestados à terceira idade por um pequeno conjunto de empresas multinacionais. O que encontrámos, de Portugal à Suécia, de Itália à Noruega, foi uma realidade semelhante: os lares de idosos estão subfinanciados e têm menos trabalhadores do que deviam. Contudo, uma parte cada vez maior das despesas governamentais em cuidados de saúde com idosos está a fluir para os cofres destas empresas transnacionais, que são um negócio crescente e muito lucrativo.

Investidores financeiros anónimos estão a assumir quotas cada vez maiores do negócio e estão a fugir aos impostos sobre os seus lucros, muitos deles obtidos com dinheiro público, transferindo as suas receitas para centros offshore. Empresas como a Orpea e a Domus Vi pressionam os seus trabalhadores, que reivindicam mais contratações e melhores salários. Os governos estão a falhar na definição de normas mínimas para a qualidade dos cuidados prestados aos idosos. E o relógio não pára. Em 1961, em Portugal havia 27 idosos por cada 100 jovens. Hoje há 159 por cada 100. Daqui por 50 anos serão 300, dizem as projecções oficiais.
Grandes lucros, grande dívida

A pandemia de covid-19 revelou uma parte do problema, que costuma estar oculta. Na Europa, 41% das mortes relacionadas com a doença provocado por aquele coronavírus ocorreram em lares de idosos. Em Espanha, Bélgica, França, Países Baixos, Eslovénia, Suécia e Reino Unido morreram 5% de todos os idosos residentes em lares, segundo o último relatório da International Long Term Care Policy Network, ou seja, um em cada 20 residentes.

Em Portugal, os dados oficiais revelam que 27% de todas as mortes atribuídas à pandemia ocorreram em lares. Vários trabalhos jornalísticos mostraram, nos últimos meses, a situação dramática vivida em alguns deles. O título da reportagem da jornalista Natália Faria mostra-o: “Essa coisa de se dizer ‘Não chores, vai ficar tudo bem’ não existe aqui.”

Em Espanha, na Itália, na Bélgica e no Reino Unido a Amnistia Internacional publicou relatórios sobre o “abandono” dos residentes em lares. Nesses relatórios, a lista de acusações é longa e grave: violação dos direitos humanos e do direito dos residentes à saúde, abandono dos idosos à morte, problemas estruturais, subfinanciamento e falta de pessoal.

Em 2019, antes de a pandemia chegar, um estudo da OCDE tinha suscitado preocupações sobre esses mesmos problemas estruturais nos cuidados aos idosos e concluído que havia “níveis de pessoal inadequados, má qualidade de trabalho e falta de qualificações, que põem em causa a qualidade dos cuidados e a segurança”.

Aparentemente imune a estas críticas, está a crescer a bom ritmo um negócio internacional de lares de idosos geridos por cadeias que dependem de uma intrincada engenharia financeira. Estas grandes empresas estão a comprar pequenos grupos nacionais, a concentrar posições e a impor uma forma de gestão que, segundo as dezenas de relatos que ouvimos — de clientes, familiares, trabalhadores e académicos — põe ainda mais em risco a qualidade dos cuidados prestados aos idosos.

De acordo com a investigação do IE, 30 empresas de private equity (capital privado) possuem 2834 lares na Europa com quase 200 mil lugares. De acordo com a base de dados Pflegemarkt.com e a investigação do IE, em Janeiro de 2021 os 28 principais operadores de lares na Europa são privados e gerem 5388 instalações com lugares para 455.559 residentes — quase tantos como os habitantes de Lisboa. Em 2017, os 25 maiores operadores de lares na Europa (entre eles, nessa altura, constavam três sem fins lucrativos) geriam uma capacidade de 369.132 lugares.

A Orpea é o maior operador da Europa com mais de 110.000 lugares em mais de 1000 instalações (incluindo algumas clínicas psiquiátricas e de reabilitação). Entre 2015 e 2020, a empresa aumentou a sua capacidade em 65%. Outras 25 mil camas estão a ser implantadas, incluindo mais de três mil em Portugal, onde a Orpea chegou em 2017, depois de ter criado uma empresa imobiliária em Lisboa, e já possui mais de 700 residentes, em nove lares.

A Orpea está cotada em bolsa e o seu maior accionista é o Fundo Público de Pensões do Canadá (CPPIB, com 14,5%). O preço das acções mais do que duplicou desde 2015, enquanto o valor de mercado triplicava. Mas os números mostram outra coisa: a dívida financeira líquida da empresa é de quase 200% do capital. Servir os accionistas (distribuindo dividendos) e os credores (pagando juros pelos empréstimos) custou à Orpea 244 milhões de euros em 2019.

