Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, nota a mudança em curso, o esforço para derrubar barreiras, mas também a persistência da segregação. “A sociedade maioritária não quer os ciganos no meio dela”.
Estuda a população cigana há 30 anos. Foi esse o tema do seu mestrado em Educação Intercultural e do seu doutoramento em Antropologia. Em Janeiro de 2018, suspendeu o trabalho docente na Universidade do Minho para assumir as funções de coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas. No início, Maria José Casa-Nova ainda geriu dez mil euros por ano. No ano passado e neste, o observatório não teve verba atribuída.
Tem sentido ter um Observatório das Comunidades Ciganas sem orçamento atribuído?
Faz sempre sentido ter um observatório. Temos conseguido realizar um trabalho que considero relevante, mas observar a realidade do ponto de vista científico implica fazer investigação. Para isso, é fundamental ter orçamento atribuído.
O que tem conseguido fazer?
Enquanto coordenadora, participei no grupo de trabalho para a reformulação da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas e tenho sido ouvida no que diz respeito à elaboração de política pública. Realizamos seminários nacionais e internacionais. Criamos uma newsletter com reflexões cientificamente sustentadas, textos curtos, numa linguagem que pode ser percebida por todos, e um dossier, a que chamamos Vozes Ciganas. A sociedade portuguesa, como outras, tem estereótipos negativos em relação à população cigana. A newsletter serve para ajudar a desconstruir estes estereótipos e potenciar role models.
A quem chega essa newsletter?
É enviada para agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, associações ciganas, outras organizações não governamentais, organismos governamentais. Enviamos para mais de seis mil endereços.
Tem explicado nos mais variados fóruns que, embora a “cultura de superfície” (música, gastronomia, vestuário) seja um elemento identificador, a “cultura profunda” (o sistema de valores, as regras de conduta) é que está na base do racismo de que os ciganos são alvo. O que costuma dizer a quem nega a existência desse racismo?
Depende do grau de confiança que tenho. Respondo com frequência que não existe nenhuma sociedade que não seja racista. O racismo das pessoas que têm poder produz efeitos negativos nas pessoas racializadas; o racismo das pessoas que não têm poder não só não tem efeito nos outros como frequentemente faz ricochete, servindo para confirmar ideias preconcebidas, aumentando o racismo sobre as mesmas. Estou a dizer uma coisa que não é politicamente correcta: nem só as pessoas que estruturalmente têm poder nas sociedades podem ser racistas. O racismo existe em qualquer povo, produzindo hierarquias e segregações. O que varia é o tipo, o grau e o efeito.
Não está a usar a palavra racismo como sinónimo de discriminação?
Não. Costumo dizer que todo o racismo é discriminação, mas nem toda a discriminação é racismo. O racismo tem que ver com o fenótipo e a pertença étnico-cultural, a partir dos quais se fazem juízos de valor sobre racionalidade, desenvolvimento cognitivo e padrões de aceitabilidade moral. Existe de forma estrutural nas sociedades, o que quer dizer que impregna o quotidiano. As pessoas podem não se dar conta. Interiorizaram. Agem frequentemente de forma não consciencializada. Isso acontece com todos os seres humanos? Não. Uns fazem um processo de reflexão sobre a realidade e constroem mais humanidade.
Desconstroem o preconceito?
Exactamente. Lutam para que o racismo diminua com o fim último deste deixar de existir, o que é uma utopia (entendida enquanto lugar em construção). Isso é um processo continuado. E quando há crises, os ódios, as frustrações, as incertezas, os medos são frequentemente canalizados contra as minorias.
Estou a dizer uma coisa que não é politicamente correcta: nem só as pessoas que estruturalmente têm poder nas sociedades podem ser racistas. O racismo existe em qualquer povo, produzindo hierarquias e segregações. O que varia é o tipo, o grau e o efeito. Maria José Casa-Nova
O que responde quando lhe dizem que os ciganos não se querem integrar?
