25.8.21

Quando teve apoio para tratar a depressão, Ana Filipa conquistou o direito a ficar com os filhos

Ana Dias Cordeiro (texto) e Paulo Pimenta (fotografias), in Público on-line

Com um investimento privado de 430 mil euros, o Projecto Família colmatou as insuficiências dos serviços sociais de apoio à infância e pôs em marcha um acompanhamento próximo e permanente de famílias com crianças em risco. Em 180 crianças, apenas 20 foram retiradas de casa.

Quatro anos passaram desde que o Tribunal de Família e Menores do Porto aplicou aos filhos de Ana Filipa uma medida de promoção e protecção de apoio junto da mãe. A qualquer momento, a medida poderia converter-se numa ordem de retirada das crianças para uma casa de acolhimento se ela não afastasse o perigo a que estavam expostos a filha, de dez anos, e o mais novo, de cinco.

Dependia dela. Não havia condições para uma medida de apoio junto de outro familiar como por exemplo a avó materna. “A minha mãe tem os seus problemas emocionais" e o pai de Ana Filipa Moreira morreu quando ela tinha 14 anos. Foi ele quem a criou depois de a mãe os deixar.


Quando ela própria se fez mãe, o perigo não estava à vista: nem negligência grave, nem maus tratos, nem violência doméstica foram motivos para a sinalização. O risco para as crianças estava oculto no silêncio de uma depressão.

“Havia momentos em que eu nem podia ouvir barulhos.” Era tomada pelo impulso de sair de casa ou de se virar contra as crianças. Invadiam-na depois os remorsos e passava horas a chorar. Sabia que eles não podiam estar bem com ela assim.

Desde que saíra de casa, o companheiro pagava a pensão de alimentos, mas não partilhava as responsabilidades. Deixar os filhos com ele ou com a mãe dela não era uma solução.

Sinalização para a comissão

Numa das vezes que o fez, os meninos faltaram à escola, foram sinalizados pelo estabelecimento de ensino à comissão de protecção de crianças e jovens (CPCJ) de Porto Ocidental e esta chamou os pais.

“As colegas que trabalham directamente com o tribunal têm um volume processual tal que apenas lhes permite estar com a família uma vez de três em três meses na melhor das hipóteses." Carmelita Dinis - directora-executiva da IPSS Movimento de Defesa da Vida

O processo foi encaminhado para o Ministério Público do tribunal porque não houve consentimento do pai para uma intervenção da comissão e o caso foi acompanhado pelas Equipas Multidisciplinares de Apoio aos Tribunais (EMAT) da Segurança Social.

A hipótese de uma retirada para uma casa de acolhimento pairou sempre no horizonte. A assistente social não a verbalizou logo de início, mas Ana Filipa pressentia-a como o desfecho mais provável. “Eu compreendo que as assistentes da EMAT tenham de fazer as perguntas. Na perspectiva delas, estava ali uma família disfuncional como tantas outras de onde já tinham sido retiradas crianças. Havia uma intromissão sem motivo e eu sentia que estava a ser pressionada.”

Foi então que, passados dois meses, a técnica propôs chamar o Movimento de Defesa da Vida (MDV), uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) que desenvolvia um trabalho de proximidade dos pais. O objectivo: remover o perigo na família e evitar a institucionalização das crianças. “Em vez de me estarem a retirar logo as crianças, a EMAT achou que em face de eu não estar bem psicologicamente podia receber o apoio da MDV”, lembra Ana Filipa.

Este programa decorreu na região do Porto entre Julho de 2017 e Outubro de 2020, beneficiou de um financiamento de 436 mil euros, cumpriu e excedeu as metas traçadas e isso permitiu aos financiadores — a Fundação Calouste Gulbenkian e o Banco Montepio — serem reembolsados no âmbito do programa de Inovação Social. Das 180 crianças acompanhadas, 160 permaneceram na família.
Recursos dos serviços sociais

Carmelita Dinis realça a disponibilidade total das técnicas durante as seis semanas intensivas e a continuidade do acompanhamento nos 12 meses seguintes, bem como a importância da mensagem transmitida. “Nós dizemos às pessoas: ‘Os vossos filhos não têm de sair daqui se as coisas mudarem’.”

