Abel Coentrão (texto) e Adriano Miranda (fotografia), in Público on-line
Miguel Anxo Lores, líder da equipa que há duas décadas governa o município de Pontevedra, levou muito a sério a mensagem de Jane Jacobs sobre as condições de vitalidade das cidades. Com um espaço público dedicado aos peões, o município galego é um exemplo mundial de uma cidade pensada para as pessoas, e não para os automóveis.
Mais pequena do que algumas freguesias de Lisboa, mas com 65 mil habitantes, a cidade de Pontevedra, na Galiza, iniciou há duas décadas uma reforma urbana que colocou o peão como utilizador prioritário do espaço público, no qual os carros têm menos espaço e foram obrigados a abrandar. Com isto, metade do tráfego desapareceu e a sinistralidade rodoviária diminuiu tão drasticamente que há uma década que não morre ninguém nas ruas deste município onde vivem, no total, quase 85 mil pessoas, entre o núcleo urbano e as freguesias rurais. À frente desta autarquia desde 1999, o médico Miguel Anxo Lores confessa que, apesar dos resultados, a ideia de que temos o direito de levar um carro para onde quisermos está incrustada no nosso ADN, e tem de ser combatida todos os dias. É como o machismo, compara, nesta entrevista ao P2, em que deixa um recado para os decisores políticos: “Se mesmo sabendo que acalmando o tráfego se evitam mortes e se diminui a violência rodoviária, não o fazemos, não estamos a exercer a nossa função.”
Como é que num município com quase 85 mil habitantes se consegue passar dez anos sem uma vítima mortal nas estradas?
Bem, na verdade já tivemos morte em vias que não estão sob nossa gestão e nas quais não conseguimos impor as nossas medidas de acalmia de tráfego. Sob nossa jurisdição temos muitas estradas sem bermas nem passeios. Aí há gente, muitos peões. É tão perigoso como na cidade, e metemos mais de mil passagens de peões elevadas também nessas zonas. Só na cidade serão umas 600. Há 15 anos que, todos os dias, se coloca alguma barreira vertical para acalmar o tráfego num rua do concelho. E temos muitas plataformas únicas em que a via e os passeios estão ao mesmo nível, ainda que aí haja tráfego. Nas ruas de sentido único começámos por não pôr esse tipo de obstáculo, pois tínhamos estreitado a via para abrandar os carros, mas mesmo assim havia gente a acelerar por ali, principalmente de noite, e tivemos de fazer uso dessas ferramentas. Teve de ser assim.
E, no entanto, a cidade mantém-se aberta à circulação automóvel?
Pela manhã, temos das 10h às 12h as cargas e descargas, mas as entregas de encomendas podem acontecer durante todo o dia. Tem havido no mundo um grande debate sobre o comércio electrónico e o seu impacto nas cidades, onde aumentou o tráfego da “última milha”, o de entregas. Para nós, é claro que o problema não é ter muita venda ao domicílio, mas o facto de a cidade estar congestionada. Se se lhe acrescenta este tráfego e não há onde parar para entregar a mercadoria... Os urbanistas falam de um estado de congestão óptimo. Mas isso não existe. A congestão nunca é óptima. Aqui, o que fizemos foi reduzir os veículos que entram na cidade e deixámos mais espaço para que as pessoas possam parar, em serviço.
Como reduziram esse tráfego?
Na parte mais urbana, praticamente não é possível estacionar à superfície. Os lugares que existem são para parar durante 15 minutos, no máximo, para logística ou algum assunto pessoal. Vai ali quem precisa de ir. E ao tomarmos essa opção, acabamos com esse tráfego de carros à procura de estacionamento, dando voltas pela cidade. Esse era o mais abundante. O segundo mais abundante é o que cruza a cidade. E esse eliminámo-lo quase todo também. Aqui não se consegue entrar pelo norte e sair pelo sul. Se se entrar por um lado, é-se obrigado a sair pelo mesmo, graças a um ordenamento viário, com a sinalização. Nós deixamos entrar os carros até todos os lugares, mesmo aqui no centro, porque se faz carga e descarga, porque há habitação, porque alguém vai levar lá alguma coisa. Mas esses têm de ir. É um tráfego de destino, o tráfego necessário para que a cidade funcione.