Quando me dizem isso, costumo fazer esta observação: “Já reparou nos sapos de porcelana ou barro na entrada de restaurantes, cafés, variados estabelecimentos comerciais, casas privadas? Vê símbolos na porta das pessoas ciganas para afastar alguém? Quem está a segregar?” Isto evidencia algo. A sociedade maioritária não quer os ciganos no meio dela, nas mais diversas esferas.
Na tese que defendeu há anos falava em três “estratégias de defesa” usadas pela população cigana: a endogamia, a realização de trabalho por conta própria e o absentismo escolar. Na altura, essas estratégias já chocavam com alguns jovens. Em que ponto estamos? Estas barreiras estão a cair?
A população cigana está a derrubar essas barreiras e na população maioritária tem havido muitíssimo mais trabalho, muitíssimo mais abertura. Refiro-me a organizações não governamentais, mas também a escolas e actores individualmente considerados. Eu diria que na última década temos caminhado bastante nesse sentido. Foi na última década que emergiu a maior parte das 22 associações ciganas, que estão a fazer um trabalho muitíssimo interessante, quer junto das pessoas ciganas, quer na articulação entre organizações ciganas e não ciganas. Há uma dinâmica muito maior, um protagonismo muito maior por parte das pessoas ciganas. Muitos dos que estão no associativismo têm escolaridade mais elevada, o que é revelador da importância da escolarização para o desenvolvimento do pensamento crítico e criativo na participação político-cívica. Nunca se fez tanto como agora. Como partimos do zero, parece que não se fez nada, mas estamos num ponto de viragem. Ao mesmo tempo que temos esta dinâmica, temos forças antagonistas que procuram minar uma parte deste trabalho, denegrindo a imagem das pessoas ciganas.
Está a referir-se a novos actores político-partidários?
Sim. Procuram ganhar protagonismos criando bodes expiatórios dos medos e das frustrações sociais. Dizem que são parasitas, que não querem trabalhar, que vivem do rendimento social de inserção [RSI]. Proporcionalmente há mais pessoas ciganas a viver com o RSI, o que significa que proporcionalmente há mais pessoas ciganas a viver abaixo do limiar da pobreza. Ninguém opta por ser pobre. A pobreza é uma condição de vida e não uma opção de vida.
Qual o maior sinal de mudança? A inclusão escolar? Os últimos dados conhecidos apontam para 25 mil alunos ciganos, um aumento significativo comparando com o que era há 20 anos.
Esse é um sinal muito importante. No ano lectivo 16/17 tínhamos 256 jovens no secundário e no ano lectivo 18/19 651, o que representa um aumento de mais de 100%. Temos políticas educativas que, sendo muito incipientes, contribuem para este incremento. Temos o Roma Educa, uma bolsa para alunos do secundário, agora estendido ao 3º ciclo. Sendo uma contribuição quase simbólica, 50 euros por mês, para estas crianças e para as famílias significa muito.
Mas o absentismo/insucesso escolar continua bastante elevado.
As escolas precisam de ter novos actores educativos. As crianças e jovens ciganos chegam à escola e não encontram o seu universo representado nela. Não temos professores ciganos, não temos técnicos operacionais ciganos, quase não temos mediadores. Há um estranhamento. Também é importante haver formação de professores para a educação intercultural e para a anti-discriminação.
E não há?
Muito pouca. Outra parte que é importante é a participação dos pais ciganos na escola, quer a nível da elaboração do plano de actividades, quer da participação nas associações de pais. Os pais ciganos estão ausentes das associações. Era importante que fizessem parte para desconstruir estereótipos de parte a parte, para haver uma familiaridade com o diferente.
Como é que essa participação pode ser promovida?