Terminado o follow-up (seguimento do trabalho) feito ao fim de um, três, seis e 12 meses após a fase intensiva, as dificuldades podem não estar ultrapassadas. “Esse é o nosso drama. Ao fim de um ano, se a família continua a precisar de ajuda, nós não arquivamos o processo”, diz Carmelita Dinis, directora executiva da MDV.

Porém, qualquer eventual apoio desta IPSS deixa de ser prestado no âmbito do Projecto Família, que findou em Outubro do ano passado e passa a ser na qualidade de Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental.

"Se não houver equipas que estejam no terreno e com as famílias que as possam ajudar, mais crianças serão institucionalizadas.” Carmelita Dinis - directora-executiva da IPSS Movimento de Defesa da Vida

Nas sinalizações por maus tratos graves ou violência familiar, exige-se uma intervenção mais imediata e a MDV não chega a ser contactada. Também aconteceu o Projecto Família ter início e ser suspenso por incumprimento da família.

“As situações que nós interrompemos são situações em que não conseguimos garantir a segurança das crianças. Nesse caso, comunicamos ao tribunal”, continua Carmelita Dinis. “Aconteceu também, mas em menor número, as famílias deixarem de colaborar connosco. No tribunal, as famílias têm menos margem para estar a recusar ajudas.”

A responsável recorda uma situação em que o programa parou por não estar garantida a segurança das crianças. “Havia suspeitas de a mãe deixar os miúdos sozinhos durante a noite. Eram três crianças, o mais novo tinha dois anos e o mais velho 12 anos.” O caso continuou a ser seguido, mas pelo tribunal.

Mães e pais sozinhos

Os motivos de sinalização mais frequentes dos casos chegados a esta instituição foram os conflitos parentais, a violência familiar, os problemas de comportamento junto dos filhos, a negligência na educação e na higiene, a gravidez adolescente, as fracas competências parentais e os desafios de saúde mental.​ O contexto monoparental está no topo das sinalizações: 29% do total eram famílias monoparentais femininas e em 7% dos casos quem garantia a guarda das crianças era o pai, o avô ou outro representante legal.

A MDV realça, no relatório final publicado em Junho, que a metodologia aplicada se destina a famílias de todos os estratos sociais, já que os problemas são transversais e não apenas existentes nos agregados mais desfavorecidos.

As técnicas são particularmente sensíveis a situações de negligência, quando esta é assumida e relacionada com as carências económicas e a falta de uma rede de suporte. “Temos situações dramáticas de mães que trabalham nas limpezas e têm mais do que um emprego. Saem de casa às 6h da manhã e deixam os filhos em casa. Quando as pessoas assumem isso, nós tentamos cobrir. Arranjamos uma ama, ou uma vizinha, ou articulamos com o serviço da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou da Segurança Social fora de Lisboa para que esta família tenha a ajuda de uma ama.”

Também acontece um problema comportamental junto dos filhos ou a incapacidade de se imporem regras estar relacionada com uma depressão ou outros problemas de saúde mental da mãe ou do pai.

No caso de Ana Filipa, depois desta intervenção centrada no apoio psicológico e na aprendizagem de estratégias para lidar com situações de crise, o tribunal entendeu que o perigo tinha sido afastado e o processo judicial de promoção e protecção dos seus filhos foi arquivado.

“Quando há uma sinalização, as CPCJ fazem uma entrevista com a família e encaminham para nós porque não têm recursos. Passam para uma equipa que possa acompanhar a família de outra forma, sempre que estas equipas existam. É aí que nós entramos”, diz Carmelita Dinis. “A maior parte das comissões tem muito poucos recursos afectos. O mesmo acontece com os serviços da segurança social que dão apoio ao tribunal.”

“As colegas que trabalham directamente com o tribunal têm um volume processual de tal ordem que apenas lhes permite estar com a família uma vez de três em três meses na melhor das hipóteses”, acrescenta. “Se não houver equipas que estejam no terreno e com as famílias que as possam ajudar, mais crianças serão institucionalizadas.”

“As coisas têm melhorado, mas a verdade é que ainda temos um volume muito grande de crianças institucionalizadas e que não significa que todas elas — se tivessem acesso a este tipo de recursos, não tivessem sido institucionalizadas — não posso dizer isto, nesta áreas as coisas são mais complexas do que isto —,​ mas a verdade é que quanto menos recursos e quanto menos aposta se faça na família mais a institucionalização e o acolhimento familiar têm de ser a resposta. E o que nós queremos não é isso”, conclui a responsável.

