30.8.21

“Nós dependemos de vocês para sobreviver”

Ana Dias Cordeiro (Texto), João Pedro Pincha (Texto), Rui Gaudêncio (Fotografia) e Nelson Garrido (Fotografia), in Público on-line

Nasir fugiu de Cabul em 2015 e pediu asilo a Portugal. Está bem integrado e isso permitiu-lhe apelar ao Governo português para não deixar para trás a sua irmã Lida e a mãe Roshan. Há 11 anos neste país, também Mohammad Yusuf Taheri só pensa em tirar do Afeganistão os familiares que ainda lá estão.

O terror no Afeganistão chegou em diferentes vagas à família de Nasir Ahmad: primeiro em 2015 quando ele começou a ser perseguido e recebia ameaças num país profundamente marcado por atentados e outras armadilhas; e agora, desde 15 de Agosto com os taliban no poder, quando a mãe de 75 anos e a irmã de 31 anos lutam para sair da capital entre as multidões de civis afegãos​.

No primeiro dia em que saíram de casa desde a chegada dos taliban a Cabul para chegarem ao aeroporto internacional, a irmã Lida e a mãe Roshan estavam a menos de um quilómetro quando um bombista suicida se fez explodir no local que era o destino das duas mulheres.

O atentado desse dia, quinta-feira, foi reivindicado pelo Daesh, e condenado pelos taliban, matou pelo menos 110 pessoas e deixou 150 pessoas feridas num balanço que ainda pode ser revisto em alta. “Elas escaparam, graças a deus”, diz Nasir.

Mas por ter trabalhado e contribuído para a defesa dos direitos humanos e das mulheres no Afeganistão, a irmã Lida sabe que não escapa a uma sentença à morte. É ela própria que o diz na exposição emocionada que faz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), traduzida para português pelo irmão: “Nós dependemos de vocês para sobreviver.”

“Peço por clemência que salvem as nossas vidas e nos tragam para Portugal. Nós dependemos disso para sobreviver e poder passar a levar uma vida com o mínimo de dignidade, como mulheres e cidadãs”, diz Lida no texto que acompanha o pedido ao MNE e que Nasir mostrou ao PÚBLICO.

“Eu sempre costumava ser uma activista contra a ideologia dos taliban e pela defesa das mulheres, e agora estou sofrendo ameaças à minha vida. E a minha mãe também está comigo, já que, como é idosa, depende de mim para lhe prestar cuidados. Ela tem dificuldades para caminhar e também não está com uma saúde boa; eu temo muito pela sua vida”, escreve Lida.
"Um mínimo de dignidade"

“Agora que os taliban tomaram o poder, o acesso à saúde e à educação, e a segurança da população vai deteriorar-se ainda mais. Também sinto muita falta do meu irmão Nasir, que está extremamente preocupado connosco. Por todas essas razões supracitadas, gostaria de solicitar ao Governo português que nos traga a Portugal, que salve minha vida me trazendo para Portugal, para que eu possa viver no Porto junto do meu irmão.”

Nasir não imagina como seria se não estivesse bem integrado neste país. “Nós candidatámo-nos junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros porque eu estou integrado em Portugal, porque tive asilo e, apesar de todos os obstáculos, consegui integrar-me, acabei agora um mestrado em Business na Católica do Porto. Isso permite ao Governo português ter toda a nossa informação, a minha informação pessoal e da minha família. Conhecem-me, sabem quem eu sou.”

“Peço por clemência que salvem as nossas vidas e nos tragam para Portugal. Nós dependemos disso para sobreviver e poder passar a levar uma vida com o mínimo de dignidade, como mulheres e cidadãs”, diz Lida no pedido dirigido ao MNE traduzido pelo irmão Nasir Ahmad (na fotografia)

As autoridades portuguesas estão a tentar tirar os cidadãos afegãos com ligações a Portugal “mas podiam fazer mais”, diz. “Eu peço que o façam porque ainda há esperança e possibilidade. Eu só peço o mesmo ao Governo português que as coloquem num lugar seguro antes de as colocarem no avião porque ir para o aeroporto agora é impossível.”

O pedido escrito com data de 20 de Agosto é um dos muitos que chegaram directamente ao MNE nos últimos dias, de pessoas vulneráveis, em perigo de vida pela actividade que exerceram até agora no Afeganistão ou por terem ligações profissionais a empresas portuguesas ou parte da família em Portugal, como Lida e Roshan.

Contactado, o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, garante que “terminada esta fase mais imediata, em que as prioridades estão centradas nos cidadãos nacionais e nos afegãos que colaboraram com as forças nacionais destacadas, a prioridade passará a ser apoiar afegãos vulneráveis, incluindo o favorecimento de processos de reagrupamento familiar”.