Os lucros de Portugal acabam em Jersey

A Domus Vi é o terceiro maior operador da Europa, com 355 residências e mais de 33 mil camas. Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. É uma cascata de empresas em França, Espanha, Portugal, Irlanda, Holanda e América Latina, que são detidas por outras no Luxemburgo que, por sua vez, dependem de um fundo financeiro na ilha de Jersey, no Canal da Mancha. Evan Mervyn Davies (ou Davies de Abersoch), um antigo ministro de Estado do último governo trabalhista britânico, é o presidente do Intermediate Capital Group plc, um “gestor global de activos alternativos em dívida privada, crédito e capital próprio” que gere o fundo (cujos proprietários não são conhecidos), que detém 55,5% da Domus Vi.

Mas trata-se apenas do começo da história. As descrições que nos são feitas pelas enfermeiras que ali trabalham, pelos residentes que ouvimos e pelos especialistas são a outra face dos resultados financeiros multimilionários destas empresas que lideram uma expansão vertiginosa. Nos últimos dias, a Domus Vi fez um aumento de capital de 333 milhões de euros. Incorporou três empresas que detinha em França numa única, pagando aos accionistas destas empresas uma valorização de 316% ao fim de três anos de investimento. Um novo fundo, Mérieux Equity Partners, passou a ser accionista da rede de lares, mas ainda se desconhece o valor da sua quota.

Em apenas quatro anos, este é o terceiro fundo de investimento a entrar na Domus Vi. Em Julho de 2017, o ICG em Jersey comprou a Domus Vi a outro fundo de private equity, PAI Partners. Foi um grande negócio. Apenas três anos antes o fundo PAI pagou 639 milhões de euros pela Domus Vi. O valor da empresa multiplicou-se por quatro, quando o vendeu ao ICG: 2,4 mil milhões de euros.

A Domus Vi, como a PAI Partners explica, foi uma “compra alavancada” (ou LBO, se quisermos seguir o acrónimo usado). Isto significa que o comprador não investe realmente o seu dinheiro na compra. A aquisição é feita utilizando uma quantidade significativa de dinheiro emprestado para fazer face ao custo. Os activos da empresa comprada são frequentemente utilizados como garantia para os empréstimos. De uma forma mais simples: quando comprou a Domus Vi, a ICG utilizou o dinheiro emprestado e pode ter dado os edifícios dos lares, por exemplo, como garantia ao banco.

O que este exemplo mostra — além da enorme valorização da empresa num curto período de tempo — é a rapidez com que estes fundos entram e saem de um sector em que o impacto social das decisões de gestão é muito mais delicado do que, por exemplo, numa start-up tecnológica.

Seria normal que uma empresa quadruplicasse de valor, em três anos, se apresentasse as características de uma high-tech — inovação tecnológica, possibilidade de crescimento —, mas num negócio como o dos lares de idosos não é essa a realidade.

Um estudo feito pelo grupo de reflexão independente CHPI na Grã-Bretanha estima que os lares privados obtêm lucros de mais de mil milhões de euros por ano, o que corresponde a cerca de 10% do volume de negócios. O autor deste estudo, Vivek Kotecha, explica-nos numa entrevista que as margens de lucro destes casos de que falamos “parecem desmesuradas, dado o risco que está envolvido no serviço prestado, e parecem gerar níveis de lucro realmente elevados face ao que deveria existir numa indústria de mão-de-obra intensiva” como esta.

Mas dentro das 11 empresas do grupo, que ligam a Geriavi espanhola (que é dona da operação Domus Vi em Portugal) ao fundo offshore de Jersey, existe uma engenharia financeira de filigrana. Uma investigação do jornal espanhol InfoLibre (nosso parceiro neste trabalho) revela os contornos de um negócio que esconde os lucros, impõe dívida às empresas reais (as que gerem os lares) e vive dos juros desses empréstimos entre as empresas do mesmo grupo, fugindo assim aos impostos.

Até 2020, a empresa espanhola Geriavi assinou com a empresa francesa que é o seu único accionista (DomusVi SAS) empréstimos no montante de 503 milhões. A Geriavi utiliza o dinheiro que pede emprestado à Domus Vi para a compra de residências em Espanha e Portugal. Ao devolver o dinheiro a França, através dos juros, está na prática a transferir uma grande parte dos seus lucros de exploração para a DomusVi SAS.