Passamos por ele agora, na rua. Um camião a andar entre as pessoas, muito devagarinho...
Escute: estamos num terceiro andar. O que ouve? Pessoas, falando. Aqui passavam 14 mil carros por dia, até ao ano 2002 ou 2003, quando cortámos esta rua, depois de, em 99, termos começado por fechar de aqui para baixo, o centro histórico, até ao rio, numa área de 300 mil metros quadrados. No resto da cidade, em volta, fomos implementando depois. Na Praça de Espanha, onde fizemos o parque subterrâneo, em três pisos reservámos um para residentes. As pessoas puderam comprar um lugar por 70 anos, o tempo da concessão, por um valor que, julgo, rondou os 16 mil euros.
Em 70 anos, isso dá menos de 250 euros por ano, para guardar um carro...
Sim, mas à empresa concessionária interessa ter esse número de lugares garantidos. Noutros sítios, só avançámos quando tínhamos moradores interessados. Houve um caso, numa rua bastante larga, onde não se fez o parque porque as pessoas não quiseram. E agora estão arrependidos. A questão é que tinham estacionamento à superfície e tomavam-no por garantido. E nós queríamos suprimir esses lugares. E fizemo-lo. Na questão do estacionamento, a nossa opção é óbvia.
As pessoas têm a ideia de que têm um direito natural a estacionar um carro no espaço público? Essa vossa atitude não vos custou votos?
Quê? Votos? Não. Os políticos que têm medo de tomar decisões avaliam erradamente várias questões. As pessoas que protestam em “defesa” do comércio local, quando estão numa rua pedonal vêem as compras aumentar. Aqui multiplicaram-se por dois ou por três. Eu conto sempre a história passada numa rua central, que fazia parte do nosso IP1, a Nacional 550, que vai da Corunha a Tui. Por ali passavam 28 mil carros. Nós suprimimos o tráfego com um grande apoio dos vizinhos. Como sempre, havia críticas, que não eram representativas desta maioria. A imprensa foi perguntar a um senhor de uma livraria se ele estava de acordo com a pedonalização da rua, e a resposta dele foi: “A mim nunca me entrou um carro na livraria a fazer compras...” Mais à frente, numa curva, perguntaram o mesmo a outro livreiro, e a resposta dele foi: “A mim, uma vez entrou-me um carro de noite, na loja, mas não gastou nada...” Todos os franchises famosos querem estar nessa área pedonal. Nas ruas perpendiculares há petições para que se pedonalize, porque ficam fora do circuito. Onde há carros na rua, não há gente. A gente compra enquanto anda. Repare, Pontevedra é tradicionalmente conservadora nas eleições regionais e nacionais. E apesar de não termos essa base social, as pessoas votam sistematicamente nesta gestão municipal, da esquerda nacionalista galega. Não o fariam se não gostassem deste modelo de cidade. Isto dá votos porque as pessoas são felizes. Experimente ver a cidade à tarde, com as praças, após o fim das cargas e descargas: é uma explosão de gente na rua, de crianças a brincar nas praças.
E isso atrai população?
Esse tema é importante. Na Galiza, nós temos 2,7 milhões de habitantes e estamos a perder população. Há cidades e vilas a perder gente, algumas medram, e nós estamos a medrar, num contexto destes. Somos a cidade mais jovem da Galiza, em termos de média etária (43 anos). E a cidade está a crescer no centro urbano. Nós temos 15 freguesias. Em 1999, havia 22 mil pessoas nessas freguesias e na cidade pouco mais de 50 mil. Agora estamos com 65 mil habitantes na cidade, que cresceu 30%, enquanto a envolvente perdeu três mil pessoas. Veio gente de fora. E isso acontece porque há qualidade de vida, porque a cidade se tornou atractiva e se mantém compacta. Essa é outra guerra, e um problema que têm em Portugal, como noutras cidades da Galiza. Em três quilómetros quadrados temos 65 mil pessoas. Se aumentarmos o perímetro em cem metros, ou aumentando um piso às construções permitidas — aqui o máximo que temos é r/c mais seis, desde 89 — metemos cem mil habitantes. Aqui por exemplo, não concordamos com grandes superfícies fora da cidade. Temos um Carrefour, ao qual dei a licença porque já estava construído quando chegámos. Apostamos no comércio local, numa economia de proximidade. Não queremos uma cidade segregada por espaços e funções, mas multifuncional. Temos um campus universitário que já estava feito, fora do casco urbano, mas temos também faculdades dentro da cidade. Há franchises de marcas comerciais conhecidas, mas na rua. Saímos da nossa casa e temos num raio de 500 metros a escola do nosso filho, a lavandaria, a mercearia. É isso a Unidade de Vizinhança, do Clarence Perry, já de 1929. Agora fala-se da cidade dos 15 minutos, com o Carlos Moreno e a presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, que está a fazer coisas importantes. Mas não é novidade.