Muitas vezes, as necessidades e aquilo que a família sente como a sua preocupação mais imediata não são as mesmas das que nos chegam da entidade sinalizadora. Ana Fontes - Psicóloga e supervisora do Projecto Família no Porto

Citada no relatório final do Projecto Família, também Isabel Silva da EMAT reconheceu que o facto de haver um acompanhamento tão próximo das famílias “permitiu recolher informações que de outro modo não teria sido possível recolher”. E realça “os progressos e as conquistas que de outra forma não se teriam conseguido”.
A casa como primeiro passo

Ana Filipa conseguiu sair de casa da mãe e esse foi um factor vital. O processo da candidatura a uma casa camarária ainda foi iniciado com a ajuda da técnica da equipa da Segurança Social. Desde que deixou de viver com a mãe, valoriza a independência, mas mais ainda a calma que isso trouxe à filha. “Ela saía da escola e nunca sabia se ia para casa da minha mãe ou da minha avó, não sabia onde eu estava ou se eu ia estar bem, e isso deixava-a muito ansiosa.”

“Durante estas seis semanas intensivas, tentamos que a pessoa fique ali com uma rede de suporte que as possa ajudar depois. Damos a conhecer à pessoa as ajudas a que ela pode recorrer. E naquilo que nós não conseguimos garantir encaminhamos para outros serviços. Pode ser por exemplo activar uma rede de consultas de psicologia ou de alcoologia. Pode ser ajudá-las a requererem um abono particular para uma criança com uma deficiência, ou outros apoios de que não têm conhecimento. São pessoas que trabalham, mas que podem ter ajudas complementares.

“O importante é trabalhar a problemática vendo sempre a potencialidade que aquela família tem. As competências que já lá estão. Às vezes, as competências já estão lá mas aqueles cuidadores não sabiam como utilizá-las”, completa Ana Fontes, a psicóloga que acompanhou Ana Filipa e supervisora do Projecto Família no Porto.

“As entidades fazem-nos chegar a sua perspectiva do que a família tem de mudar para que a criança fique em segurança. Muitas vezes, as necessidades e aquilo que a família sente como a sua preocupação mais imediata não são as mesmas das que nos chegam da entidade sinalizadora”, acrescenta.

Pais no desemprego

A psicóloga dá o exemplo de um casal sinalizado por estar em dúvida a forma como cuidavam do bebé de poucos meses. Mais uma vez, não se tratava de maus tratos.

Eram as competências parentais que estavam em causa, não os afectos. “Estavam os dois desempregados e essa sempre foi a maior preocupação para aquele senhor. Ele sempre tinha sido uma pessoa que trazia dinheiro para casa, nunca teve de depender de subsídios.” Por isso, ao mesmo tempo que foi desenvolvido um trabalho relativamente aos cuidados do bebé com o casal, houve também uma ajuda, para o pai, na procura de emprego. Ele era jardineiro e conseguiu ficar nessa área.

“A partir daí, notámos uma diferença enorme porque aquele senhor sentiu um alívio por voltar a ser o sustento da família”, realça Ana Fontes. “Tendo a questão do emprego resolvida, ele conseguiu estar emocionalmente mais disponível para o bebé.”

Acompanhamento psicológico

​Também Ana Filipa preza o espaço dado para falar daquilo que realmente a afligia. Ana Fontes, que a acompanhou, fazia-lhe ver que havia uma saída. “Ela ajudou-me a criar estratégias. ​Fez-me perceber que eu tinha de estar bem psicologicamente para eles estarem bem. Dizia-me: ‘Se tu não estiveres bem, os teus filhos nunca vão estar’.”

“Foi isso que fez com que eu deixasse que me ajudassem”, diz Ana Filipa sobre a compreensão que passou a ter de si mesma. “Eu depositava as minhas frustrações em cima dos meus filhos. Se me desse um momento de loucura e quisesse sair de casa e deixar os meninos com a minha mãe ou com a minha avó, era para a doutora da MDV que eu ligava, fosse a que horas fosse.”

Igualmente determinante foi ter apoio psicológico para ela e para a filha: de uma consulta esporádica no Hospital Magalhães Lemos, onde também era acompanhada em Psiquiatria, passou a ter consultas de psicologia todas as semanas. “Da mesma maneira que eu fui apoiada, deve haver imensas famílias a precisarem deste tipo de apoio. Às vezes, basta só este clique.”