Em França está uma outra empresa do grupo, a Kervita, que lançou obrigações convertíveis de mais de 640 milhões de euros. Quem comprou esta dívida? Duas outras empresas do mesmo grupo, desta vez no Luxemburgo. A Topvita Investment Sàrl adquiriu 535,8 milhões de euros, a uma taxa de juro de 9,2%, e a Topvita Financing Sàrl outros 104,7 milhões de euros, a uma taxa de juro de 11%.

As normas internacionais de contabilidade utilizadas pelos auditores indicam que, dado tratar-se de transacções entre empresas do mesmo grupo, estes empréstimos deveriam ter sido subscritos a preços de mercado. Este preço de mercado seria o de uma obrigação semelhante mais dois pontos percentuais. Isto levaria a uma taxa de juro entre 3,5% e 4%. Nas operações europeias, um máximo de 5% poderia ser aceite, embora já seja muito acima do comum. Em nenhum caso, nem os 9,2% nem os 11% que foram praticados.

Em Portugal gere três lares de idosos, no Porto, Aveiro e Viana do Castelo. Em cima, a unidade do Porto Nelson Garrido

Recapitulando: na base, a empresa que gere os lares (que são o negócio real do grupo de empresas) pede empréstimos a uma outra empresa do grupo, que por sua vez depende de outra sociedade financeira que se endivida, também ela em empresas dos mesmos donos, com juros muito mais altos dos que teria se fosse a um banco.

Adquirir dívida a uma taxa de juro de 11% só seria lógico se houvesse uma elevada probabilidade de incumprimento. Por outras palavras, se estivéssemos a lidar com rating equivalente a “lixo”. Mas, logicamente, a ICG não quer que uma empresa sua, a Kervita, emita dívida de “lixo”, com juros ao dobro do preço de mercado, e que esta fosse comprada por outras duas (Topvita) empresas suas, porque estaria a enganar-se a si própria.

A lógica da operação é diferente: cobrar juros de “onzeneiro” (era assim que se chamava o agiota do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, precisamente por cobrar 11% de juros sobre o dinheiro que emprestava) à Kervita faz com que esta empresa perca dinheiro, dentro do grupo – isto é, transfere os lucros da gestão dos lares para o Luxemburgo, através do pagamento de juros da dívida que contraiu.
Tudo isto é legal, mas será transparente?

A Kervita SAS é a empresa que consolida os resultados de mais de 200 filiais em França, Espanha e Portugal. Isto significa que todas as empresas do grupo são tributadas como se fossem uma só, de modo que os lucros de alguns lares são compensados pelas perdas de outros, reduzindo assim a factura fiscal. Todos os lares têm as suas contas, mas a única empresa responsável pelo imposto sobre as sociedades é a empresa-mãe que consolida as contas. Assim, a Kervita SAS poupou 22 milhões em 2019. Isto é algo perfeitamente legal, regulado de forma praticamente idêntica em todos os países da UE, mas na prática acaba por beneficiar grandes grupos com muitas filiais, porque é muito provável que algumas delas venham a ter prejuízos.

Como a Kervita é a empresa que teria de pagar impostos sobre os lucros de todo o grupo, o ICG impõe-lhe o pagamento daqueles juros exorbitantes que vimos para que possa declarar prejuízos. Em 2018, a Kervita teve um resultado financeiro negativo de 82,6 milhões de euros e em 2019 de 70,3 milhões. No total, 152,9 milhões serviram quase inteiramente para pagar os juros à Topvita Investment Sàrl e à Topvita Financing Sàrl.

Mas os lucros não ficam nas empresas Topvita, apesar de terem um regime fiscal muito atractivo no Luxemburgo. No mesmo dia 27 de Julho de 2017 que comprou a dívida da Kervita SAS francesa, a Topvita Investment Sàrl contraiu um empréstimo. A taxa de juro paga aos seus credores é também de 9,2% e essa dívida foi totalmente subscrita por sete empresas que são accionistas da Topvita Investment, directa ou indirectamente. O principal produto utilizado foram os chamados CPEC (“convertible preferred share certificates”), que são isentos de impostos no Luxemburgo. Também a Topvita Financing pediu empréstimos, em que paga a mesma taxa de juro de 11% que cobra à Kervita, dívida essa que também foi comprada na sua totalidade pelos seus accionistas.

Desta forma, o dinheiro que iniciou a sua viagem numa residência em Portugal, Espanha ou França, gerado pelas mensalidades pagas pelos idosos, sobe as últimas etapas da estrutura empresarial até chegar à empresa-mãe criada pelo ICG em Jersey.

