Pandemia deu impulso de 12,3 mil milhões nas poupanças aplicadas pelos portugueses em depósitos, fundos e certificados do Estado entre Março de 2020 e Junho deste ano. Depósitos representaram 76% do total.
O dinheiro aplicado pelos portugueses em depósitos, fundos e certificados desde Março de 2020, quando se iniciou a pandemia, chegou aos 22.736 milhões de euros em Junho deste ano, um valor que fica 118%, ou 12.286 milhões, acima do mesmo período de 2018/2019.
Este é o resultado de uma poupança forçada pelo confinamento, com entraves do ponto de vista da procura e da oferta, e pela incerteza da crise global provocada pela covid-19, mitigada pelos apoios ao nível do emprego (e salários) como o layoff simplificado. Só no segundo trimestre de 2020, por exemplo, o rendimento disponível dos portugueses diminuiu, em média, 2% face ao período homólogo, e o consumo privado registou uma quebra inédita de 12,3%.
Dos que conseguiram poupar - mesmo com medidas de apoio há quem tenha sofrido fortes quebras de rendimento ou perdido o emprego -, a principal opção foi pelos depósitos, que chegaram aos 18.053 milhões de euros nos 16 meses em análise, subindo 9361 milhões face ao mesmo período de 2018/2019 e representando 76% do total da poupança extra.
Os depósitos têm vindo a bater novos recordes (o total chegou aos 169,9 mil milhões de euros, contabilizando aqui já os valores de Julho disponibilizados esta quinta-feira pelo Banco de Portugal), e os valores nas contas à ordem nunca estiveram tão próximos do montante dos depósitos a prazo (eram 47,2% do total em Junho), num contexto de baixa inflação.
Aversão ao risco e liquidez
Neste contexto, segundo os especialistas contactados pelo PÚBLICO, destaca-se a primazia dada à questão da liquidez, num “clima de grande incerteza” e com “rendibilidades relativamente baixas dos activos alternativos aos depósitos à ordem”, como refere Pedro Bação, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Paulo Rosa, economista chefe do Banco Carregosa, sublinha também “a ausência de uma remuneração expressiva que motive as famílias a constituírem depósitos a prazo”, porque estes estão com “taxas de juro implícitas de quase zero”.
Em Portugal aloca-se uma maior proporção a depósitos bancários por comparação com outros países europeus Paula Carvalho, responsável pelo Departamento de Estudos Económicos e Financeiros do BPI
“Considerando o conjunto dos activos financeiros das famílias”, realça Paula Carvalho, responsável pelo Departamento de Estudos Económicos e Financeiros do BPI, em Portugal “aloca-se uma maior proporção a depósitos bancários por comparação com outros países europeus – em 2019, 44% dos activos financeiros das famílias em Portugal face a 38% em Espanha, por exemplo, segundo dados do Eurostat -, o que evidenciará um misto de maior aversão ao risco e menor literacia financeira”.
Mais dois mil milhões depositados em Abril
Só em Abril de 2020, mês de maior confinamento logo após a declaração da pandemia, foram depositados 2039 milhões de euros, quase quatro vezes mais do que em idêntico período do ano anterior. A este factor pode estar ligada a tal opção por liquidez que esteve muito sublinhada logo em Março, período em que houve uma forte saída de activos como os fundos.
Em Março de 2020, de acordo com os dados do Banco de Portugal, os particulares retiraram 1256 milhões de euros que estavam em fundos ligados a obrigações, imobiliário e acções, um movimento que ocorreu na generalidade dos mercados financeiros. Esse valor foi depois reposto e mesmo superado até ao final do ano, tendo sido o instrumento de poupança que mais acelerou na actual conjuntura, acabando por se registar uma diferença de 3359 milhões de euros face aos montantes aplicados entre Março de 2018 e Junho de 2019 – e que não foram além dos 121 milhões.
16.805 Os particulares tinham 16,8 mil milhões de euros em fundos no final do passado mês de Junho. No período imediatamente anterior à crise financeira de 2008, o valor chegou aos 28,7 mil milhões de euros.
