23.8.21

“Sabe por que é preciso dormir bem? Para trabalhar menos”

Victor Ferreira (texto) e Nelson Garrido (fotografias), in Público on-line

“Não podemos descartar a hipótese de termos um chefe imbecil” — diz José Soares, professor de Fisiologia —, mas a saúde no trabalho começa em casa.

José Soares é professor catedrático de Fisiologia (na Universidade do Porto), consultor de programas de bem-estar e performance em empresas e tem trabalhado com atletas de alta competição – é o performance manager de Miguel Oliveira, piloto português de MotoGP. Acaba de publicar mais um livro Start & Stop, sobre a nossa relação com o trabalho, as disfunções das empresas e dos trabalhadores, a relação fisiológica no que corre bem e no que corre mal e como a perspectiva aplicada aos atletas serve como uma luva à análise nas empresas. O livro chegou às bancas em Maio com mensagens sobre saber parar para equilibrar produtividade, saúde e bem-estar.

O teletrabalho teve algum impacto na nossa saúde?
Penso que a saúde piorou. Os dados estão aí, o consumo de drogas como ansiolíticos, antidepressivos, indutores de sono, tem vindo a aumentar significativamente. Por outro lado, com as pessoas em casa e a não irem aos hospitais, outras patologias aumentaram significativamente. O isolamento social, a falta de actividade física, a incerteza acaba por nos desgastar sem nos apercebermos. É como uma nuvem cinzenta que paira sobre nós.

Aponta no livro que as empresas apostam em programas mas defende que “as acções a tomar têm de ser direccionadas para a forma como trabalhamos”. O que quer dizer com isto? Que mantêm práticas doentias?
Identifico três tipos de empresas: umas genuinamente preocupadas com as pessoas (e isso não é de agora) - são aquelas que têm regras estritas sobre emails, não vêem com bons olhos as pessoas que trabalham à noite, estimulam o uso de intervalos, tempos livres e dão boas condições; depois, há outro tipo de empresas, que eu costumo dizer que são as empresas das indulgências - aquelas que carregam no acelerador até não se poder mais e depois convidam um José Soares para ir lá fazer um workshop sobre saúde mental, o que os deixa com a consciência tranquila e com a sensação de que estão a fazer qualquer coisa; são as mesmas que juram que as pessoas estão em primeiro lugar, mas depois enviam emails às dez e meia da noite e promovem reuniões sucessivas; o terceiro tipo de empresas são as que olham para isto de outra forma - vêem que o teletrabalho aumentou x por cento a produtividade, que pouparam na energia e noutros gastos e, por isso, deixam estar tudo como está, porque, embora digam que as pessoas estão primeiro, os trabalhadores são na verdade um KPI (key performance indicator), equivalem a um indicador-chave de desempenho.

O cérebro é nosso aliado e nosso inimigo. Quando estamos mais stressados e a dormir pior, o que acontece de imediato? É a auto-sabotagem. Cometemos erros alimentares por exemplo, porque pensamos: eu mereço.

Desses três tipos de empresas, com qual ou quais se tem confrontado mais vezes?
Penso que em Portugal predominam as empresas de indulgências, a segunda categoria que referi. Veja aquelas empresas com escritórios de inspiração Google, muito fun, cool e sexy, apetrechados com mesa de bilhar ou matraquilhos, mas que depois ninguém usa porque se forem jogar terão de ficar no trabalho até às dez da noite. Estou convencido que quem pode resolver este ambiente corporativo de alta pressão são os mais novos, que já não vão muito nisto. O problema é que ainda são uma franja da força laboral.

Onde é que detecta esses sinais de uma mudança assente na renovação geracional?
Basta olhar para o turnover (rotação de pessoas) da empresa. As que contratam 200 pessoas por ano são as mesmas de onde saem 210. São jovens que estão um ou dois anos a ganhar 750 euros por mês e a levar com trabalho e emails até à meia-noite. Depois há outro modelo de pessoas, que estão a ser uma lição para os departamentos de RH, os nómadas digitais, que não estão feitos para trabalhar em escritórios.

No livro insurge-se contra o escritório em plano aberto, o open space. Porquê?
As empresas gastam mais dinheiro com o tapete do que com quem o pisa. O open space parte da ideia de que toda a gente é igual e gosta de trabalhar dessa forma. O que é uma ideia errada. Investiu-se muito no tapete, mas não tanto nas condições dadas às pessoas. O plano aberto foi uma estratégia para reduzir custos, porque permite meter mais gente do que os gabinetes. Em algumas circunstâncias funciona, mas convém perceber que o open space é um factor de perda de produtividade e de concentração e um factor de desgaste. O problema é ter-se tornado a regra, independentemente das circunstâncias.