Contactámos por quatro vezes a Domus Vi (quer em Espanha, quer na sede em França), nas últimas quatro semanas, para que comentasse esta descrição da sua estrutura empresarial. Não recebemos qualquer resposta.
Áustria e Noruega mudam as regras

Se os leitores resistiram a esta descrição sucinta da complexa engenharia financeira de um negócio de lares, talvez estejam curiosos para perceber se, apesar de tudo, funciona.

Há vários exemplos de negócios arriscados de fundos nos lares. Southern Cross e Four Seasons são dois desses casos de empresas gestoras de lares, financiadas por private equity, no Reino Unido, que entraram em colapso nos últimos anos. “O problema subjacente é que o financiamento por private equity está carregado de dívida... Isto não é exclusivo deste sector, mas claro que, obviamente, o impacto humano é maior neste sector”, sublinha John Spellar, deputado trabalhista, que há muito tempo tem alertado para o envolvimento do capital privado nos cuidados de saúde.

Muitos pedem, por isso, controlos mais rigorosos e “uma regulamentação adequada”. Se os reguladores tiverem “poderes fortes”, sugere Jon Moulton, da empresa de private equity Better Capital, e as empresas estiverem em risco, “então o Estado pode avançar, com força”. “Pode tomar conta da empresa e pô-la sob administração protegida”, propõe Moulton.

Vários países europeus já começaram a prevenir o problema. O governo regional de Burgenland, na Áustria, estipulou por lei, em 2019, que todos os lares só podem ser explorados por empresas sem fins lucrativos a partir de 2024. Os cuidados de enfermagem fazem “parte dos serviços públicos — tal como os cuidados médicos, cuidados infantis e de educação”, diz-nos o conselheiro regional Leonhard Schneemann: “O princípio da maximização do lucro não tem lugar nesta área altamente sensível.”

Muitos municípios sociais-democratas da Noruega fizeram o mesmo. Após o fim dos contratos de concessão com os operadores privados dos lares, as cidades de Oslo, Bergen e Stavanger, por exemplo, não concederam prorrogações e assumiram elas próprias a gestão dos lares. As empresas são boas para a sociedade, “mas são perigosas quando gerem serviços deste tipo”, diz Robert Steen, vice-presidente da câmara de Oslo. “Em última análise, o seu principal objectivo é ganhar dinheiro para dar os proprietários, não é gerir serviços de saúde e cuidados ou contribuir para uma sociedade sustentável.”

A empresa sueca Attendo abandonou então completamente o mercado norueguês e a sua concorrente Norlandia alertou os seus accionistas para o “risco político” que corriam.
A diferença portuguesa

Ao contrário da generalidade dos países europeus, em Portugal o Estado não financia directamente os lares privados. A lei portuguesa, de 2012, manteve o financiamento estatal exclusivo para o “terceiro sector” sem fins lucrativos. Isso ajuda a explicar a ainda reduzida presença das grandes cadeias internacionais no país. Actualmente existem 2537 lares em Portugal, sendo 1677 do sector social e solidário, a maioria geridos e detidos pela Santa Casa da Misericórdia, com acordo de cooperação com o Estado (66%). Os restantes 733 são do sector privado (29%) e 133 são não lucrativos e não têm acordos de cooperação (5%).

Os 12 lares que a Orpea e a Domus Vi gerem em Portugal destinam-se, sobretudo, a clientes de rendimentos altos, que não têm qualquer comparticipação pública no pagamento das mensalidades. As mensalidades cobradas (de 1500 a 4000 euros, segundo as nossas fontes), por empresas multinacionais, têm como alvo um reduzido estrato social, e competem com marcas portuguesas já instaladas, como o Montepio.

Segundo os dados da Dun&Bradstreet, o volume de negócios do sector privado em Portugal era, em 2019, de 330 milhões de euros.

Até 2012, Portugal tinha uma lei muito rigorosa que proibia as casas de repouso com mais de 60 camas. Durante os anos da troika, em 2012, o Governo alterou esta lei e abriu uma nova oportunidade de mercado para lares de idosos, duplicando a capacidade permitida.

Como nos explica Rui Fontes, enfermeiro que gere um lar privado de pequena dimensão e é o presidente da Associação dos Amigos da Grande Idade, os estudos de viabilidade económica demonstram que a rentabilidade se consegue “a partir das 61 camas”. Por isso, um lar com 120 lugares pode ser um bom negócio. Mas por muitas expectativas que tivesse, de início, face à chegada de grandes grupos internacionais, elas foram “completamente goradas”.