As associações têm que se abrir a estes pais. Num projecto que coordenei falámos com duas associações de pais para envolverem os pais ciganos. Houve estranhamento dos dois lados, mas conseguimos. Infelizmente, esse trabalho foi muito desfeito com a pandemia. Todas as escolas deveriam construir uma cultura de direitos humanos com um código anti discriminação construído com todos os actores educativos e comunitários.
Os pais ciganos estão ausentes das associações. Era importante que fizessem parte para desconstruir estereótipos de parte a parte, para haver uma familiaridade com o diferente. Maria José Casa-Nova
Tem sido dito que o problema do insucesso escolar começa na habitação: 32% da população cigana vive em barracas, tendas, carrinhas. Acredita que este problema pode mesmo ser resolvido com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)?
A habitação é um dos problemas sociais mais graves que temos. Estamos a falar da população cigana, mas também temos população não cigana que vive em condições degradadas e degradantes. O PRR, pelo que o governo tem anunciado, deverá acabar com a habitação indigna. Se for cumprido, em 2024 teremos todas as pessoas ciganas e não ciganas a viver em casas condignas. Mas ter casa com todas as condições de habitabilidade é apenas uma das dimensões do problema. Muitas vezes constrói-se o edificado e esquece-se a envolvente. Habita-se também os lugares e, para isso, é necessário cuidar das relações de sociabilidade interculturais, dos espaços públicos, do acesso a serviços. Tem que ver com o fazer cidade, aldeia ou vila. E com o direito das pessoas à opção pelo lugar em vez da “atribuição do lugar”. Tem também que ver com a construção participada dos lugares. Se construo bairros só para pessoas ciganas, não estou a construir habitação condigna. Estou a construir guetos e a contribuir para o que Bauman chama de mixofobia: o medo da convivência com a multiplicidade de diferenças étnico-culturais. E, como resultante, para a construção de ilhas de homogeneidade fenotípica e cultural. Importa combater os medos e potenciar a mixofilia.
Como interpreta o facto de as associações ciganas se terem mobilizado para o Programa Bairros Saudáveis?
Fiz parte do júri do programa. Foi muito gratificante ver as associações ciganas a mobilizar-se, a terem este sentido e intervenção político-cívica. De 12 que concorreram, tivemos oito projetos financiados.
Depois de algum pé-de-vento levantado por alguns activistas?
O que aconteceu depois desse pé-de-vento foi mais um projecto apoiado. Tínhamos sete e passámos a oito. Estamos a falar de projectos pelos quais as associações ciganas são responsáveis. Como parceiras participam em muitos mais projectos. Isto faz parte da consciencialização da importância do seu envolvimento, mas também do desenvolvimento das suas capacidades, das suas competências. As associações são um novo actor político colectivo fundamental.
E a inclusão laboral? Houve um alarido em torno da ideia de colocar mediadores ciganos a trabalhar a inserção laboral. E depois silêncio. O que se passa?
Ao nível do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego temos projectos, mas são projectos. Na minha perspectiva, os projectos devem existir para construir uma base sustentada para a intervenção social continuada.
E tornar-se política pública?
Exactamente. No ano passado, numa formação que dei, tive um empresário a dizer: não me importo de empregar pessoas ciganas, mas o que é que eu vou dizer quando os outros funcionários me perguntarem porquê um cigano. Eu disse-lhe: “Responda: “E porque não?” As pessoas ciganas não precisam de ter condições materiais de existência? Não precisam de trabalhar como qualquer outra pessoa para ter uma vida condigna? É começar por aí. No observatório, criámos o Prémio Empresas Integradoras.
Não há é muitas empresas às quais possa atribui-lo…
Pois não. Temos muitas empresas que empregam uma ou duas pessoas ciganas. Criamos o prémio para quem empregasse cinco ou mais. Tem sido sempre atribuído, mas este ano, talvez fruto da pandemia, nenhuma empresa concorreu.
Onde estão os tais mediadores para o emprego?