Fundos a crescer, mas longe de 2007
Ao todo, os particulares tinham 16.805 milhões de euros em fundos no final do passado mês de Junho, com destaque para as unidades de participação ligadas às obrigações e ao imobiliário, em detrimento das acções. Mesmo assim, apesar dos valores aplicados durante a pandemia e do crescimento dos últimos anos (em Junho de 2016 estava abaixo dos oito mil milhões), a aposta dos particulares em fundos está bem longe do período imediatamente anterior à crise financeira de 2008, quando chegou aos 28,7 mil milhões de euros.
“O aumento da preferência por fundos de investimento significa que os aforradores percepcionam esta escolha como tendo um menor risco e/ou um potencial de remuneração mais elevado que no passado recente, comparando com alternativas, nomeadamente instrumentos com capital garantido”, diz Paula Carvalho. Assim, refere esta responsável do BPI, os aforradores mostram estar “disponíveis para assumir um risco mais elevado e uma maior volatilidade, com a contrapartida esperada de uma melhor remuneração”, mas ainda numa pequena escala, “resultado da avaliação comparada de riscos e de uma atitude de prudência das famílias portuguesas em relação às suas aplicações financeiras”.
Para Paulo Rosa, “a recuperação dos mercados financeiros e uma poupança acrescida das famílias de maiores rendimentos justificam grande parte da subida dos fundos de investimento”. “Impulsionada pela pandemia, uma boa parte da poupança extra concentrou-se nas famílias de maiores rendimentos e a subscrição de fundos de investimento está mais associada a estes agregados de rendimentos mais elevados”, refere este responsável do Banco Carregosa, explicando que “a propensão marginal para consumir é menor nas famílias de maiores rendimentos e, consequentemente, acréscimos de poupança serão diversificados por um número maior de alternativas e instrumentos financeiros”. Assim, acrescenta, “parte poderá ter sido canalizada para fundos de investimentos e justifica, em parte, a maior aceleração na subscrição” deste tipo de poupança.
Por outro lado, diz Paulo Rosa, “os investidores portugueses ainda estão muito apreensivos e recuperam gradualmente o seu apetite pelo risco”. “A aversão ao risco em Portugal agravou-se acentuadamente há 12 anos com a crise do subprime nos EUA, a que se seguiram dificuldades na banca nacional, diminuição do peso e da importância da praça portuguesa, e a intervenção da troika em 2011”, contextualiza.
A recuperação dos mercados financeiros e uma poupança acrescida das famílias de maiores rendimentos justificam grande parte da subida dos fundos de investimento Paulo Rosa, economista chefe do Banco Carregosa
Sobre a diferença dos valores actuais dos fundos e dos que se verificavam em 2007, Pedro Bação também destaca “o impacto da desconfiança depois do choque da crise financeira internacional”, recordando que “muitos activos ainda não recuperaram totalmente o valor perdido nessa crise”. A esses elementos, diz, “junta-se o facto de, não obstante os ganhos pós-choque pandémico, as rendibilidades dos fundos de investimento (especialmente dos que investem mais em acções) serem ainda relativamente baixas quando vistas num horizonte temporal mais longo”.
No que diz respeito ao ritmo de aplicação de verbas em fundos desde que a pandemia começou, este professor de economia de Coimbra destaca quatro factores, a começar pela remuneração. “As valorizações ocorridas nos últimos meses estão a ajudar muito as empresas gestoras de fundos de investimento a vender os seus títulos”. Isso, diz, é facilitado por um segundo factor, “que resulta de os fundos serem frequentemente vendidos através dos bancos, que, tendo eles próprios actividades de gestão de fundos de investimento, têm um incentivo para direccionar as poupanças dos clientes para esses fundos de investimento, que proporcionam rendimentos importantes em comissões de gestão”.
Em terceiro lugar, refere, os fundos de investimento “também beneficiam de, em geral, terem um grau de liquidez elevado, pelo menos ao fim de alguns meses”, a que se junta o facto de terem vantagens face à aquisição directa de acções ou obrigações (como a gestão da carteira e custos de transacção).