“Estes grupos têm uma concepção de cuidados mais relacionada com fazer paredes bonitas do que com prestar cuidados com carinho. Há conforto, é claro, muita cor, muito vidro. Mas a qualidade nesta área não se ganha com a construção.” Perguntamos a Rui Fontes se o negócio imobiliário faz parte da estratégia das grandes empresas. “Este negócio é também imobiliário”, responde. “Normalmente, há uma empresa que faz a construção e depois vende-a a uma empresa que gere a operação. São empresas diferentes. A que gere a operação paga uma renda. Toda a operação está isenta de IVA.”

Isso faz com que, além dos cuidados com idosos, haja outro tipo de lucros possíveis na operação. Rui Fontes explica melhor: “Quando sou consultado por estes projectos, digo que o negócio é bom, porque, quando as portas abrem, o negócio é pago. A empresa gestora já contraiu uma dívida, ou uma hipoteca, para pagar o edifício. Uma vez que se trata de instalações sociais, pode-se construir em áreas restritas.”

Rui Fontes não defende a solução norueguesa ou a austríaca. É a favor de um mercado privado nos lares. “Não contesto a entrada destes grupos económicos privados – pelo contrário. O que eu contesto é que eles cobram 3000 euros a uma pessoa idosa que custa 1200, e já está a dar lucro. Por 3 mil euros, podem oferecer viagens de helicóptero aos utilizadores. Desta forma, eles ganham muito dinheiro. O montante cobrado é maior do que os cuidados que prestam.”

Uma opinião semelhante tem João Ferreira de Almeida, o presidente da Associação de Lares de Idosos, o grupo que representa os lares privados de pequena e média dimensão. “As grandes empresas internacionais concentram-se na importância da estrutura das propriedades. O nível de cuidados, por vezes, não corresponde às expectativas. Em alguns casos, têm uma perspectiva hoteleira. Mas não há realmente uma verdadeira avaliação da qualidade, o Estado só actua se houver queixas feitas pelos utentes ou pelas suas famílias.”

No fim de contas, continua Ferreira de Almeida, a qualidade é fácil de avaliar: “É o que faz uma empresa trabalhar neste sector: tenho uma menor redução de mortes, menos visitas ao serviço de urgência, tenho mais facilidade em preencher uma vaga.”

Rui Fontes insiste também nesse ponto. “Não existem dados públicos sobre a qualidade dos cuidados. A comunicação destes grupos multinacionais centra-se na qualidade das instalações, mas nada diz sobre a diminuição do consumo de medicamentos ou sobre a diminuição das visitas aos hospitais.”

O Governo garante que, durante a pandemia, visitou todos os lares do país. “As acções de acompanhamento técnico são efectuadas regularmente com o propósito de avaliar os serviços e cuidados prestados às pessoas beneficiárias das mesmas. Desde Março de 2020 foram feitas mais de 7140 visitas conjuntas de acompanhamento às instituições, incluindo ao sector lucrativo e a lares ilegais.”

Em outros países europeus é muito difícil encontrar bons exemplos de controlo de qualidade, por parte dos Estados, nos lares de idosos. Em toda a parte os inspectores estão com falta de pessoal. Para a região da Galiza, por exemplo, existem apenas sete inspectores, denuncia-nos a associação de trabalhadoras dos lares. A situação é ainda pior no Norte de Itália. “Sou responsável por 400 lares. Isso significa que teria de inspeccionar duas instalações todos os dias”, revela-nos o inspector-chefe da autoridade sanitária de Turim. “Além disso, também tenho de cuidar de instalações que foram recentemente abertas. Como é que se espera que eu gira isso?” A França reduziu efectivamente o número de inspectores, enquanto a necessidade aumenta, relata um antigo inspector. Para toda a França, diz-nos, existem agora apenas 200 peritos, muito poucos para os milhares de instalações no país. “A lógica da política é auto-regulação pelos operadores”, queixa-se.
Gestão vs qualidade?

Quase todos os relatos de trabalhadores, e ex-trabalhadores, de lares que recolhemos são concordantes: o sector tem muito menos trabalhadores do que precisa, e a política laboral das empresas multinacionais é férrea.

Depois de ouvirmos vários testemunhos sobre a forma como a Orpea reagia face aos trabalhadores que reivindicam melhores condições, chegou-nos às mãos uma sentença judicial de 2017 do Tribunal de Paris. Trata-se de uma queixa da central sindical CGT digna de uma série televisiva.