As empresas gastam mais dinheiro com o tapete do que com quem o pisa
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Alguns dos seus leitores não poderão mudar de emprego, ignorar chefes e colegas quando já passou da hora. O que lhes diria?
É uma pergunta mais do que legítima. O nosso trabalho é como uma fracção. No numerador está a forma como trabalhamos. Entra aí o que podemos fazer, como desligar dois ou três minutos, levantar da cadeira periodicamente para nos mexermos um pouco, beber menos cafés, organizar melhor o tempo. São pequenos ajustes. No denominador, entra o que depende da organização. De facto, se tem um chefe que manda emails às 22h30, não há muito a fazer. Ou despede-se ou muda de função ou faz o que o chefe está a pedir. Mas no denominador também estão coisas que dependem de nós. E nós muitas vezes auto-sabotamo-nos. É uma ideia que usamos muito quando lidamos com atletas. A mensagem que quero enviar passa por três pontos. Trate do numerador. O segundo ponto é não nos auto-sabotarmos. E o terceiro é que isto tem de vir de cima, das chefias. Não podemos descartar a hipótese de termos um chefe tóxico, um imbecil. Apercebi-me que muitas vezes as pessoas da alta direcção não têm contacto com a realidade do trabalhador e por isso não têm a mais pequena noção do que as pessoas sofrem.

É fisiologista mas trabalha com empresas há muitos anos. Presume-se que olhe para a organização de forma diferente. Temos uma cultura de trabalho tóxica? O bom trabalhador é o que sai tarde? Isso já está interiorizado de tal forma que já nem é preciso os emails tardios, porque o próprio trabalhador se auto-sabota, talvez para encaixar nessa cultura?
Nós portugueses somos, regra geral, muito mais tolerantes, embora se queira passar a imagem de que não somos. Somos mais passivos e menos proactivos, aceitamos de bom grado as coisas que nos vão fazendo. Embora digamos que somos de sangue quente, na realidade somos muito submissos. Não estou qualificado para avaliar se isso tem uma raiz histórica, mas noto que está a haver uma mudança gradual, uma real preocupação com isso. O chefe tóxico acha que todos têm de trabalhar como ele. Mas noto que essas pessoas começam a ser mal vistas. A pandemia foi uma bofetada, mas não vai mudar nada no imediato. Já passámos pela peste, já tivemos gripe espanhola, já vivemos guerras e o trabalho voltou sempre ao que era. A mudança será lenta. A bem ou a mal.

Quem diz que gosta de trabalhar com deadline ou é viciado em trabalho ou não encontra motivação intrínseca para fazer as coisas sem estar sob pressão. Isso não é um grande elogio.

E há alguma relação entre o corpo de um atleta e o de um trabalhador?
Quando cheguei ao mundo laboral, trabalhava com atletas e com doentes. E apercebi-me que as empresas estavam cheias de gente disfuncional. Concluí que os métodos para atletas, que são de alto rendimento, e para doentes, cujo rendimento fica abaixo do potencial devido à doença, poderiam ser aplicados nas empresas. A explicação fisiológica encaixa perfeitamente na realidade laboral. As análises que peço a trabalhadores são as mesmas que peço ao Miguel Oliveira ou a outro atleta com quem trabalhe. Ainda ontem falava com um seleccionador nacional que vai aos Jogos Olímpicos sobre como avaliar a qualidade de sono dos atletas. Podemos ter a mesma conversa em relação a um trabalhador. A malta não dorme, é um problema endémico. As pessoas olham para um Rafael Nadal e perguntam o que é que ele come? Porque faz aquilo? O que faz nos intervalos? Como dorme após um jogo? Por que não fazermos as mesmas perguntas na empresa para ajudar a explicar o rendimento ou a falta dele?

Está a sugerir que o problema do trabalho começa em casa, como nos preparamos, a qualidade do sono, as escolhas alimentares?
Claro.

Todos podemos ser atletas olímpicos da nossa secretária?
O trabalhador bem preparado, que tenha dormido bem, que se alimenta, que não está nem em stress físico nem psicológico, está mais bem posicionado para a sua “competição”. Sabe por que é preciso dormir bem? Para trabalhar menos. Dormindo bem, ficamos mais bem dispostos, trabalhamos melhor, somos produtivos.

Neste livro, como no anterior (Reload, Menos Stress, Melhor Performance, Porto Editora), realça a importância da recuperação. Porquê?
A recuperação é tão ou mais importante do que o treino e a prova. O problema actual das empresas são as reuniões sucessivas e intermináveis. Quando pensa que falta cafeína, provavelmente a resposta certa é que falta recuperação antes da reunião seguinte. É daqui que vem a minha preocupação com o stop, que está no título do livro. Na biologia não há almoços de graça.

