25.8.21

Cidades portuguesas na rota dos nómadas digitais: “A minha casa é um estado de alma”

São sobretudo jovens adultos que viajam enquanto trabalham remotamente. Com o fim da pandemia no horizonte, espera-se que aumente o número de nómadas digitais existentes no planeta e Portugal pode tornar-se num dos destinos de eleição destes profissionais.

Acordar sobressaltado com o toque já conhecido do despertador, arrastar o corpo vacilante até ao quarto-de-banho de sempre, tratar da higiene pessoal, vestir-se, comer a torrada a correr e conduzir – ou saltar entre transportes públicos durante hora e meia – até ao trabalho, pelos mesmos caminhos já ontem percorridos.

É assim o início do dia de muitos trabalhadores numa grande cidade como Lisboa ou Porto, e em tantas outras metrópoles espalhadas pelo mundo. Contudo, há cada vez mais pessoas que, tendo experimentado esta rotina, decidem, ao fim de alguns anos, mudar de estilo de vida.

O nomadismo digital cresceu um pouco por todo o mundo nas últimas décadas, acompanhando a digitalização da economia. Só nos Estados Unidos da América havia, em 2018, 4,8 milhões de trabalhadores remotos sem residência fixa, segundo um estudo da consultora MBO Partners. A pandemia, no entanto, deve intensificar ainda mais esta dinâmica que ganha cada vez mais adeptos em Portugal e coloca algumas das nossas cidades no mapa das preferências dos nómadas digitais a nível mundial.

O perfil dos nómadas digitais

Quando a Organização Mundial de Saúde declarou o estado de pandemia da Covid-19, Lígia Gomes encontrava-se em Capetown, na África do Sul, longe do seu país, a frequentar um programa de nomadismo digital. Anos antes tinha decidido abraçar este estilo de vida e a contratação pela Usability Hub, uma start-up australiana, permitiu-lhe realizar esse desígnio. Lígia é também autora de um dos raros estudos académicos sobre nómadas digitais feitos em Portugal: “A pandemia fez-nos perceber que há muitos trabalhos que podem ser feitos a partir de qualquer lugar. As pessoas podem assim escolher o estilo de vida que querem independentemente da localização da empresa para a qual estão a trabalhar”.

O estudo que desenvolveu para o Mestrado de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa é relativamente circunscrito: debruçou-se sobre os participantes nos programas da Remote Year, uma empresa americana que organiza roteiros nómadas para trabalhadores remotos. Desde 2016, que Lisboa faz parte das opções de estadia dos clientes da plataforma, onde se incluem ainda localizações tão dispersas como o Estado de Chiapas, no México, ou Bali, na Indonésia.

Lígia traça o perfil dos participantes nestes programas: são sobretudo jovens adultos entre os 28 e os 35 anos, uma “faixa etária de quem já trabalha há algum tempo, já tem algum poder de compra e pode fazer este tipo de estilo de vida, mas ainda não tem família constituída”, diz ao Público. São profissionais da programação informática, do design, da publicidade, da tradução, da advocacia ou do jornalismo e, em geral, de todas as áreas “passíveis de entregar projectos através de um computador”, acrescenta ainda na sua tese académica.

Estas características encaixam que nem uma luva em Adir Simona, um nómada digital nascido em Israel há 28 anos. Chegou a Portugal no final de 2019, depois de uma passagem pela Tailândia e veio parar ao Porto, em busca das raízes sefarditas que lhe permitiram adquirir a nacionalidade portuguesa e, por conseguinte, europeia.

Este programador de software, criador de duas start-ups na área das tecnologias da informação – a Relove e a Geonod –, sente que não se enquadra num “estilo de vida típico” e não gosta que o encaixem numa definição geral, definitiva. “Estou a fazer o meu caminho”, sintetiza. Segundo ele o nomadismo digital está sobretudo ligado a valores: “Escolhi o que me traz liberdade, não o dinheiro”.
Trabalhar para viver

No âmago das opções destes profissionais está, diz Lígia Gomes, o desejo de equilibrar a vida pessoal e profissional numa “nova maneira de viver”, em que o “viver para trabalhar” é substituído pelo “trabalhar para viver”, sublinha a investigadora. O grande ímpeto do nómada é assim “introduzir mais felicidade no quotidiano”, sem descurar as obrigações profissionais.

Quem quer viver em contacto com a natureza pode migrar para o campo, quem quer conhecer o mundo pode partir em viagem. O indivíduo guia as suas escolhas pelo espírito de descoberta, a apetência para conhecer novos lugares e sentir que é dono do seu destino. A cada novo local há um “novo ambiente” por explorar. A viagem torna-se uma oportunidade de aprendizagem e crescimento pessoal. O conceito de casa ganha um novo significado: “A minha casa não é um espaço físico. É um estado de alma”, sintetiza Lígia Gomes.