Há, depois, os produtos do Estado, os certificados de aforro e os certificados do tesouro, e que, apesar de já ultrapassarem um stock de 30 mil milhões de euros, acabaram por ter uma prestação menos positiva na pandemia: entre Março de 2020 e Junho deste ano houve um reforço de 1203 milhões de euros, menos 434 milhões face a Março de 2018/Junho de 2019.
Pedro Bação destaca que os instrumentos de poupança do Estado “têm relativamente pouca visibilidade” e taxas de rendibilidade que “só se tornam atraentes à custa da perda de liquidez. “Certamente a maior parte dos aforradores com poupanças mais significativas terá gestores de conta nos bancos com que trabalham, e esses gestores de conta não irão fazer publicidade aos certificados de aforro, mas sim aos fundos de investimento vendidos através do banco”, diz, acrescentando que “o canal de venda, bem como os serviços associados (home banking), desfavorece claramente os instrumentos de poupança patrocinados pelo Estado”.
Para Paulo Rosa, “os depósitos a prazo são mais interessantes quando aplicados em prazos mais curtos como 6 a 12 meses”, enquanto os produtos do Estado “são mais interessantes para horizontes temporais mais longos, devido aos prémios de permanência e bonificações que proporcionam”.
Creio que não haverá um boom espectacular do consumo, que leve a ultrapassar ou pelo menos atingir rapidamente os níveis pré-pandemia, mas à medida que nos desconfinamos há certamente um efeito muito positivo sobre o consumo Pedro Bação, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Certo é que, refere, a “preferência por liquidez continua a dominar as poupanças dos portugueses”, algo que está reflectido no facto de os certificados de aforro e os do tesouro corresponderem a apenas 17% dos montantes de depósitos.
Além destas opções, os especialistas notam que está também a ser canalizado dinheiro para o mercado imobiliário. Depois, poderá haver quem também aplique dinheiro em alternativas como o ouro ou arte, e o Banco de Portugal também já deu nota de que se assistiu no ano passado a uma retenção de notas como “reserva de valor”, ou seja, como segurança em tempos conturbados tal como aconteceu na crise financeira iniciada em 2008.
Economia à espera do consumo
Conforme já escreveu o PÚBLICO, entre Abril de 2020 e Março de 2021 a taxa de poupança das famílias foi de 14,3% do rendimento disponível (mais 9549 milhões de euros em termos absolutos), o que é o valor mais alto, pelo menos, desde o início do século e quase o dobro dos 7,8% registados nos doze meses imediatamente anteriores.
215,2 No final de Junho os portugueses tinham 215,2 mil milhões de euros aplicados em depósitos, certificados do Estado e fundos
De acordo com as estimativas do Banco de Portugal, o valor do acréscimo de poupança poderá chegar aos 17,5 mil milhões de euros entre o ano passado e 2023, montante que poderá fazer subir as taxas de crescimento do consumo actualmente previstas.
Questionada sobre se estima que grande parte da poupança arrecada durante a pandemia venha a ser gasta em consumo num futuro próximo, a responsável do departamento de estudos económicos e financeiros do BPI, Paula Carvalho, diz que uma parte será usada, mas que não se pode “antecipar qual a dimensão dessa parte”. “Será sempre um movimento gradual, previsivelmente a favor do consumo, mas também do investimento”, refere.
“Creio que não haverá um boom espectacular do consumo, que leve a ultrapassar ou pelo menos atingir rapidamente os níveis pré-pandemia, mas à medida que nos desconfinamos há certamente um efeito muito positivo sobre o consumo”, responde Pedro Bação.
Por seu lado, Paulo Rosa recorda que “a poupança tende a aumentar em períodos de crise e a descer em períodos de menos incerteza”, e que “parte da poupança amealhada pelas famílias de rendimentos menos elevados poderá alimentar e aumentar o consumo num futuro próximo e quando a incerteza for menor”.
Todavia, acrescenta, “os agregados de rendimentos mais elevados respondem por boa parte da poupança durante a pandemia e nestas faixas de rendimentos a propensão marginal ao consumo é menor”.