Não estão. A mediação para o emprego implica um trabalho entre empresas, organizações não governamentais, nomeadamente organizações ciganas e organismos governamentais. As organizações ciganas ainda não têm força para isto. Algumas começam a construir-se nesse sentido. A mediação para o emprego é um processo que está no grau zero. O que está a acontecer neste momento é a construção disto: as pessoas ciganas têm que estar forçosamente nos lugares e nas decisões que lhes dizem respeito.
E não deviam estar na equipa do observatório?
O primeiro coordenador do observatório era cigano. E eu quero ter uma pessoa cigana na equipa, mas o trabalho do observatório exige pessoas que saibam fazer investigação. Tenho uma pessoa que é doutorada e outra que está a fazer doutoramento. Propus (estou à espera) ter um bolseiro ou bolseira de investigação de etnia cigana. Não temos conhecimento em Portugal, a não ser o primeiro coordenador do observatório, de uma pessoa cigana que seja doutorada. Temos agora os primeiros mestrandos. Espero que façam bons trabalhos, que possam ser publicados pelo observatório. Queremos ter uma bolsa de iniciação à investigação para que um/a jovem cigano/a possa aqui construir um percurso académico. Também estamos a constituir um conselho consultivo apenas com pessoas ciganas.
E agora? Quais devem ser as prioridades em termos de políticas públicas?
Nós temos uma estratégia que foi reformulada e que está em vigor até 2022. O que se quer fazer agora é uma avaliação do trabalho realizado para ver como pode ser estruturada a nova estratégia, que vigorará até 2030, no sentido de que esta integração recíproca e horizontal se efective.
Habitação, educação, emprego…
E saúde. As pessoas ciganas têm, comparativamente com outros países, uma opinião positiva do sistema de saúde, mas o que vemos em Portugal e noutros países é que a população cigana em média vive menos dez anos.
Por causa das condições de habitação?
Essa é uma das dimensões. Chuva, vento, sol, tudo entra na habitação daquelas 32% de pessoas ciganas que vivem em condições indignas. Depois vêm os problemas respiratórios, os problemas ósseos. O facto de muitos viverem abaixo do limiar da pobreza é outra hipótese explicativa.
E o futuro do observatório?
Continuar o trabalho que está a ser feito e realizar uma nova recolha de dados a nível nacional sobre a população cigana. E esperamos ter orçamento para poder realizar investigação pertinente para se fazer um diagnóstico adequado e ter uma actuação sustentada.
Que estudo é esse? É como o primeiro estudo nacional?
Não. Esse custou cem mil euros. O que pretendo fazer é aplicar um questionário aos municípios em articulação com organizações não governamentais, nomeadamente as associações ciganas. Esse questionário terá perguntas sobre número de residentes, acesso a habitação, educação, serviços de saúde. O que queria, e custaria 250 mil euros, era aplicar um questionário porta-a-porta às pessoas ciganas.
Digo muitas vezes que vou morrer sem ver realizado aquilo pelo que ando a lutar há décadas, mas não tenho dúvidas de que estou a participar nessa mudança. Maria José Casa-Nova
Fazer o que os censos não fizeram?
Exactamente. Depois queria fazer investigação qualitativa, através de entrevistas.
Como vai fazer isso sem orçamento?
Com as pessoas que já estão no observatório e um/a jovem cigano/a a iniciar-se na investigação e as associações ciganas. Pretendemos ter verbas para fazer outro tipo de investigação, nomeadamente perceber as razões pelas quais o insucesso e o absentismo escolar são muito mais visíveis nalgumas regiões.
Vai então aguentar mais uma etapa?
Há décadas que trabalho esta área do ponto de vista da investigação e do activismo político-cívico. É preciso muita resistência à frustração mas começamos a ver as consequências do trabalho. Digo muitas vezes que vou morrer sem ver realizado aquilo pelo que ando a lutar há décadas, mas não tenho dúvidas de que estou a participar nessa mudança.