Queixa-se a central sindical de que a Orpea contratou três actores desempregados (um dos quais se viria a suicidar pouco depois) para trabalharem nos seus lares com uma finalidade específica: infiltrarem-se nas organizações dos trabalhadores e escreverem relatórios porme norizados sobre o que estavam a preparar. Os actores tinham sido contratados por uma empresa de “segurança económica”, a GSC SAS (que abriu falência pouco depois), e que terá seguido a mesma estratégia num outro caso, julgado em França em Março passado, envolvendo uma empresa sueca de mobiliário. O caso da CGT contra a Orpea não resultou em nenhuma condenação, porque os factos remontam a 2010, mas a CGT só fez a queixa em 2015 e, apesar de um inquérito da procuradoria ter sido iniciado, os juízes consideraram que os alegados crimes tinham prescritos.

Philippe Galais, um activista da CGT que trabalhou num lar Orpea durante 20 anos até se demitir, no ano passado, queixa-se: “Primeiro tiraram-me as funções de cuidador e desqualificaram-me profissionalmente. Depois disseram aos colegas para se afastarem de mim e fiquei isolado.” Uma antiga gerente de outro lar da Orpea, que nos pediu o anonimato por temer represálias, confirmou que foi especificamente instruída para usar estas tácticas de intimidação contra o pessoal.

Na Polónia, a empresa tentou livrar-se da presidente da comissão de trabalhadores de um lar na pequena cidade de Konstancin, perto de Varsóvia, em 2019. A enfermeira foi acusada de ter intimidado os seus colegas de trabalho. A Orpea não foi capaz de fornecer provas suficientes. Na Primavera deste ano, um tribunal laboral de Varsóvia anulou o despedimento. A empresa teve de reintegrar a enfermeira. Mas o efeito dissuasor mantém-se.

A empresa está a agir de forma semelhante na Alemanha. Embora o administrador da filial alemã nos assegure que não tem problemas com a organização dos seus empregados, a empresa está a instaurar vários processos contra os presidentes de duas comissões de trabalhadores em Bremen e na Baixa Saxónia, a fim de impor a sua “demissão sem pré-aviso”. Alega-se que falsificaram documentos e que isso representa uma fraude na gestão do tempo de trabalho. As acusações são “completamente falsas” e “uma tentativa de criminalizar as comissões [de trabalhadores] da empresa”, contesta o advogado de Bremen Michael Nacken. No final de Abril, um juiz de Bremen arquivou dois dos casos por falta de provas. Mas a Orpea ameaçou, na sala de audiências, exercer represálias . O advogado da empresa anunciou que estavam a ponderar “vigilância completa” dos membros da comissão de trabalhadores durante o horário de trabalho, com a ajuda de uma agência de detectives.

A Orpea repetiu o mesmo padrão quando o Sindicato do Serviço Público Europeu (EPSU) tentou criar o Conselho de Trabalhadores Europeu. A direcção “obstruiu e atrasou sistematicamente esta medida, apesar de ser um direito legal dos trabalhadores elegerem tal representação a nível europeu”, relata o secretário sindical Guillaume Durivaux, que supervisionou o estabelecimento da EPSU.
Represálias na Galiza

Nestas grandes empresas que têm filiais por toda a Europa, a relação tensa com os trabalhadores, ou os sindicatos, parece ser um padrão. Na Domus Vi, o relato chega-nos de bem perto.

Entrevistamos Maribel Barreiro, 54 anos, enquanto ela se senta, com a perna direita repousada numa cadeira, com talas a todo o comprimento. Rompeu o ligamento lateral da perna no dia 3 de Junho, quando escorregou e caiu, enquanto mudava de roupa no vestiário, molhado, do lar de Vigo da Domus Vi. “Agora tenho de passar o dia em casa com a perna em talas, sem a poder dobrar…”

O acidente não foi, para ela, uma consequência normal de um dia de trabalho. Barreiro era secretária da direcção do lar, quando este era público. Sempre foi membro da comissão de trabalhadoras. Quando a Domus Vi ganhou a concessão, dada pelo governo da Galiza (ali e noutros 31 lares da região autónoma, e 140 em toda a Espanha), Maribel Barreiro foi despromovida. “Puseram-me a trabalhar no armazém, a descarregar pesos que eu não posso carregar, de 600 quilos, a puxar os carros de carga. Fiquei com um problema nas costas e tive de pôr baixa médica e fazer fisioterapia.”

