11.8.21

O egoísmo dos humanos contra a crise climática

Manuel Carvalho, editorial, in Público on-line

Tão dramática como a ameaça do aquecimento global é a constatação de que a solução para o mitigar vai exigir uma daquelas revoluções que raramente acontecem sem conflito.

Fome no Sul de Madagáscar; aquecimento brutal na costa da América do Norte voltada para o oceano Pacífico, onde os mexilhões cozeram com o calor; cheias para lá do registo da memória na Alemanha; incêndios descontrolados na tundra siberiana. Um breve elenco dos fenómenos da crise climática das últimas semanas basta para duas constatações terríveis: os impactes do aquecimento global não são um augúrio vago do futuro; apesar destas evidências, a humanidade continua sem ser capaz de reagir à maior ameaça à sua sobrevivência pelo menos depois da invenção da escrita. O último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) dá-nos conta dessa impotência e dos seus custos.

A crise climática está nos discursos políticos e entrou nas decisões das empresas mais responsáveis. Nenhuma projecção inteligente do futuro próximo omite as suas consequências. Só governos liderados por lunáticos negacionistas e irresponsáveis, como Jair Bolsonaro, recusam olhar o problema de frente e procurar caminhos para chegar depressa à neutralidade carbónica que nos separa da catástrofe. Mas, ainda assim, apesar de tantas palavras, de tanta urgência, de tanta certeza, a humanidade continua inconscientemente à espera que algo de milagroso aconteça – que o problema se resolva por si; que tudo não passe de um momento; que o planeta se regenere como em outras idades geológicas.

A paralisia, porém, não radica apenas numa espécie de fé. O que a justifica é também a noção de que a resposta necessária contra a catástrofe exige dos políticos, dos gestores e de todos nós uma mudança de hábitos que pode estar para lá do que é possível. É preciso falar sem meias-palavras: o recuo nas emissões de CO2 ou de metano implica um recuo civilizacional. Implica que se consuma menos carne, que se viaje menos, que se comprem menos televisões ou computadores. Implica uma travagem no modelo de economia e de sociedade voltado para a riqueza e o crescimento contínuo. Ou, por outras palavras, requer a austeridade e a frugalidade que as sociedades ocidentais apenas aceitaram na sequência de pandemias, guerras ou cataclismos naturais.

Tão dramática como a ameaça do aquecimento global é, por isso, a constatação de que a solução para o mitigar vai exigir uma daquelas revoluções que raramente acontecem sem conflito. Deixe-se o romantismo dos que acreditam que o desafio depende de um acto de vontade e comece-se a encarar a realidade crua. Nada no futuro será fácil – mesmo que a escolha seja óbvia. Ou a humanidade é capaz de temperar o egoísmo inerente à sua condição, que serviu de mola ao progresso, e assume o desafio de gerir a crise, ou terá de enfrentar os seus custos num caos que se adivinha aterrador.