Estão a multiplicar o modelo por bairros, um pouco como acontece com os superquarteirões de Barcelona...
Sim, mas eu tenho algumas reservas em relação a essas abordagens muito dependentes do urbanismo táctico, em que sinto falta de uma visão de conjunto. Aqui apostamos em plataformas únicas, boa iluminação pública, coexistência de usos, abrandamento da velocidade em toda a cidade e uma qualidade urbana que, desde logo, implica respeito pela acessibilidade. Estamos a eliminar todos os obstáculos. As luzes estão fixadas num ponto superior, com catenárias, para não termos postes no chão. Temos espaço próprio para o mobiliário urbano, para não incomodar, por exemplo, os cegos. E, claro, quando cortamos uma rua, enchemo-la de actividades. Porque, se ficam desocupadas, as pessoas começam logo a questionar por que razão não podem lá estacionar o carro.
Pois, isso que nos conta é também uma intervenção táctica. É preciso atrair as pessoas à rua, não basta libertá-la de carros...
[Abre uma revista sobre o modelo urbano da cidade com várias fotografias do antes e depois. Aponta para uma rua entupida de carros]. Isto era assim. Um botafumeiro [incensário] de poluição. Mas aqui havia pessoas, entre carros estacionados nas ruas e nas praças. Os passeios eram para usar em fila indiana. O centro histórico era um parque de estacionamento. [Folheia] Esta é igual, a outra é igual. Era assim. Todos os departamentos do município foram envolvidos nesta mudança, desde os serviços jurídicos, que fizeram o regulamento, ao da Cultura, de Desporto, etc.. Para sinalizar o encerramento do centro histórico, no primeiro ano fizemos uma festa medieval. Agora, nesses dias, tornou-se uma romaria urbana, com 200 mil pessoas. Quisemos que fosse um espaço para as famílias e amigos, não para o botellón, da juventude. Tínhamos de mostrar que a cidade podia ter vida sem carros. Fazemos tudo o que pudermos na rua, desde contos para crianças, teatro, música. É raro o dia em que não esteja aqui alguém a tocar. Há um senhor alemão que conheci por causa da minha neta, que adora música. É um senhor com curso de conservatório — toca de puta madre [muito bem] — e está por cá há dois anos, porque há muita vida na rua. O clima ajuda. Eu chamo a isto as Caraíbas Galegas.
E toda esta transformação não tornou mais cara a habitação? Não houve “gentrificação” em Pontevedra?
Não. Nós temos uma política de colocação de solo no mercado. E ainda temos área, dentro da cidade, para construir umas oito mil casas. Houve um tempo em que o município ficava com 15% da capacidade urbanística dos terrenos, e então temos parcelas onde se pode construir 50, 100, 200 habitações, e, quando temos necessidade, colocamos lotes à venda em hasta pública, escolhemos um promotor e constrói-se mais habitação. Houve um banco que já nos questionou se tínhamos interesse em fazer projectos de promoção pública, mas depois de perceber os preços a que estavam a trabalhar os privados, desistiram, porque havia quem estivesse a fazer mais barato. Isto evita a “gentrificação”. Até porque nós nem sequer estamos a desenvolver este modelo urbano só no centro da cidade. Estamos a investir quatro milhões de euros no espaço público de um bairro periférico, do tempo do franquismo. Queremos que, vivam onde vivam, os habitantes tenham esse padrão de qualidade no espaço público. E quem estiver a comprar em zonas de construção mais recente, no perímetro da cidade, encontrará, em muitos casos, melhores condições de habitação do que no centro. Temos é de fazer um projecto global, que atenda a todo o território.
E nas freguesias?