Com Sonia Jalda, que era enfermeira no mesmo lar, fundou a Trega, a primeira associação de trabalhadoras de lares em Espanha. No caso de Jalda, a pressão da empresa foi um pouco diferente. “A primeira coisa que a Domus Vi fez quando chegou foi pedir-nos uma reunião. A mim chegaram a perguntar-me se queria trabalhar só de segunda a sexta e só no turno da manhã, e quanto queria ganhar. Enganaram-se na pessoa...”

Sonia Jalda saiu da empresa depois de sofrer um acidente de trabalho. “Estou reformada por invalidez. Pedi à comissão médica que me deixasse voltar a trabalhar, mas não me deixaram. Dou aulas na universidade pública de Pontevedra, mas estar reformada é muito duro. Amo a minha profissão.”

Todas estas queixas laborais ajudam-nos a perceber uma parte do problema. Estas grandes empresas de lares cortam nos custos para aumentarem os seus lucros. É normal, num bom negócio. Todavia, há uma subtileza importante a ter em conta. Na experiência de Heinz Rothgang, professor de Cuidados e Segurança da Terceira Idade na Universidade de Bremen, e dos seus colegas, os custos de pessoal em lares bem geridos representam cerca de 70% do rendimento da empresa. As empresas líderes de mercado como a Orpea e a Korian, por seu lado, gastam apenas 50% a 55%, de acordo com os seus balanços mais recentes. Isto só é possível “se pagarem abaixo das tabelas e mantiverem a quota de trabalhadores qualificados ao nível mais baixo legalmente previsto”, diz Harry Fuchs, professor de Ciências Administrativas e especialista de longa data em financiamento de cuidados.

Remi Boyer, chefe dos recursos humanos do Grupo Korian, em Paris, nega que assim seja. “Isso pertence ao passado”, assegura-nos. “Os custos de pessoal estão agora a subir para 58% e continuam a crescer”, afirma Boyer, na entrevista que nos deu. Não há forma de verificar se isso está, de facto, a acontecer.

Erik Hamann, dirigente da Orpea Alemanha, também considera irrelevante a leitura sobre a baixa percentagem de custos de pessoal no volume de negócios da sua empresa. “Apenas temos mais volume de negócios do que outros.” Garante que a sua empresa oferece salas de conforto e outros serviços adicionais, “pelos quais os [seus] residentes pagam mais”. No entanto, a empresa não fundamenta se isso significa que as despesas de pessoal são perto dos 70% recomendados. As histórias do pessoal e dos residentes em casas Orpea levantam dúvidas.

Foi através de uma queixa de funcionários que as autoridades descobriram uma realidade grave num lar Orpea em Kirchberg, na Áustria. De acordo com o relatório do governo, as instalações não cumpriam a proporção mínima exigida de pessoal. Os residentes foram “sistematicamente levados para situações de incontinência”, porque não foi realizada qualquer formação sanitária, constataram os auditores. Os pacientes foram também simplesmente entubados, em vez de serem encorajados a beber. O inspector escreveu sobre um “risco grave para a vida dos residentes” e “cuidados perigosos”. No caso de um residente de 93 anos, cuja necessidade de cuidados tinha sido mal avaliada durante anos, o inspector refere um “desastre desumanizador”.

Os prestadores de cuidados na filial suíça da Orpea Senevita têm experiências semelhantes. Aí, “as condições de trabalho são bastante medíocres em comparação com outros lares e o quadro de pessoal é escasso”, diz Samuel Burri, co-responsável do sector da enfermagem no sindicato Unia.

Os resultados do inquérito aos empregados da Orpea realizado pela cientista social britânica Jane Lethbridge revela que “há um problema constante de falta de pessoal” em muitas das instalações do grupo. Na Alemanha, em Espanha e na Itália, um quarto da mão-de-obra está empregada apenas numa base temporária. Além disso, o grupo adiciona frequentemente trabalhadores administrativos, de limpeza e outros ao pessoal de enfermagem, a fim de cumprir os requisitos legais. “Isto mascara a extensão da falta de pessoal dos trabalhadores de enfermagem”, revela Lethbridge.
Queixas em Portugal

Em plena pandemia, um destes grupos privados contactou Rui Fontes com um pedido urgente, “para saber como contratar, de um momento para o outro, 30 enfermeiros”. Com uma condição: “A ganhar 7 euros à hora. Eu sou enfermeiro e disse: ‘Ou mudam isso ou não conseguem enfermeiros nenhuns…’”

Enquanto gestor de um lar privado, Rui Fontes é muito crítico da regulação sobre o sector. “As empresas cumprem a lei, que é muito permissiva. A lei não define horas de trabalho, número de médicos em função do número de utentes. Define apenas um enfermeiro por cada 20; num lar de 120 utentes isso significa seis enfermeiros, ou seja, um enfermeiro por turno. Um enfermeiro por turno para 120 pessoas é difícil de se entender e difícil de manter bons cuidados de saúde.”

