Decorridos 25 anos, o RSI é essencialmente, na sua abordagem conceptual, uma mentira. Não é rendimento, não é social, nem é de inserção
Não sei se o facto de ser um assistente social com mais de 20 anos de trabalho na freguesia mais pobre do concelho do Porto me confere alguma legitimidade técnica para me pronunciar sobre a falta de eficácia do Rendimento Social de Inserção (RSI) como medida de política social no combate à pobreza. Decorridos 25 anos desde a sua aplicação em todo o território nacional, não me conformo com este consenso minúsculo de que valeu muito a pena porque se conseguiu combater o absentismo escolar de muitas crianças, principalmente provenientes de famílias de etnia cigana. É verdade. Mas é pouco. Também se conseguiu formar e elevar os níveis de escolaridade de muitas famílias pobres com baixas qualificações e competências profissionais. É verdade.
Mas mesmo assim constatamos que este esforço de aprendizagem dos beneficiários não se reflectiu, na esmagadora maioria dos casos, em colocação profissional, emancipação ou autonomia. Os beneficiários continuaram sem emprego e os muito poucos que conseguiram trabalho conseguiram salários miseráveis e condições tão precárias que não descolaram da situação de privação económica e da insuficiência de recursos para sobreviverem com dignidade. Não basta, não chega, não é suficiente, não é aceitável considerar o RSI uma ferramenta de luta contra a pobreza só pelo facto de contribuir para a actualização do boletim de vacinas das crianças oriundas de agregados familiares mais pobres.
Eu quero mais, eu esperava mais. Eu luto por mais.
Decorridos 25 anos, a medida é essencialmente, na sua abordagem conceptual, uma mentira. Não é rendimento, não é social, nem é de inserção. Alguém consegue sobreviver com 189,50 euros por mês se for isolado no agregado?
Como são desenhados, acompanhados e executados os conhecidos contratos de inserção? Um técnico que tenha em cima da sua secretária mais de 190 processos pode fazer um trabalho sério, consistente e com resultados e impacto positivo na vida naufragada destas famílias? Claro que não.
Alguém se pode pronunciar sobre a seriedade das reuniões do núcleo executivo onde estão à mesa todos os parceiros intervenientes na construção destes contratos de inserção? Que respostas têm a câmara e o Governo para o problema da habitação? Que resposta tem a Segurança Social para a falta de creches e equipamentos de infância, juventude e terceira idade? Que resposta tem o representante do IEFP para o problema do desemprego? Que solução tem o representante do NPISA para o aumento dos sem-abrigo na cidade?
Não basta mexer na medida, criar grupos de trabalho, anunciar alterações, introduzir mudança nas regras e na sua aplicação. Essa preocupação pode ser positiva, urgente e muito necessária, mas é preciso ir à raiz do problema. Para o investigador Fernando Diogo, sociólogo da Universidade dos Açores, “o RSI não substitui o funcionamento da economia” (jornal Setenta e Quatro ). Precisamos de outro modelo de crescimento económico. O modelo de crescimento económico capitalista destruiu a integração económica das pessoas através do emprego. Estilhaçou o mundo do trabalho. Criou desemprego, precariedade, aumentou os níveis de exploração e insegurança profissional. Nem os mais capazes e com mais competências e qualificações escapam a este paradigma global.
Associados à desregulação do mundo do trabalho, os sucessivos governos do PS, PSD e CDS privatizaram bens e serviços essenciais. Tudo o que o mercado sinalizou como oportunidade de lucro, o Estado vendeu a privados. Serviços de transportes, fornecimento de água, electricidade, habitação, telecomunicações. Os governantes que orgulhosamente se intitulam pais, padrinhos, mentores e ideólogos do Rendimento Mínimo Garantido são os mesmos que amarraram o nosso país a tratados orçamentais internacionais onde o tecto da despesa pública nos impede de investir nestas pessoas para as libertar do RSI. Sim, o objectivo do Governo deveria ser acabar com a necessidade das pessoas recorrerem ao RSI. Como? Com investimento público na criação de serviços e equipamentos, aumento de pensões e salários, criação de rede de creches gratuitas, construção de habitação pública com rendas acessíveis, alteração das leis laborais para garantir emprego seguro e com direitos, melhor rede de transportes públicos, investimento na educação, na cultura, na saúde, no apoio à criação de riqueza, na criação de mais postos de trabalho, no combate ao estigma inferiorizante destes beneficiários
Qualquer alteração que a medida do RSI possa sofrer por sugestão, reivindicação de investigadores, especialistas, técnicos e beneficiários vai sempre esbarrar no constrangimento financeiro. Questionam quanto custa a mudança e se torna a medida mais dispendiosa. Sim? “Então não vai ser possível fazer nada, ficará tudo igual.” O dinheiro que existe é para salvar os bancos privados e tapar as fraudes fiscais dos grandes investidores da nação.
Vamos, então, a exemplos concretos. Quanto custa voltar a introduzir na regulamentação do RSI a cláusula de que as famílias monoparentais devem ser majoradas. É justo, necessário, urgente e indispensável. Apesar de a geringonça ter fama e proveito político da chamada sensibilidade social, ainda existe na medida do RSI muito “Portismo” e “Venturismo”. A prestação social de RSI deixou de ser actualizada há vários anos. Actualmente, o valor da pensão social é de 211,79 euros, mas o RSI manteve-se nos 189,66. Deixaram de existir apoios complementares no âmbito dos contratos de inserção, apoios para compensar despesas de habitação e majoração à maternidade e ao primeiro ano de vida da criança. A pensão de alimentos que o tribunal atribui aos pais divorciados é descontada à cabeça no valor da prestação. Uma vergonha. Os apoios à rendas de habitação como o conhecido Porto Solidário, iniciativa camarária, também é descontado no valor da prestação. Inacreditável, mas é verdade. O trabalho informal, os chamados biscates, são contabilizados a 100 %. Como é possível perseguir desta forma os que recebem RSI e trabalham sem descontos para a Segurança Social? Se os meus utentes não adoptassem estas estratégias de sobrevivência morreriam à fome. O RSI e rendimentos provenientes do trabalho informal são o caminho possível para pôr comida na mesa.
Quanto custa alterar o conceito de agregado familiar? Alguém aceita como razoável e compreensível que um jovem de 23 anos não possa candidatar-se ao RSI porque vive com a avó que é reformada com pensão mínima de 286 euros? Mesmo a coabitar e a viver debaixo do mesmo tecto as finanças aceitam que este agregado familiar possa apresentar declarações de IRS separadas, mas ficam automaticamente excluídos de um apoio do RSI.
A obrigatoriedade de inscrição no centro de emprego para todos os requerentes, independentemente das suas características e fragilidades, é outro expediente administrativo que excluiu milhares de potenciais beneficiários. Quem poupa é o Estado. Quem fica a perder são os toxicodependentes, os arrumadores, os sem-abrigo. Os mais frágeis. A desculpa de que podem ir ao médico e pedir atestado de doença incapacitante para trabalhar é pura treta. Muitos não têm médico de família, a pandemia agravou o caos de funcionamento dos serviços de saúde, as convocatórias do IEFP não se compadecem com a desestruturação física e emocional destes utentes. A inclusão social destes utentes é conhecida, a prestação é cortada, o apoio interrompido, a relação do beneficiário com o técnico rebenta.
Paulo Pedroso tem razão na avaliação que fez no jornal Setenta e Quatro. “Hoje, o RSI é uma prestação extremamente residual, gerida por uma máquina burocrática, sem energia, sem alma, sem coração.”
Assistente Social, candidato da CDU à Câmara do Porto