Em declarações ao Expresso, o ministro Santos Silva sublinhou que as condições para se chegar ao aeroporto “são muito difíceis”, agora agravadas pelo atentado de anteontem. “Uma coisa é haver mulheres, activistas ou jornalistas a pedir asilo a Portugal. Outra é conseguirem entrar no aeroporto. Quem controla é o poder afegão”, acrescentou na mesma entrevista.
Os homens da família

A viver no Porto, Nasir trocou as horas do dia pelas da noite para acompanhar os passos inseguros de Lida e da mãe Roshan Noori na “corrida contra o tempo” (de que fala o ministro). Desde que o pai morreu é o único homem da família, aquele que poderia fazer as compras e levar a mãe ao hospital, agora que as mulheres não podem sair sozinhas à rua por imposição dos taliban.

Também a família Taheri não tem saído de casa desde que os taliban entraram em Cabul. Não duvidam do que lhes aconteceria. “Quem sai é o mais novo, se apanham os outros matam-nos”, resume o patriarca que habita há 11 em Portugal​. A mais de oito mil quilómetros de distância, nada preocupa mais neste momento Mohammad Yusuf Taheri do que tirar do Afeganistão os familiares que ainda lá estão.

"Quando as pessoas saem do Afeganistão não é fácil chegar à Europa. As pessoas vendem tudo o que têm para pagar a ida, mas de 200 que saem, talvez 50 cheguem. Os que têm sorte." Mohammad Yusuf Taheri

São homens e mulheres que construíram a sua vida nas últimas duas décadas e estavam integrados no sistema social e político que acaba de ser derrubado: eram médicos, juízes, polícias, militares, tradutores. Vários trabalharam para os exércitos português, americano e francês. Algumas raparigas da família estavam na universidade. Agora todos se escondem.

Lidar com jornalistas já não é novidade para este afegão de 70 anos. Desta vez, porém, hesita em falar, tal é o desespero em que se encontra. A única coisa que o motiva é fazer chegar ao Governo a mensagem de que os países que invadiram o Afeganistão em 2001 não podem agora abandonar aqueles que os ajudaram. “A minha família só quer sair dali para ter uma vida digna”, diz Mohammad. “Estamos à procura de organizações a quem possamos dar informações sobre os nossos familiares”, apela.

No bar da União Atlético Povoense, na Póvoa de Santa Iria, está pendurada na parede a camisola de um Taheri, Hamid, que agora joga futebol no Bobadelense. Omed, o irmão mais velho, é guarda-redes no mesmo clube e acalenta o sonho de fazer uma carreira boa e longa. Por enquanto conduz um tuk-tuk por Lisboa. “Durante um ano trabalhei para outros, consegui juntar dinheiro e comprar um tuk. Hoje sou dono de mim mesmo”, sorri. Ao lado do pai, que não fala português, Omed vai traduzindo a indignação de Mohammad.
Casamentos forçados

Nenhum deles acredita que os taliban tenham mudado desde que saíram à força do poder. “Os vídeos que recebemos da nossa família são muito mais agressivos do que as coisas que têm passado cá na televisão”, diz o pai. “As raparigas e as mulheres viúvas são forçadas a casar com os taliban”, exemplifica o filho.

Em 1996, depois da primeira ocupação de Cabul pelo grupo extremista islâmico, Mohammad fugiu com a mulher e os oito filhos, receando pela vida por ter sido militar. É lacónico sobre esse tempo: “Saímos para o Paquistão pelas montanhas. Andámos sete dias e sete noites a pé.” Omed, que tinha cinco anos, tem uma recordação vaga. “Lembro-me de termos de nos deitar com neve por cima para não nos verem.”

"Onze anos depois, o meu estatuto ainda é o de refugiado. Portugal agora é o meu país, mas se não me ajudar a mim não tenho vontade de ajudar Portugal." Omed Taheri

Refugiaram-se na Ucrânia e foi lá que Hamid começou a dar os primeiros toques na bola, nas escolinhas do Shaktar Donetsk. “O meu pai conseguiu dar-nos uma vida boa, mas todos os meses tínhamos de renovar os documentos”, relata Omed. Ao fim de 12 anos, pediram recolocação ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e Portugal dispôs-se a acolhê-los. Chegaram em 2009.

“Quando as pessoas saem do Afeganistão não é fácil chegar à Europa. As pessoas vendem tudo o que têm para pagar a ida, mas de 200 que saem, talvez 50 cheguem. Os que têm sorte. Os outros morrem pelo caminho: com fome, com frio, na fronteira iraniana, na fronteira turca, nos barcos”, conta o patriarca. Para ele é claro que “o Irão e o Paquistão estão a ajudar os terroristas com armas e dinheiro.”