Nas zonas rurais estamos a criar centralidades que evitem deslocações desnecessárias à cidade, melhorando o espaço público em torno da igreja, do cemitério, da escola, do pavilhão desportivo, da casa de cultura ou do centro social. Também aí estamos a usar plataformas únicas, medidas de acalmia de tráfego, boa iluminação, mobiliário urbano decente que não impeça a mobilidade pedonal, etc.. Claro que a vantagem de estar na cidade é ter tudo à nossa volta. Uma pessoa que viva aqui vai trabalhar a pé, no regresso, a pé, compra uns legumes e o que mais lhe faltar. O carro está guardado, só o usa para ir dar uma volta ao fim-de-semana, e poupa umas centenas de euros de combustível por mês. Não foi por acaso que o The Guardian chamou a Pontevedra “um paraíso para os peões”.
Espanha decretou também a velocidade máxima de 30 km/h para boa parte das vias nas zonas urbanas. É um bom passo?
Mudar a lei não chega. Começámos por decretar a velocidade máxima de 30 km/h em toda a cidade, independentemente do número de vias na faixa de rodagem. E não nos ficámos por sinalização ou radares, criámos obstáculos para que a velocidade máxima fosse efectivamente essa. O radar, se alguém passa a cem e mata uma pessoa, não nos resolve o problema. É preciso tomar medidas, no desenho das ruas, para que ele deixe de entrar, se não queremos continuar a ter congestionamento. O que aconteceu aqui foi que, reduzindo a quantidade de carros na cidade, até aumentámos a velocidade média de circulação [de 15 para quase 21 km/h entre 1996 e 2014]. Hoje demora-se menos a chegar a um parque de estacionamento ou a outro destino na cidade do que antes, na hora de ponta. Dantes, nesta rua do município, a essas horas estavam todos atascados, porque se misturavam os que queriam vir aqui com os que procuravam um lugar gratuito para estacionar e os que atravessavam a cidade porque sempre o faziam, mesmo que fosse má opção. Em todo o lado acontece o mesmo. Ou lhes cortamos essa possibilidade, ou vão sempre por ali. Parece que uma fila de carros atrai mais carros. Tivemos de tomar decisões. E decisões valentes. E se nós, sabendo que acalmando o tráfego se evitam mortes e diminui a violência rodoviária, não o fazemos, não estamos a exercer a nossa função.
Esse ambiente urbano tornou-se a sua marca?
Nós não somos a maior cidade disto ou daquilo. Aqui não fizemos coisas fora de série. Começámos a mexer com o centro histórico, porque era um activo que move o turismo e a restauração, mas passámos logo para toda a cidade e para o concelho. Quando sabemos o que temos a fazer, começamos num sítio e acabamos. Nas ruas do centro histórico instalámos todos os equipamentos subterrâneos e deixámos tubagens para algo que venha a ser necessário, para que não as tenhamos de levantar em 40 anos. Aproveitámos recursos municipais e fundos comunitários. E, acredite, nem fomos dos concelhos na Galiza que mais gastaram no espaço público. Temos é um projecto claro. Ainda assim, mesmo dentro da nossa força política há gente que não entende o modelo. A questão do carro, de o ter e levar até onde nos apetecer, está incrustado no nosso ADN — é como o machismo, de alguma maneira. E temos de lutar contra isso todos os dias.
E como funciona o vosso transporte público? Pelo que nos dizem, não é muito bom...
Não. Nós não temos linhas de autocarros municipais. Fizemos um acordo com o Governo regional, para que serviços vindos de outras cidades que passam em Pontevedra possam servir a cidade, financiando o município uma parte do bilhete. Acordámos fazer dois circuitos do centro ao hospital, que está um pouco longe, ao mercado e ao campus universitário. Nas freguesias não queremos ter autocarros vazios a circular, e estamos a montar, com apoios europeus, um serviço de transporte a pedido. Com a nova legislação, os táxis passam a poder cobrar por bilhete, e nós podemos co-financiar uma parte dessa tarifa. Pode resultar numa despesa de 300, 400 mil euros por ano, ou até um milhão, se houver muitos pedidos. Mas sempre é menos do que se estivéssemos a gastar dois ou três milhões num sistema que não funcione. Não há massa crítica para um transporte regular, como em Castela ou no interior Norte de Portugal.