Quais são os sinais de que, se calhar, temos de parar?
Falta de concentração, quando nos dispersamos com facilidade, quase sem darmos conta; fadiga precoce, quando chegamos ao fim exaustos; falhas de memória de curto prazo, do tipo “o que é que jantei ontem? como se chama aquele? falta-me a palavra certa"; irritabilidade, muito menor tolerância; passar sinais amarelos no trânsito - costumo dizer que passar amarelos é uma linha vermelha, e no livro tenho a explicação fisiológica para isso; tocar duas vezes no botão do elevador, como se isso o fizesse chegar mais cedo; dificuldade em dizer não, porque dizer não é quase sempre sinónimo de gastar mais energia; avaliar poucas vezes o risco; alterações de comportamento alimentar.

No livro destaca que há uma diferença fundamental no impacto do stress sobre a alimentação de atletas e trabalhadores.
O atleta perde a vontade de comer e o trabalhador come mais. Por duas razões, porque estamos cansados e, estando stressados, precisamos de nos acalmar. E aquilo que está à mão de semear, para estimular a produção de uma substância com esse efeito, é a comida de conforto, como açúcar refinado, gorduras saturadas e salgados. Mas há mais sinais de alerta. Manifestações de herpes ou de constipação, após ausência prolongada de sintomas, astenia. Alterações do tracto gastrointestinal.

O que proponho no livro é que façamos uma análise SWOT. Escrever num papel as nossas forças, fraquezas, oportunidades e ameaças. É algo que funciona, permite resumir o que fazemos bem, o que temos de deixar de fazer. Isto não é ciência de foguetões, é básico. O problema é fazer.

Se é básico, porque repetimos os erros?
O cérebro é nosso aliado e nosso inimigo. Quando estamos mais stressados e a dormir pior, o que acontece de imediato? É a autosabotagem. Cometemos erros alimentares por exemplo, porque pensamos: eu mereço. O cérebro dá indicação de que o nível de stress está alto, a produção de cortisol sobe muito, o que faz descer a testosterona. Logo, a líbido, a capacidade de concentração, o foco e a proactividade vão começar a desaparacer. É uma cascata de eventos que não podem ser isolados. É como pedirem-nos para não levarmos os problemas de casa para o trabalho. Impossível, isso não existe.

Há quem fique mais desconfiado quando está em stress. Imagine o impacto que isso pode ter nas relações laborais. Mas a fisiologia explica-o: com stress alto sobem a adrenalina e o cortisol e isso impacta um neurotransmissor, a oxitocina, que está relacionado com a confiança.

É difícil isolar uma variável. O nível de imunidade mostra como tudo se paga. Veja a quantidade de pessoas que toma protectores gástricos. As gastrites aparecem porque baixamos a nossa imunidade. O impacto é físico e cognitivo. Baixamos a performance, passamos a raciocinar pior. Tudo tem um preço e não se pense que é possível compensar. Passar a semana em défice de sono e tentar compensar dormindo todo o fim-de-semana não é sinónimo de recuperar. Não funciona assim. Chama-se a isso social lag.

Há quem diga que trabalha melhor quando está sob stress. O que diz a ciência?
O famoso deadline. Deveríamos traduzi-lo sempre para português, linha da morte. Quem diz que gosta de trabalhar com deadline ou é viciado em trabalho ou não encontra motivação intrínseca para fazer as coisas sem estar sob pressão. Isso não é um grande elogio. Quando se diz que o atleta ganhou quando estava sob pressão, é porque as coisas correram bem. Quando correm mal, ignoramos. A maioria das vezes corre mal. Os recordes são raros. É um viés nosso. Valorizamos as excepções, sobretudo as que estão de acordo com as nossas crenças.

Há tempos o país teve de lidar com a notícia de uma situação trágica, em que uma pessoa se esqueceu de um filho menor no carro. Foi a excepção no mau sentido?
Conheci esse caso primeiro pelas notícias e depois através de dois profissionais. Há uma razão para aquilo acontecer, foi uma situação extrema, mas há factores que aumentaram o risco. Morreu uma criança e foi uma tragédia terrível. Mas poderia ter sido a carteira e já não era tragédia. Porém, o mecanismo base pode ser o mesmo: níveis de stress muito altos, de preocupação, e de repente alguém tão concentrado nas suas coisas esquece-se de uma criança. É um exemplo típico. De pessoas desesperadas não se espere coisas boas.