Dos oito irmãos, apenas Omed e Hamid continuam em Portugal. Os restantes emigraram e até Mohammad, para compor uma reforma de 275 euros, passa temporadas em Londres junto de familiares. Desde há dois anos que tem nacionalidade portuguesa. Omed fez o pedido em Novembro do ano passado, ainda não tem resposta. “Onze anos depois, o meu estatuto ainda é o de refugiado.” Não compreende. “Portugal agora é o meu país, mas se não me ajudar a mim não tenho vontade de ajudar Portugal”, diz.

Em 2013, durante alguns meses, a família esteve emigrada na Alemanha, onde todas as despesas da casa eram asseguradas pelo Estado, que ainda pagava uma semanada de 290 euros por pessoa. A intenção era ficar por lá, mas os refugiados que estão em programas internacionais têm de habitar no país em que são recolocados. “Quando voltámos, o Estado português não nos ajudou nada durante dois anos. Depois começaram a dar 152 euros para a família toda”, queixa-se Mohammad. “Os outros países ajudam os refugiados, o Estado português não ajuda ninguém”, completa Omed.

Tal como Hamid, Omed trabalhou em restauração até um amigo lhe falar dos tuk tuk. Ao princípio não acreditava que fosse rentável, mas quando experimentou ficou convencido. Parte do dinheiro que ganha serve para ajudar o pai e o seu filho. “Joga no Samouco, dizem que tem bons pezinhos! Já o filho do meu irmão é guarda-redes. Parece que houve aqui uma troca”, ri-se.

"Terminada esta fase mais imediata, em que as prioridades estão centradas nos cidadãos nacionais e nos afegãos que colaboraram com as forças nacionais destacadas, a prioridade passará a ser apoiar afegãos vulneráveis, incluindo o favorecimento de processos de reagrupamento familiar.” Gabinete do ministro Augusto Santos Silva

Sorrisos e desespero

Também Nasir começa com um grande sorriso uma entrevista telefónica em que se esforça por explicar tudo com detalhe e cuidado. Mas o seu olhar, através do visor da chamada por vídeo, não disfarça o desespero.“Embora nos últimos anos tenha havido conflitos e instabilidade no resto do país, em Cabul não se punha essa hipótese porque havia a presença dos helicópteros, dos militares, do equipamento militar.”

O mal não poderia chegar onde estava montado todo este aparato, acreditava. “Um dia acordamos e o país está entregue aos terroristas. Isto aconteceu tudo em seis dias”, diz sobre o rápido avanço dos taliban para Cabul assim que as tropas norte-americanas começaram a deixar o país.

“Tenho amigos, e sei que estão a perseguir pessoas que trabalharam para o governo, jornalistas, activistas e as mulheres que trabalham. Estudar é um crime. Ouvir música é um crime. Se for uma mulher, matam-na; se for um homem, provavelmente vai para a prisão. Estão a ir de casa em casa, à procura de pessoas que trabalharam para o governo. Essas pessoas tiveram acesso a muita informação confidencial.”

A serenidade com que pronuncia cada palavra contrasta com o horror contido em cada frase. Em 2015, com 25 anos e uma licenciatura, teve que fugir. Era funcionário de uma empresa de comunicações para a segurança do Estado num país em alerta permanente pela omnipresença dos vários movimentos combatentes e terroristas, o principal dos quais os taliban.

Nasir não está preparado para relatar essa fuga, não pelo receio de qualquer represália, mas para evitar reminiscências das tortuosas travessias por mar e terra que só os traficantes oferecem, sem condições de segurança, em troca de milhares de euros – memórias que fez por esquecer para seguir em frente.

Não concebe uma saída do país assim, como uma fuga cercada por perigos, para a irmã e a mãe. Os seus nomes estão entre as mais de 100 pessoas que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português está a tentar trazer para Portugal. São, como todos os nomes da lista, pessoas ou familiares de pessoas que trabalharam com embaixadas, forças ou empresas de países da União Europeia ou da NATO, incluindo Portugal cujos militares saíram em Maio passado.

Nasir fala em particular das mulheres: “Estão em perigo todas as que trabalham e não apenas as que trabalharam com a NATO, Estados Unidos, outros países ou organizações internacionais.” Lida e Roshan nunca antes tinham tentado sair de Cabul.

“A minha mãe e a minha mãe quiseram ficar lá, não abandonar o país. A situação era difícil mas não impossível. Tudo foi inesperado, porque aconteceu de forma súbita”, diz Nasir. “Agora é impossível.”