Para a associação Amigos da Grande Idade a conclusão é clara: “A mobilidade de pessoal não deixa haver qualidade. Há auxiliares que trabalham quatro horas e são substituídos. É um modelo de gestão de pessoal quase de escravatura.”

José Manuel Canavarro, professor de Psicologia na Universidade de Coimbra e ex-governante do PSD, tem sido consultado por alguns destes grupos internacionais que se instalaram em Portugal. Prefere olhar para o problema de outra forma, mais positiva. “Esta é uma actividade que é semelhante às antigas indústrias, porque dá emprego a pessoas com baixas qualificações. E há uma taxa grande de emprego feminino. Empregam pessoas que teriam grande dificuldade em encontrar outros empregos.”

A associação galega de trabalhadoras de lares conhece os casos de várias portuguesas que trabalham do lado de lá da fronteira. Contudo, em Portugal não há nenhuma organização parecida. Contactámos repetidamente os sindicatos do sector (serviços sociais) e o sindicato da hotelaria (que representa as auxiliares), mas nenhuma destas estruturas quis comentar a situação laboral no sector, ou fornecer-nos os contactos de sindicalistas que trabalham em lares geridos por multinacionais.

O Governo, através do Instituto da Segurança Social, revela-nos que “foram recebidas cinco denúncias e duas reclamações” de familiares e utentes dos 12 lares geridos pela Orpea e pela Domus Vi em Portugal. Uma destas queixas está ainda a ser investigada e prende-se com a falta de recursos. A maioria das queixas tem que ver com a falta de enfermeiros e de pessoal.

De acordo com a OCDE, os Estados da UE, bem como a Grã-Bretanha, Noruega e Suíça contribuem com mais de 220 mil milhões de euros por ano para os cuidados com idosos. Os próprios utentes pagam mais de 60 mil milhões de euros dos seus próprios bolsos. E este valor está a aumentar todos os anos. “O rápido envelhecimento da população em toda a Europa será o maior motor de crescimento do mercado dos lares de idosos a longo prazo”, diz a consultora de gestão Knight Frank, elogiando o contínuo boom do sector.

De acordo com estimativas da Comissão Europeia, o custo dos cuidados a longo prazo na Europa mais do que duplicará dos actuais 1,7% para 3,9% do PIB em 2070. Isto torna o negócio completamente à prova de crise, explica Matthias Gruß, especialista para o sector do Verdi, o sindicato alemão do sector. “É um negócio muito atractivo para os investidores, porque existe um fluxo de caixa seguro.”

É isso que torna este assunto tão relevante para nós, os principais “activos” desta história de negócios.

Investigate Europe é uma equipa de jornalistas de 11 países que investiga conjuntamente temas de relevância europeia e publica em meios de comunicação social de toda a Europa.

Para além do PÚBLICO, os meios de comunicação social parceiros desta investigação incluem: Der Tagesspiegel (Alemanha), Mediapart (França), Telex (Hungria), Aftenbladet e Bergens Tidende (Noruega), Dagens Nyheter (Suécia), EfSyn (Grécia), Il Fatto Quotidiano (Itália), Open Democracy (Reino Unido), Gazeta Wyborcza (Polónia), Falter (Áustria), Trends (Bélgica), Republik (Suíça), FTM (Países Baixos).

Contribuíram ainda para esta investigação: Wojciech Cieśla, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Attila Kálmán, Nikolas Leontopoulos, Anne Jo Lexander, Maria Maggiore, Stavros Malichudis, Sigrid Melchior, Leïla Miñano, Paulo Pena, Elisa Simantke, Nico Schmidt e Harald Schumann, bem como Eelke van Ark (Follow the Money), Manuel Rico (InfoLibre), Gerlinde Poelsler (Falter), Jef Poortmans (Trends), Philipp Albrecht (Republik).

O projecto é apoiado pelos seus leitores através de doações e pela Fundação Schöpflin, a Fundação Rudolf Augstein, a Fundação Fritt-Ord, a Open Society Initiative for Europe, a Fundação Adessium, a Fundação Reva e David Logan, e a Fundação Cariplo.

Saiba mais sobre a investigação, e encontre material extra e entrevistas, aqui.