Contudo, entre as motivações para ser um nómada digital podem existir também factores financeiros, sublinha a autora: “As pessoas começam a viajar e percebem que o custo de vida em alguns locais é muito baixo”. Os elevados preços de arrendamento das grandes cidades pode assim estimular trabalhadores em início de carreira a adoptar o nomadismo: “Estive a trabalhar de Bali há dois anos e o custo de vida lá é muito barato, mesmo para os portugueses. Estando a viver lá um mês vou gastar menos dinheiro do que em Lisboa”, exemplifica.
Empresas acompanham a tendência

As empresas, por seu lado, também estão atentas a este fenómeno. A Selina, por exemplo, é uma rede internacional de hotéis especificamente vocacionada para acolher nómadas digitais. Pedro Salazar, responsável de operações do alojamento situado no Porto, sublinha que a integração entre a viagem e o trabalho vai continuar a acentuar-se: “Já não é largar tudo e seguir viajando. Os jovens querem explorar o mundo, mas manter o trabalho”. A sala de co-work da empresa está equipada com 50 secretárias e três salas de reuniões. Quem se aloja no hotel tem acesso à workstation, podendo a qualquer momento mudar de localização para uma das outras cinco unidades da Selina existentes em Portugal, na Vila do Gerês (Terras de Bouro), em Peniche, Ericeira (Mafra), Lisboa e Vila Nova de Milfontes (Odemira).

Também no Porto, a I-Wish reposicionou parte do seu modelo de negócio para os nómadas digitais. Com a chegada da pandemia, esta empresa, que gere 50 apartamentos de alojamento local na cidade, viu-se perante uma queda abrupta e total do negócio: “Foi um tsunami”, recorda Marta Oliveira, fundadora e responsável da organização.

Foi tempo de “retornar à base” e rapidamente “percebi que havia uma necessidade real de estadias por curtos espaços de tempo”, para profissionais que estão a entrar no país oriundos dos quatros cantos do mundo. A partir de agora, acrescenta a empresária, “o meu negócio vai ter que se tornar híbrido. Na época alta apostamos no short-term, mais vocacionado para turistas, na época baixa, no mid-term, mais orientado para estes nómadas digitais”.
Rota dos nómadas passa por Portugal

Nunca como agora o país foi tão atractivo para os trabalhadores remotos sem localização fixa: “Lisboa tem um dos maiores grupos de nómadas digitais” do mundo, sublinha Lígia Gomes, referindo que já antes da pandemia tinha surgido um “buzz” à volta da capital.

Factores como o reduzido custo de vida, a segurança, o clima e a gastronomia são determinantes para as opções tomadas por estes profissionais, sublinha Marta Oliveira, da I-wish. A menor dimensão do Porto pode até ser uma vantagem comparativa nos próximos anos: “Os nómadas digitais não têm carros. Andam muito a pé, de bicicleta, de skate. Por isso a dimensão da cidade também é importante”, diz a empresária.

O Porto está a crescer, a ganhar visibilidade e força. Pela sua dimensão é mais aconchegante e seguro”, confirma Fernanda Nicolini, co-work manager do Selina Porto, acrescentando ainda que, em termos nacionais, “Lisboa continua a ser a primeira opção, mas há outras tendências: a Madeira, por exemplo, tornou-se um spot durante os confinamentos”.

Apesar desta dinâmica de crescimento, nem tudo são rosas na vida do nómada digital. Vários factores levam ao abandono deste estilo de vida ao fim do primeiro ano de experiência: a solidão, a maior dificuldade em constituir família ou em evoluir na carreira, são alguns factores que influenciam os nómadas a regressar a uma existência mais sedentária. Talvez por isso muitos acabem por adoptar soluções híbridas, como aconteceu com Lígia Gomes, que tem residência fixa em Lisboa: “Muitas pessoas que viajam durante algum tempo acabam por chegar a esta decisão de ter uma cidade base e viajar de vez em quando. Chega-se a um ponto em que só andar com uma mochila às costas não é suficiente”, acrescenta.

A importância da comunidade

A existência de comunidades locais fortes de nómadas digitais é determinante na hora destes profissionais decidirem fixar-se temporiamente num determinado sítio: “Sem sentido de comunidade as pessoas não ficam. Ela é muito importante para as pessoas não se sentirem sozinhas”, diz Lígia Gomes, autora de um estudo académico sobre nomadismo digital.

“Quero aproximar-me de pessoas semelhantes” – confirma Adir Simona, um nómada oriundo de Israel, de passagem por Portugal – “e, se possível, estar em pequenas comunidades que partilhem experiências”.

O nomadismo permite “abrir horizontes” e “ultrapassar a bolha de relações adquiridas na escola, na faculdade, no trabalho e no meio onde vivemos”, aponta Lígia Gomes. Para as empresas e organizações que trabalham com este tipo de profissionais “trabalhar a comunidade é, pois, o mais importante”, caso contrário o nómada muda rapidamente para outra localização. Desta forma, a função do “community manager nos alojamentos locais e nas redes sociais é essencial para inserir os nómadas, apresentá-los às outras pessoas, mostrar o que há para fazer e o que a cidade tem de interessante”, refere a investigadora.